Prédica: Marcos 11.1-11
Leituras: Salmo 118.1-2, 19-29 e João 12.20-33
Autoria: Adélcio Kronbauer
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 10/04/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
Jesus: que rei é este?
1. Introdução
A impressionante narrativa da história em que Jesus é aclamado rei em Jerusalém define um dos passos essenciais para revelar o messianismo de Jesus. A partir desse momento teremos de uma forma profunda instaurada uma ruptura. Como consta na leitura proposta do Evangelho de João: É chegada a hora. Um rei será aclamado, mas as expectativas dos que o aclamam não será alcançada, pelo menos não da forma como esperavam. Há expressões de grandiosidade como hosana nas alturas, bendito o que vem em nome do Senhor, chegou a hora de ser glorificado, mas ao lado delas há a palavra morrer. Há uma contradição, um paradoxo sem solução, pois como alguém aclamado rei pode alcançar a glória por meio da morte, sem nem mesmo ter assumido o trono para liderar politicamente a nação e impetrar a justiça de Deus mediante seu poder? A glorificação está entranhada com o morrer – tudo aponta para isso. Outros termos também se fazem presentes, entre os quais servir e justiça. Como tudo isso pode fazer sentido é o que procuraremos ver a seguir.
2. Exegese
O Evangelho de Marcos foi escrito para o contexto fora do círculo estrito da cultura religiosa judaica. É muito provável que o autor seja alguém próximo do modo como o apóstolo Paulo viveu a fé. Foi escrito por volta do ano 70. Na obra há duplicidades, o que indica o uso de uma fonte escrita preexistente, acrescentando elementos próprios.
A intencionalidade da obra é clara, devendo ser vista em sua totalidade. Todas as ações de Jesus possuem um objetivo, que vai muito além do acontecimento em si mesmo. Elas apontam para quem ele é. Milagres, exorcismos e outros elementos narrativos devem ser entendidos, em primeira mão, como sendo a forma de revelar o messianismo de Jesus. Jesus é o Messias, é o filho de Deus.
A narrativa estabelece um conflito entre a esperança messiânica predominante e a que está sendo revelada na pessoa de Jesus. À medida que o conflito avança, as perspectivas de cada um dos messianismos presentes são evidenciadas, acarretando diferentes formas de reação.
As perspectivas do messianismo de Jesus estão baseadas no anúncio da vinda de um reino, o reino de Deus. A esperança messiânica hegemônica estava relacionada a um sentimento nacionalista, que, uma vez se concretizando, faria com que houvesse novamente uma soberania política em relação à subjugação imposta pelo Império Romano, uma esperança messiânica com cunho teocrático. Já o messianismo de Jesus é de cunho universal, não está baseado em sentimentos nacionalistas, patrióticos ou culturais. Aponta, sim, para uma mudança radical de relações entre as pessoas e entre essas e Deus. Porém não se encaixa em uma forma ou estrutura política determinada. Há a necessidade de conversão, de voltar-se para um outro horizonte.
O reino anunciado possui uma questão “estranha”. Alguns autores a denominam de paradoxo. Tem a ver com a realeza. Está implícito ou mesmo explícito que o auge da revelação desse reino passa pela morte do seu rei. Como pode um rei, como pode um reino subsistir com tamanho fracasso? Como pode um reino ser revelado em um contexto cuja morte do seu rei é efetuada com profundo requinte de crueldade? Resposta: vencendo a morte, por meio da ressurreição. Esse reino vai além da morte. Esta existe, porém não é capaz de destruir o reino. A morte põe fim nos demais reinos, menos no de Deus. O poder dos reinos deste mundo é limitado, possui todo tipo de limites e falhas; o reino de Deus vence todo mal. A leitura dos evangelhos, o de Marcos de uma forma especial, deve ser entendida de trás para frente, ou seja, o anúncio do reino de Deus passa pela morte do Messias. Compreender a morte de Jesus é essencial para entender o evangelho. O reconhecimento do seu reinado ocorre em primeira mão pelo centurião que diz: Verdadeiramente, este homem era o filho de Deus (Mc 15.39). Morrer antes de reinar, eis a questão, o paradoxo.
A forma como o evangelista Marcos desenvolve o roteiro, em cujo centro está um conflito que fica cada vez mais evidente na apresentação dos diversos cenários, leva-nos a concluir que há uma questão em aberto que cabe às pessoas que irão ler o seu relato; a questão diz respeito ao seguimento da história e está diretamente relacionada à fé, ao crer que Jesus é Filho de Deus, o Messias, que deveria vir ao mundo. Crer no seu reino. O evangelho é um chamado para a profissão de fé.
