Prédica: Lucas 14.25-33
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e Filemon 1.1-21
Autoria: José Manuel Kowalska Prelicz
Data Litúrgica: 13º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 8 de setembro de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Sente-se e faça cálculos
1. Introdução
Neste domingo do Tempo Comum, vemos o que significa ser parte da igreja, de seguir a Cristo, quais suas implicações e necessidades. O texto de Lucas, base da prédica, dá o tom nesse sentido. Duas são as exigências básicas de Jesus para o discipulado: consciência e coerência. Com esse mesmo pensamento, encontramos o texto de Deuteronômio, que acompanha o evangelho. Às pessoas das tribos de Israel é pedido que escolham entre seguir ou não a Deus. No caso de Deuteronômio, temos uma longa lista de consequências da opção realizada ou desejada, que podem ser bem resumidas no v. 19a: [...] te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição.
Sobre a leitura da Carta a Filemom, podemos indicar que é o único domingo no lecionário para lermos a quase totalidade dela. À primeira vista, pode-se dizer que não está relacionada com a questão do discipulado. Talvez não com a teoria, mas podemos considerar que nessa carta encontramos a prática do seguimento a Jesus. Filemom pode receber de volta Onésimo, seu escravo, como irmão na fé a partir do pedido de Paulo. Mas a base disso é o amor e a fé que Filemom tem no Senhor Jesus.
O texto já foi trabalhado em quatro oportunidades no Proclamar Libertação: PL VIII, PL 20, PL 26 e PL 37.
2. Exegese
Em nossa perícope, o evangelista Lucas utiliza dois ditos (tomar a cruz e amar mais do que a família) na formação de uma nova explicação sobre o discipulado. Essa não é inteiramente partilhada nos evangelhos sinóticos. Tomar a cruz, encontramos em Mateus 10.38; 16.24; Marcos 8.34 e em Lucas 9.23. Enquanto que amar mais do que a família, encontramos somente em Mateus 10.37.
Em Mateus 10.34-39, deparamo-nos com ambos os ditos, porém são usados para reforçar que os discípulos enfrentarão problemas. Qual a direção desta vez? Os exemplos dão o tom: planejamento e preparação para entrar no discipulado.
Estrutura:
v. 25 – Introdução
v. 26-27 – Quem não pode ser meu discípulo
v. 26 – Quem não aborrece elos de sangue
v. 27 – Quem não toma a sua cruz e me segue
v. 28-32 – Exemplos de planejamento
v. 28-30 – Cuidado para terminar uma torre
v. 31-32 – Cuidado para reagir adequadamente diante de outro rei
v. 33 – Conclusão: O discípulo deve renunciar a tudo
No v. 25, encontramos um certeiro início da perícope, com separação definida em relação ao texto anterior. O mesmo não pode ser dito em relação ao final da perícope. Poder-se-ia ter incluído os v. 34 e 35, ainda que seja um dito isolado, pois é a sequência lógica dos v. 25-33. Além disso, terminaria toda a perícope com “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”, uma formulação clássica de fechamento.
As grandes multidões motivam Jesus a ter uma postura. Muitas pessoas que seguem Jesus agora são defrontadas com as exigências do discipulado. Ditas exigências são desenvolvidas através de uma parte conceitual (v. 26-27) e outra exemplificada (v. 28-32).
No v. 26, temos a primeira grande diferença entre as traduções, miseō é traduzido por “amar mais do que ama a” ((NTLH e NAA), “ama o... mais do que a mim” (NVI) e “aborrece” (ARA). Miseō, literalmente, significa odiar, detestar, aborrecer. Essa palavra está, por exemplo, na raiz de misógino (quem tem aversão por mulheres). Sendo assim, o sentimento é outro do que amar. Ainda que os povos semitas utilizem amor e ódio onde o pensamento ocidental indique interesse ou indiferença, estamos diante de uma questão relacionada com o pensamento de uma só lealdade. Aqui é exigido que os elos de sangue sejam colocados em segundo lugar, ou pior ainda, que até a própria vida (psychē) esteja sob o desígnio do Mestre.
Também no v. 26 temos a primeira aparição de “não pode ser meu discípulo”, as outras duas acontecerão no v. 27 e 33. Estamos diante da consequência pelo não cumprimento da exigência. Aqui, “poder” (dynamis) está relacionado com capacidade ou habilidade de ter poder ou força para realizar alguma coisa. O discípulo (mathētēs) apresenta-se na acepção de aprendiz, pupilo, aluno. Nos v. 26 e 27, a NTLH traduz simplesmente como “seguidor”. Então podemos entender que quem não consegue realizar aquilo que Jesus pede não pode entrar no círculo dos estudantes do mestre.
