Prédica: Lucas 17.11-19
Leituras: Salmo 111 e 2 Timóteo 2.8-15
Autoria: Wagner Tehzy
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/10/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
O amor que nasce da gratidão
1. Introdução
A perícope de Lucas 17.11-19 já foi trabalhada nos volumes IV, X, 20, 26, 34 e 40 do Proclamar Libertação. Sugiro a leitura para enriquecimento da abordagem na prédica.
As leituras complementares apontam para a ação de Deus no mundo e na coerência de seu plano de salvação. Deus é poderoso e está interessado no bem do seu povo. Ele é Senhor da vida e da morte; aqueles que perseveram no seguimento reinarão com ele.
Salmo 111: O Salmo é um poema acróstico de 22 linhas. Cada linha inicia com a sucessão do alfabeto hebraico. Há uma apresentação desse Deus que é verdadeiro e senhor de tudo. Há demonstração de várias realizações de Deus, que incluem desde o cumprimento da aliança até o fornecimento de alimentos. Deus mesmo envia redenção para o seu povo. Esse Senhor demonstra o poder de suas obras, que são descritas como grandes, cheias de honra e majestade, fiéis e justas. São fiéis todos os seus preceitos.
2 Timóteo 2.8-15: Essa leitura, na carta a Timóteo, filho na fé de Paulo, trata de uma exortação a permanecer firme naquilo que tem importância primária. Timóteo deve lembrar-se do conteúdo central da pregação evangélica, para que não se perca em “brigas a respeito de palavras”, que, segundo Paulo, “não servem para nada” e prejudicam os ouvintes.
2. Observações exegéticas
V. 11 – Lucas apresenta Jesus a caminho de Jerusalém. O início da jornada se dá em 9.51 e termina em 19.28. O texto aponta que Jesus estava passando pelo meio da Samaria e da Galileia. Essa localização na fronteira explica a presença de um grupo de leprosos judeus samaritanos. Normalmente essa relação não seria possível. Mas há algo que os une em sua miséria comum. Lucas faz menção a uma história de séculos de rivalidade religiosa e atrito étnico.
Vale ressaltar que a Samaria, junto com a Galileia, fazia parte das tribos israelitas do norte, que se separaram de Judá no séc. X a.C., a fim de estabelecer uma outra monarquia. Após dois séculos, essas tribos do norte foram conquistadas pelo Império Assírio, que deslocou povos distantes da Mesopotâmia para a região, resultando em séculos de casamentos com gentios. Da perspectiva judaica, isso resultou em um comprometimento étnico, seguido de deturpação das tradições religiosas. Os samaritanos tinham sua ênfase religiosa na devoção à Torá e estavam ligados ao santuário no monte Gerizim, construído na volta do exílio. No séc. II a.C., grande parte da Galileia converteu-se ao judaísmo, reconhecendo Jerusalém como local de culto, isolando a Samaria. A rivalidade acentua-se com a destruição do santuário do monte Gerizim em 128 a.C. por parte dos judeus.
Isso torna bastante significativo o fato de Jesus apontar para a fé desse estrangeiro. Há certamente um impacto na fala de Jesus, que em outras ocasiões também destaca positivamente os samaritanos, como na parábola do bom samaritano (Lc 10.29-37) e na passagem da mulher samaritana (Jo 4.1-42). Os destinatários do evangelista Lucas, vindos de fora da tradição judaica, devem ter se alegrado e se sentido acolhidos por essa passagem que aponta para a universalidade da missão de Jesus.
V. 12-13 – Dez leprosos saem ao encontro de Jesus. A lepra deles não era necessariamente o que chamamos de hanseníase. Ela incluía uma variedade de doenças de pele como micose, psoríase e vitiligo. Algumas dessas doenças eram contagiosas, outras não. Umas tinham cura, outras não. Os sacerdotes eram responsáveis de fornecer o diagnóstico da lepra e a Torá trazia diretrizes bem específicas para esse fim (Lv 13.1-44). Um diagnóstico de lepra era considerado uma sentença de morte, um castigo da parte de Deus. As condições de vida eram degradantes, pois deviam, por exigência, isolar-se de todas as pessoas saudáveis. As roupas do leproso, em que está a praga, serão rasgadas, e os seus cabelos deixados sem pentear; com a mão sobre a boca, gritará: Impuro! Impuro! Será impuro durante os dias em que a praga estiver nele; está impuro, habitará só; a sua habitação será fora do arraial (Lv 13.45-46).
