Prédica: Lucas 19.28-40
Leituras: Salmo 118.1-2,19-29
Autor: Júlio Cézar Adam
Data Litúrgica: Domingo de Ramos – Domingo da Paixão
Data da Pregação: 24/03/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
1. Introdução
Antes de entrar no texto bíblico da pregação, consideramos dois pontos importantes relacionados à celebração do Domingo de Ramos.
a) A centralidade da Páscoa para a teologia e para a vida da igreja. A vida e a obra de Jesus só fazem sentido a partir de sua ressurreição, da Páscoa. Podemos dizer que todos os escritos sobre a vida de Jesus direcionam-se para a Páscoa. Todos os escritos anteriores à paixão, morte e ressurreição de Jesus são uma introdução desse evento, conduzem-nos para o evento da Páscoa, para o evento da cruz. Nosso texto, portanto, e o Domingo de Ramos, como data do calendário litúrgico, abrem a porta de entrada do grande evento cristão, pilar básico da teologia cristã. Jesus não está apenas entrando em Jerusalém. Ele está entrando no evento culminante de toda a sua obra: a Páscoa.
b) Nesse sentido, também os primeiros cristãos celebravam o Domingo da Paixão, que dava início à Semana Santa. Segundo o diário de Etéria, do séc. IV, um dos lugares onde o povo se reunia nesse domingo era o monte das Oliveiras, local onde Cristo foi preso. De lá o povo rumava para Jerusalém, relembrando, assim, o início do grande evento da paixão, morte e ressurreição de Jesus, a Páscoa. A celebração era muito envolvente e dramática. Inclusive as crianças, até mesmo aquelas que ainda não andavam, iam junto com os adultos, levando ramos nas mãos e cantando “Bendito seja o que vem em nome do Senhor”. O nome Domingo de Ramos é dos séculos VII e VIII, alusivo ao uso dos ramos por parte da multidão, conforme os evangelhos de Mateus e de Marcos. Antes desse período, chamava-se Domingo da Paixão.
Quanto à relação entre os textos previstos no Lecionário Comum Revisado, temos no Salmo 118.1-2 e 19-29 uma relação muito clara. Jesus é reconhecido como Filho de Deus por sua misericórdia, paz e bondade. Ele é o enviado, o messias. O versículo 38 – “Bendito é o que vem...” – de Lucas é uma clara referência ao versículo 26 do Salmo 118.
2. Exegese
A localização geográfica do relato não é um acaso. Betfagé e Betânia, em direção ao monte das Oliveiras, são lugares-chave, lugares de salvação. Nessa região, Jesus é preso e ali ele ascende ao céu (Lc 24.50). Fecha-se, assim, um círculo: ali se iniciam os eventos da Páscoa e ali eles se encerram com a ascensão de Jesus aos céus.
Os versículos iniciais do relato (v. 29-35), também nos textos paralelos, tematizam a busca e o uso do jumentinho. Há aqui uma clara intenção de confirmar a profecia de Zacarias. O uso do jumento novo como montaria por parte de Jesus representa a paz (v. 38), mais do que a humildade. Os reis voltavam a cavalo (Jr 8.6) após vencer a guerra. A realeza de Jesus é outra: a paz é sua marca. Segundo a profecia de Zacarias (Zc 9.9), animais ainda não montados, novos, têm relação com os animais que levaram a Arca da Aliança (cf. 1Sm 6.7; Nm 19.2). O jumento novo que leva Jesus está levando o autor, o protagonista da Nova Aliança.
Em relação aos textos paralelos (Mt 21.1-11; Mc 11.1-11; Jo 12.12-19), o relato de Lucas sobre a entrada de Jesus em Jerusalém apresenta omissões e acréscimos. Lucas não menciona o gesto de cortar e usar ramos como saudação a Jesus (justamente aquilo que dá nome ao Domingo de Ramos a partir do século VII). Tampouco fala da aclamação hebraica hosana nem traz uma referência explícita a Zacarias (9.9) para justificar a escolha do jumentinho. Por outro lado, Jesus é saudado como rei em Lucas. Os que escoltam Jesus são seus discípulos, seus seguidores, testemunhos de sua prática libertadora. Não é a multidão que ainda não o conhece que o aclama somente. Seus seguidores querem vê-lo tomando o poder. Puseram-se jubilosos a louvar a Deus em alta voz por todos os milagres que tinham visto (v. 37). Aclamam Jesus com o canto dos anjos na noite de seu nascimento (2.14): “Paz no céu e glória nas maiores alturas” (v. 38), confirmando o seu nascimento como sendo, sim, o do Salvador.