O texto que relata a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém (Mc 11.1-11) segue o objetivo do evangelho como um todo, isto é, revelar quem é Jesus e qual o fundamento de seu messianismo. O povo grita, aclamando um rei, que vem em nome de Davi. Todo o ritual é para receber um que iria se assentar em algum trono e governar como Davi o fazia. Todos os elementos da esperança messiânica preponderante estão aqui presentes. Porém Jesus não se dirige a nenhum palácio. Ele ruma em direção ao templo – foi até o templo, entrou no templo e começou a olhar ao redor. O templo é o centro de pregação de um messianismo com o qual Jesus entra em rota de conflito. O conflito se acirra, porque segundo Marcos, no dia seguinte, ele volta ao templo e ocorre a cena em que derruba as mesas dos que comercializavam no templo. Fica evidenciada a diferença entre o que se prega a partir do templo e o que Jesus anuncia. Esse é o texto em que o conflito não tem mais volta. Está estabelecido que Jesus será morto. A partir desse ponto do roteiro, recebe destaque o fato de que, apesar da admiração que as pessoas tinham por Jesus, elas irão abandoná-lo. Multidões são manipuladas, discípulos fogem. Pode ser que tenha sido por frustração, por medo ou ainda por não entenderem/crerem no que estava sendo anunciado.
É curioso um detalhe dos preparativos para esse acontecimento. Jesus envolveu outras pessoas, sem que os discípulos soubessem. Foi-lhes revelada uma senha na última hora para que um personagem inusitado pudesse fazer parte no ritual de coroação do rei. Seguindo a ideia de que tudo que Jesus faz tem um sentido, uma mensagem, aqui o animal sobre o qual irá montar passa praticamente a resumir o “querigma”, no mínimo antecipando-o em forma do poder de envolvimento da linguagem não verbal.
3. Meditação
Um rei que é aclamado pelo grito inflamado da população, mas que não assume o seu posto, que seria o trono de onde governam os reis. Ao contrário, ele se dirige ao templo. Um rei – tudo indica que era esta a perspectiva, que deveria governar em nome de Deus, instituir um novo governo, tendo como modelo o rei Davi. Alguns esperavam que fosse instaurar uma situação de independência econômica e política do reino de Judá. Parece que todos se decepcionaram, tiveram sua esperança frustrada.
Por que o rei foi ao templo? Por mais de uma razão. Mas a principal delas: estabelecer/reestabelecer, fundamentar a relação do povo com Deus. Para isso é decretado o fim do poder assumido pelo templo pelos seus líderes de intermediar a relação das pessoas com Deus. O templo não governa, não determina a relação com Deus, o que a governa é a fé, a confiança. Esse rei não assumirá o governo político de nenhuma nação. Eis a decepção, eis a esperança da construção de um nacionalismo religioso posto em xeque.
Nenhuma chance de entender com profundidade essa aclamação sem levantar os olhos para o que se segue. Esse rei será julgado e morto. Somente é possível entender seu reinado a partir de sua morte. Assim como o centurião o entendeu e confessou: Ele é verdadeiramente o Filho de Deus. Esse rei governa um reino no qual devemos crer. Não é possível chegar a ele por outros meios a não ser pela fé. O templo é a comunidade que se reúne para professar a fé.
A base do reino é o serviço. O serviço tem como princípio o amor. O amor se manifesta por meio da justiça. Justiça, amor e serviço são os temas com os quais nos ocupamos para testemunhar o reino: viver segundo a justiça do reino de Deus. O que isso não significa: transformar um país em uma nação cristã, por exemplo. Não há uma forma cristã de governar, há apenas testemunho de práticas de amor, serviço, justiça que levam ao bem-estar e à paz. Quanto ao reino, só podemos viver sinais. Nenhum modelo pode ou consegue ser o próprio reino.
Geralmente quando se governa em nome do reino de Deus, comete-se um duplo equívoco: o primeiro diz respeito ao fato de que uma forma específica de vida, seja cultural, social e política, é tida como modelo para todas as pessoas. Ela passa a ser uma lei e seus líderes intermediários, ou mesmo a incorporação do modelo, passam a ser uma figura messiânica. O segundo está relacionado com a questão de que na medida em que um modelo incorpora o reino de Deus, ele passa a ser considerado como uma verdade absoluta, fazendo com que críticas e quem as faz sejam considerados como inimigos Perde-se a capacidade da autocrítica (da confissão dos pecados) e a possibilidade de conversão de rumos. Surge então uma visão maniqueísta entre o bem e o mal, resultando na ideia de que o mal deve ser combatido – o mal são sempre as vozes contrárias – até a morte; a morte como forma de eliminar o mal. Foi o que Jesus sofreu. A morte como um poder para manter o bem sobre o mal. A partir de Jesus, a morte perdeu esse poder, apesar de que é usada ao longo da história para manter ou pôr termo em reinos deste mundo.