Aqueles leprosos, tendo ouvido sobre Jesus, dirigem o seu grito a ele, chamando-o de mestre. Em sua situação deplorável, reconhecem e expressam a fé de que Jesus pode trazer cura e devolvê-los à plenitude de vida.
V. 14 – Jesus vê sua condição. Talvez seja um detalhe pequeno, mas sabemos também hoje o que significa invisibilidade social de algumas classes de pessoas marginalizadas. Daqui podemos também nós depreender que aquele que enxerga os leprosos, conhece, ouve e vê a nossa dor.
Jesus não cura de imediato os leprosos, antes ordena que se apresentem aos sacerdotes. Aqui é necessário um passo de fé, seguir o caminho como se estivessem curados. Eles poderiam tomar o caminho do templo em Jerusalém, mas também podiam encontrar sacerdotes em outras localidades, visto que esses serviam periodicamente no templo e retornavam para suas casas no restante do tempo. Para o retorno à vida normal, o sacerdote teria de certificar a condição de pessoa não mais impura.
V. 15-16 – Assim como Jesus vê a condição dos leprosos, há um deles que vê o que os outros não foram capazes de ver: que foi curado, que Deus merece louvor e que precisa retornar a Jesus para agradecer. Sente-se tocado por graça imerecida, e com isso impelido ao louvor e à ação de graças. Cabe aqui destacar a surpresa por esse retorno a Jesus. Os outros nove podem também ter sido gratos por sua cura, mas foram tomados pela ansiedade de retorno, de serem readmitidos em suas aldeias, suas casas e seus familiares. Depois da completa marginalização, o desejo pela volta a uma vida digna deve ter soado irresistível. Por isso é importante que esse um, resistente ao impulso de seguir a vida e aproveitar a sua cura, tenha voltado para agradecer.
V. 17-18 – Cada etapa de questionamento e acolhimento de Jesus demonstra cuidado com os marginalizados:
1 – Não foram dez curados? Onde estão os nove?
2 – Não se achou quem voltasse para dar glória a Deus, a não ser esse estrangeiro?
3 – A resposta de Jesus ao samaritano prostado em agradecimento aos seus pés: a sua fé salvou você. Mesma expressão dita à mulher que ungiu os pés de Jesus (7.50); à mulher hemorrágica (8.48) e ao cego de Jericó (18.42).
A prostração e ação de graças do samaritano aos pés de Jesus demonstram o reconhecimento de que Deus está agindo por meio dele. Ele percebe o que os outros não conseguiram, que agradecer a Jesus é glorificar a Deus. Isso parece mais forte nas pessoas que mais necessitam, aquelas pessoas que são ignoradas, desprezadas, intocáveis. Jesus observa isso na mulher que o unge, ao receber um grande perdão, ela também ama muito (7.47). O amor que nasce da gratidão é a essência da fé.
3. Meditação
A interpretação de Martim Lutero sobre o primeiro artigo do Credo Apostólico no Catecismo Menor parece captar a síntese do nosso texto:
Creio que Deus me criou junto com todas as criaturas, e me deu corpo e alma, olhos, ouvidos e todos os membros, inteligência e todos os sentidos, e ainda os conserva;
além disto, me dá roupa, calçado, comida e bebida, casa e lar, família, terra, trabalho e todos os bens.
Concede cada dia tudo de que preciso para o corpo e a vida; protege-me de todos os perigos e guarda-me de todo o mal.
E faz tudo isso unicamente por ser meu Deus e Pai bondoso e misericordioso, sem que eu mereça ou seja digno.
Por tudo isso devo dar-lhe graças e louvor, servi-lo e obedecer-lhe.
Isto é certamente verdade.
Afirmamos pela fé que Deus é o criador de todas as coisas. Todas as pessoas foram criadas por ele. Assim vemos muitas pessoas, as que creem e as que não, que recebem todo o necessário para uma vida digna: comida, roupas, trabalho, família, proteção. Recebem não por mérito, mas por pura graça e misericórdia da parte de Deus. O que diferencia os que creem dos que não creem é o fato dos primeiros, à semelhança do leproso samaritano, reconhecerem que todo o bem provém da mão bondosa de Deus. Ao reconhecer a ação de Deus, a resposta se dá em gratidão e louvor por meio de Jesus.
Uma forma de aproximação e reflexão na prédica poderia partir da dinâmica do olhar, do ver. Os leprosos clamaram e Jesus os viu, como dissemos, nem todos querem ser confrontados, enxergar a miséria que está ao lado, envolver-se. Há quem prefira passar ao largo; Jesus não é assim. Por outro lado, aquele leproso, ao ver que estava curado, retorna dando glória e louvando até prostrar-se diante de Jesus.