O v. 27 mostra a outra exigência: “carregar a sua cruz”. Sendo a cruz elemento de tortura, evidencia-se a radicalidade do que significa ser discípulo. As pessoas que estão no entorno vivencial de Jesus podem ser acusadas de perturbadoras da ordem estabelecida pelos romanos e terminar penduradas numa cruz, assim como aconteceu com o Mestre. Talvez isso mostre o receio de Pedro ao ser reconhecido no pátio do lugar do julgamento de Jesus. A NTLH já faz essa elaboração teológica e traduz como “quem não estiver pronto para morrer como eu vou morrer”.
Jesus apresenta dois exemplos (v. 28-30 e 31-32), que os seus ouvintes deviam entender facilmente. Ambos os casos são condicionados a um exercício de previsão e planejamento para evitar iniciar a ação sem possibilidade de conclusão com exatidão, de acordo com o previamente estabelecido.
Nos v. 28-30, lemos o caso da construção de uma torre. O executor é lembrado que antes de qualquer coisa, primeiro deve sentar-se para fazer os cálculos, evitando dessa forma o problema da exposição ao ridículo e à zombaria das pessoas, não somente da própria família, mas de qualquer um que passasse pelo lugar da construção inacabada. Iniciar e não terminar é o motivo principal da chacota.
Nos v. 31-32, vemos o segundo caso: o de um rei enfrentar o outro. Aqui temos o rei que deve deliberar, considerar (bouleuō) se pode enfrentar outro que é mais numeroso, porém talvez menos forte. Se o rei deliberar que não pode enfrentá-lo, enviará uma comitiva para combinar um acordo de paz, evitando assim ter entrado numa guerra sem sentido, pois somente derramaria sangue e não obteria um possível resultado satisfatório.
Nosso texto de estudo termina no v. 33. Talvez por isso, no final do v. 32, temos “Jesus terminou dizendo” como adendo não bíblico ao texto da NTLH. Na conclusão, temos pela terceira vez a aparição da ideia “não pode ser meu discípulo” (aqui também a NTLH acompanha as outras traduções de mathētēs como discípulo). Agora relacionada com a ideia de apotassetai, ou seja, despedir-se, dizer adeus, aqui em sentido figurado como “renunciar” a tudo aquilo que uma pessoa pode ter à sua disposição, sejam suas possessões ou propriedades (naquele contexto, a família é incluída).
Podemos encerrar a parte exegética com a certeza de que o seguimento a Jesus, no discipulado, é exigente, seja porque é necessário relativizar as relações familiares (v. 26), porque pode custar literalmente a vida (v. 27) ou porque é necessário relativizar até aquilo que se tem como próprio, seja a vida (v. 26) ou tudo aquilo que se tem (v. 33). Os dois exemplos mostrados por Jesus somente reforçam a necessidade de saber as consequências do discipulado, seja pela zombaria de uma obra não concluída (v. 28) ou de uma guerra perdida (v. 31).
3. Meditação
O texto apresenta-nos a necessidade de sentar-se e fazer cálculos para ver se é possível ser discípulo/discípula de Jesus. Será que as pessoas levam a sério a sua entrada no discipulado? Como poder resgatar a seriedade do discipulado?
Em Lucas, temos um chamado aberto ao discipulado. Mas um discipulado verdadeiro é cem por cento radical. Estamos diante de um Jesus que não aceita um discipulado de domingo de manhã, como alguns querem, menos ainda um discipulado quando convém, aquele que lembra de Deus nas dificuldades ou quando quer batizar ou sepultar. Por que há tantos cristãos de “meia tigela”, que não conseguem seguir com sua fé de forma sincera e sem desvios ou atalhos? O que Jesus apresenta em nosso texto é um discipulado que abandona “tudo”, pois do contrário não é discipulado. As consequências do discipulado são reais, não são optativas, devem ser assumidas.
Na época em que foi escrito o Evangelho de Lucas, discipulado não era algo que se aceitasse superficialmente. Discípulo, discípula só depois da devida deliberação e do reconhecimento do possível sacrifício, que podia ser até total ou definitivo.
É a pessoa que vive o discipulado a que relativiza tudo para poder entregar--se ao absoluto. Que deixa de lado as relações humanas, sabendo que a relação com Deus é a mais importante, ainda que seja a mais difícil de manter. Por que Jesus coloca esse alerta? Para advertir do custo do discipulado. Seguir a Cristo no caminho da cruz não é para qualquer pessoa. Jesus conhece a humanidade, por isso alerta. Quem pode cumprir as exigências de Jesus? Nem Jesus conseguiu, pois ele mesmo pediu ao Pai para afastar o seu cálice. Qual apóstolo conseguiu fazer o que Jesus pediu? Depois da morte de Cristo, encontramos os apóstolos de volta na Galileia aos seus afazeres como pescadores.