O reino das ideias, o reino da política, da sociedade e da cultura são relativizados a partir do reino de Deus e podem ser diversos. Não podem ser absolutizados, dogmatizados, elevados à condição de reino de Deus ou como modelo inquestionável desse. O reino de Deus não pode ser construído por mãos humanas ou por ideias humanas. Ele é uma dádiva e a receberemos por meio da ressurreição. Isso tem consequências práticas muito sérias nos relacionamentos.
Outro aspecto do reino de Deus a ser apontado são as renúncias. Para servir precisamos renunciar. Jesus renunciou a um determinado tipo de poder, por exemplo, para servir. O que nós podemos renunciar para servir. Servir com vistas a quê?
Estas são as perguntas postas para a comunidade que se reúne em torno da fé de que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus. Como viver a fé, a esperança no reino de Deus? Como testemunhar a sua justiça? Como viver segundo a justiça do reino de Deus no mundo?
4. Imagens para a prédica
O animal usado por Jesus é o indicativo de uma das bases da atividade do que é aclamado rei: o serviço. Serviço que inclui a renúncia do egocentrismo, do egoísmo. Lembrando o apóstolo Paulo: Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de outrem (1Co 10.24; cf. Fp 2.4).
As pessoas estenderam vestes e folhagens como gestos de aclamação. Que gestos concretos de aclamação fazemos cotidianamente para aclamar o reino de Deus? Quais gestos poderíamos fazer?
O texto relata a necessidade de uma senha para ter acesso ao animal que Jesus irá montar. Qual a senha de acesso ao reino? Para muitas atividades usamos senhas. Para termos acesso ao reino basta a fé de que Jesus é verdadeiramente o Filho de Deus.
Sinais: Jesus revela com sua própria vida a proximidade do reino de Deus. Toda a sua obra – vida, morte e ressurreição – revela o reino de Deus. Muitas de suas atividades são sinais desse reino. O que é um sinal? Uma forma de comunicação, a exemplo dos sinais de trânsito. O sinal ainda não é aquilo que ele indica, mas a direção ou mesmo realização, uma antecipação, uma espécie de aperitivo.
A fé que dá acesso ao reino é como árvore; ela tem uma determinada natureza, a de produzir frutos de amor. É natural a fé produzi-los, não ocorre por constrangimento, por força de lei. É como a videira, que produz uvas e não outra fruta, por exemplo. O reino que esperamos é um reino de amor. A fé nele produz o amor; amor que nos fortifica, nos anima, nos faz ter esperança.
5. Subsídios litúrgicos
Gesto simbólico: Preparar tiras de panos e material para escrever ou pintar sobre elas frases ou palavras de esperança, durante o culto ou na chegada das pessoas. (Pode-se motivar as pessoas para fazer isso em casa e trazer para o culto.) Após a mensagem, enquanto estiver sendo cantado um hino, motivar as pessoas a levar as tiras sobre ou ao pé do altar, ou deixar ao longo do corredor do templo. Durante a oração de interseção, citar algumas das palavras e frases.
Confissão de pecados: Confessamos que Jesus é o Senhor, verdadeiro Filho de Deus. Pedimos pela vinda do seu reino, pela realização da sua vontade e pelo perdão. Mas será que temos reconhecido que pecamos, que carecemos da sua graça, da sua misericórdia e da sua bondade? Será que nós temos um coração aberto para o arrependimento? Para crer no evangelho e deixar que ele transforme a nossa vida? Será que estamos dispostos a renunciar a ideias e práticas centradas apenas no “eu”? E como estamos para perdoar. Ajuda-nos com essas questões, governando o nosso coração e a nossa mente para que possamos viver em paz uns com os outros.
Oração do dia: Concede-nos a fé. Auxilia-nos para que possamos, com gestos, palavras e ações, testemunhar o teu reino. O teu reino é de amor, dá que sintamos teu amor e nos inspiremos nele para vivermos bem uns com os outros e com toda a tua criação. Auxilia-nos nos sofrimentos, nas dificuldades, nas frustrações que a vida nos oferece, e possibilita que tenhamos dias bem-aventurados.
Bibliografia
BÍBLIA SAGRADA. Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 2005.
SCHREINER, Josef; DAUTZENBERG, Gerhard. Forma e Exigências do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1977. p. 228-255.
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