Muito mais do que um conjunto de crenças e rituais, a fé cristã se apresenta como uma forma de ver, de compreender-se no mundo. Por vezes, não podemos mudar as coisas ao nosso redor, mas podemos mudar a maneira de ver as mesmas coisas, e isso, por si só, já pode fazer toda a diferença.
Um ponto a se observar é a relação da fé e da cura em nosso texto, e o que o olhar sobre a situação muda em relação aos personagens. O que logo se evidencia é que os dez foram curados, mesmo os que não retornaram. A lepra não voltou sobre eles. Aquele que voltou ouviu de Jesus que a sua fé o curou/salvou. O que acontece com os outros nove? Não tiveram fé? Aqui nos lembramos de quantas vezes a fé, ou a falta dela, é usada contra as pessoas em nosso contexto religioso. Muitas pessoas, além do fardo de suas crises, dores, miséria, recebem ainda outro, que é o fato de não receberem alívio/ajuda por não possuírem fé suficiente.
Nós cremos no Deus que age primeiro, que vai ao encontro primeiro, que toma a iniciativa. Lembramos a caminhada da libertação do Egito: não houve um condicionante de fé. Caso houvesse, a libertação seria cancelada logo de início, na confecção do bezerro de ouro. Deus não espera uma prova de fé para enviar seu Filho Jesus, muito pelo contrário, Deus prova o seu próprio amor para conosco pelo fato de Cristo ter morrido por nós, quando ainda éramos pecadores (Rm 5.8). A questão está em como reagimos diante da ação de Deus, mais uma vez, uma questão de ótica.
A fé, em nosso texto, é representada pela ação de graças. A pessoa que crê é aquela que sabe responder à ação misericordiosa de Deus com gratidão. A graça de Deus manifesta-se para todas as pessoas, Jesus morre por todas, mas apenas algumas pessoas compreendem/veem a ação de Deus e a necessidade de voltar e louvar.
A palavra usada para agradecimento é eucharisteō, empregada quatro vezes em Lucas. Duas vezes quando Jesus rende graças sobre a ceia no cenáculo (22.17), e a outra, em contraste, quando o fariseu “rende graças”, por não ser como os outros homens e o publicano que está próximo dele (18.11). Em nosso texto, é possível crer que os outros nove podem ter atribuído suas curas a Deus, dando graças de outros locais, mas não fizeram a conexão entre Deus e seu Filho Jesus. Aquele que viu, o fez com os olhos da fé, e compreendeu que Jesus (feito ser humano) é o poder de Deus. A fé é a capacidade de crer no que não pode ser visto. Mais adiante a fé consegue enxergar, em um Jesus agonizante, o poder de Deus, ali aos pés da cruz ensanguentada. Interessante notar que esse homem, por ser estrangeiro, não poderia adentrar os pátios internos do templo de Jerusalém para adorar, mas tem livre acesso e é bem-vindo para adorar aos pés do Filho de Deus.
Sobre as questões de ótica, cabe a pergunta sobre o que fazer quando se vê. Jesus viu a miséria, a necessidade, e agiu em favor das pessoas que passavam por sofrimento. Já o leproso que viu a sua cura, não apenas se contentou com sua boa sorte, voltou para louvar e agradecer. A autossuficiência e o egocentrismo impedem a gratidão. Há quem ache que merece todas as coisas e que o mundo lhe é devedor. De nossa parte, pelo que vemos com os olhos da fé, por tudo o que nos cerca na explicação do primeiro artigo do Credo Apostólico, cabe-nos o retorno, o louvor e a gratidão aos pés de Cristo.
4. Imagens para prédica
Um bom caminho para a condução na prédica está posto na própria estrutura do texto. Há uma grande variedade de abordagens. Pode-se apontar para o que é inesperado entre os personagens, que a ação de Deus em Cristo seja tão mais abrangente do que era admitido naquela época e hoje. Deus está aberto e usa de misericórdia para quem está em um povo estranho, que parece adorar em local estranho, que tem um jeito diferente de expressar espiritualidade, com uma teologia estranha. A gratidão brota também de onde não se espera e gera aprovação de Jesus.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: versículo porversículo. São Paulo: Hagnos, 2002. v. 2, p. 167-169.
MESTERS, Carlos. O Samaritano, exemplo de gratidão. Disponível em:
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