A ação dos discípulos é fundamental no relato. Eles não só buscam o jumentinho, mas também colocam suas vestes sobre ele, ajudam Jesus a montar, louvam a Deus pelos milagres que viram Jesus fazendo, chamam Jesus de rei. Realmente, se eles se calassem, as pedras clamariam. Há nesse protagonismo não só um reconhecimento da autoridade messiânica de Jesus, mas também um tomar parte no projeto de Jesus. Há um protagonismo messiânico por parte dessa multidão de discípulos, essa comunidade que com ele andou e que se apresenta nessa última marcha para dentro da Páscoa em Jerusalém.
Também o final da perícope (v. 39 e 40) é mais precisamente de Lucas e reforça esse protagonismo decisivo dos discípulos e das discípulas de Jesus. Os fariseus pedem que Jesus repreenda seus discípulos, o que ele contesta com a resposta: Se eles se calarem, as próprias pedras clamarão. E, de fato, clamarão, porque eles já não podem segurar a voz.
3. Meditação
Como já falamos na introdução deste auxílio, estamos às portas do grande acontecimento cristão: a Páscoa de Jesus Cristo, a nova aliança de Deus conosco. A comunidade dos quatro primeiros séculos celebrava a entrada de Jesus em Jerusalém, indo até o monte das Oliveiras e caminhando de lá até Jerusalém, encenando esse relato (talvez seguindo mais a versão de Mateus do que a de Lucas). A comunidade remontava assim a geografia daquilo que Deus fez por nós em Jesus Cristo: no monte das Oliveiras, Jesus vai ser preso, em Betânia ele irá subir ao céu, segundo o evangelista Lucas.
O Domingo de Ramos celebra o início dos eventos da Páscoa. É a celebração da entrada na Páscoa. O Domingo de Ramos é o portão da Páscoa. Jesus não está apenas entrando em Jerusalém, está entrando no evento da Páscoa, está assumindo a Páscoa.
O relato de Lucas sobre esse evento é também a confirmação da obra de Jesus por parte de seus discípulos, a multidão de seus seguidores, daqueles que viram, ouviram, sentiram e experimentaram na caminhada e na vida de Jesus os sinais messiânicos da libertação. Quem saúda Jesus não são os moradores da cidade, mas a comunidade de discípulos e discípulas, aqueles que andam com ele. A exaltação ocorre antes mesmo dos portões da cidade, pois o reconhecimento de Jesus como Messias já havia se dado ao longo da jornada. Os discípulos e as discípulas já haviam reconhecido através de sua ação e suas palavras que ele era o Cristo, o Rei, o Filho de Deus, o Bendito Rei que vem trazer paz e glória nas alturas. A cruz dos próximos dias confirmará tudo o que eles já haviam vivenciado na longa jornada de libertação.
Não há como calar a voz diante desses feitos. Se os discípulos se calassem, até mesmo as pedras falariam, diz Jesus. O Evangelho segundo Lucas quer lembrar isso nesse relato. Parece-me que esse aspecto poderia ser aprofundado na pregação. A entrada de Jesus em Jerusalém é uma forma de noticiar quem foi Jesus, não a partir de atos isolados, mas a partir de toda a sua vida. A Páscoa será a culminância de toda uma jornada, iniciada já em Belém e desenvolvida na caminhada da Galileia a Jerusalém. É como se essa breve descida do monte das Oliveiras até Jerusalém representasse a grande caminhada de Jesus com seus discípulos. A paixão, morte e ressurreição nos dias que seguem serão novamente a exaltação, a culminância da grande trajetória, trajetória que nós, como igreja, como comunidade, continuamos protagonizando hoje. O evento da cruz confirmará de forma intensa e dramática toda a caminhada anterior.
Nós somos os discípulos de hoje. Somos a comunidade, os protagonistas da caminhada, movidos pelo Espírito Santo. Somos os que ajeitam o jumento da montaria, colocando vestes sobre ele, ajudando Jesus a montar, aclamando-o como rei da paz. Se nos calarmos diante do que temos visto e ouvido, as pedras irão falar. Se nos calarmos diante da trajetória de Jesus, que se confirma em sua Páscoa, as pedras irão falar, tamanhas a novidade, a radicalidade e a potencialidade do acontecido. Pois em Jesus Cristo está tudo o que Deus tem a nos dizer (N. Kirst).
As pedras falam se nos calarmos. E, talvez, é exatamente isso o que tem acontecido: cada vez que não anunciamos a Cristo, toda vez que não profetizamos contra a injustiça, a exclusão, a destruição da natureza, estamos calando. E as pedras falam! São obrigadas a falar do que a gente, os discípulos dele, já não conseguem ou não querem falar. Às vezes, tenho a impressão de que outros projetos, como projetos ecológicos, organização de defesa da dignidade humana, centros de formação, atividades culturais, como a música e o cinema, a arte, têm falado mais às pessoas da boa-nova da vida do que a própria igreja. Não que outros projetos não devam e não possam falar. A cultura como um todo é também espaço da ação generosa e surpreendente do Espírito Santo. O que me assusta é que a igreja se cala. Tornamo-nos, talvez, assim como os fariseus do relato de Lucas, aqueles que querem que os que reconhecem, promulgam e proclamam a Jesus, os discípulos e discípulas, os coprotagonistas da Páscoa, se calem.
4. Imagens para a prédica
O Domingo de Ramos ou o Domingo da Paixão é uma forma de lembrar a trajetória de Jesus com seus discípulos até ali como conteúdo da Páscoa. A Páscoa é a culminância de toda uma caminhada de libertação. O Domingo de Ramos é a confirmação de uma longa trajetória. O Domingo de Ramos é um estar entre a caminhada anterior e a caminhada dos últimos dias, culminando na Páscoa.
A pregação poderia ser um momento oportuno para refletir sobre a caminhada da própria comunidade. De onde está vindo e para onde está indo? Como a comunidade está indo para a Páscoa, mas também vindo da Páscoa? Para onde a Páscoa levará a comunidade? Ficamos no mesmo lugar? Os primeiros cristãos, que caminhavam o mesmo trecho dos relatos, testemunham de forma intensa e dramática esse movimento com Jesus. Eles se faziam protagonistas com Jesus Cristo. E a nossa comunidade? Para onde vai?
O uso de pedras no templo, no chão e nos assentos talvez seja uma bela forma de lembrar as organizações, espaços, iniciativas, projetos e pessoas que falam mais da novidade de Cristo, da vida em abundância, da paz do que a própria comunidade. Poder-se-ia refletir onde e quando a comunidade, assim como os discípulos, tem proclamado a Cristo e o quanto tem se calado. Uma frase de Martin Luther King pode ser um bom recurso nesse sentido: “O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons”.
5. Subsídios litúrgicos
A antífona para o ano C é o Salmo 71.14: “Quanto a mim, esperarei sempre e te louvarei mais e mais”. Poderia ser usado o próprio Salmo 118.26: “Bendito o que vem em nome do Senhor. A vós outros da casa do Senhor, nós vos abençoamos”.
Uma bela litania e antífona do Salmo 118 encontra-se no CD “Ao fim do dia”, produzido pelo catequista Louis Marcelo Illenseer, e poderia ser um bom recurso litúrgico para o culto.
Bibliografia
KODELL, Jerome. El Evangelio de San Lucas. Collegeville: The Liturgical Press, 1995.
L´EPLATTENIER, Charles. Leitura do Evangelho de Lucas. São Paulo: Paulinas, 1993.