Jesus quer se colocar como mediador entre a pessoa e o seu entorno, não somente entre a pessoa e Deus Pai, mas também entre as relações neste mundo. Por isso a família passa a ser mediada também através de Cristo. Se uma relação impede o seguimento de Cristo, essa deve ser deixada de lado. As pessoas tornam-se seres solitários para encontrar um novo sentido na relação com Jesus. “Todos entram sozinhos no discipulado, mas ninguém fica sozinho nele” (Bonhoeffer, 2001, p. 54).
A cruz não é um destino desventurado. A cruz é resultado natural do relacionamento com Cristo. “[...] ‘tome a sua cruz’. Ela já está preparada desde o início; falta apenas levá-la [...]. Cada qual tem que suportar a medida de sofrimento e rejeição que lhe é reservada” (Bonhoeffer, 2001, p. 44). A exortação de Jesus de tomar a cruz conduz à morte. Neste caso, morte de vida anterior como, por exemplo, Lutero, que abandonou o mosteiro ao encontrar sentido no discipulado. Até os mártires que sofrem por seguir a Cristo veem em seu martírio a bem-aventurança da vida sob a guia de Cristo. A cruz transforma o sofrimento. O discipulado é uma nova forma de viver a partir da comunhão com Jesus. Percebe--se a cruz não como fim, mas como partida da vida cristã.
Ser discípulo é deixar de lado aquilo que nós temos, nossos preconceitos, nossas ideias preconcebidas. Temos que nos esvaziar para poder ser guiados por Deus. É uma via complicada neste mundo, que prega a autoestima como força maior. O discípulo deve anular-se (eliminar suas limitações) para poder servir a Deus e ao próximo. Nossas aversões não podem ficar acima daquilo que é o evangelho. Que testemunho nós estamos dando ao mundo de Cristo? Isso é feito a partir de nossos preconceitos ou a partir dos conceitos de Deus? Por qual lógica você é guiado? Quanto você está disposto pelo discipulado? Qual seu compromisso? Você está junto de Deus em todos os momentos da sua vida ou somente quando convém?
Em nossas comunidades, quantos são membros de fichário e quantos são discípulos? É difícil de indicar, se não humanamente impossível. Essa é uma dura realidade que devemos suportar como instituição. Nos dias atuais, o texto da perícope em estudo mostra-se como uma exortação a não se esquecer das consequências de um verdadeiro discipulado. Como pregadores e pregadoras, somos chamados a questionar novamente as pessoas que se acreditam discípulas de Jesus e devemos mostrar que o discipulado não é um simples jogo de faz de conta.
4. Imagens para a prédica
– Podem ser utilizadas as imagens dos exemplos do texto: a construção e a possibilidade de entrar em guerra. Trabalhar a construção pode ser mais simples para adequar à realidade local.
– Ao entrar no discipulado, as pessoas são alertadas do que significa isso. Como um médico/uma médica, um pastor/uma pastora, um/a policial, ao assumir o cargo, sabe o que significa exercer esse cargo. Quando um pastor ou uma pastora é ordenado/a, assume um compromisso público diante de Deus, da comunidade reunida e da instituição à qual está relacionando-se para seguir certos regulamentos e normativas.
– Vestir a camiseta: ser discípulo/discípula de Cristo é realmente se dedicar, colocando todo o seu esforço no seguimento a Jesus. Ao contrário, encontramos a imagem do mercenário que trabalha ou serve somente visando ao lucro, sem nenhuma ligação aos ideais ou fidelidade. Em caso necessário, pode trocar de dono/patrono se achar que terá maiores benefícios.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos
Livro de Canto da IECLB: 320 – Senhor se tu me chamas; 512 – Segui-me, sou Cristo; 568 – Nem só palavra é o amor; 632 – Jesus ao lado; 636 – Tão longe.
Oração do dia
Bondoso Deus, muito obrigado por teres enviado o teu Filho para mostrar o que tu desejas de nós. Ajuda-nos a viver realmente o nosso discipulado. Permite que nos demos conta que seguir Cristo traz consequências para a nossa vida. Ajuda-nos a colocar Cristo acima de tudo e de todos, que possamos ser discípulos e discípulas fiéis, que carreguemos nossa cruz para a glória do teu nome. Oramos em nome Jesus, nosso Mestre e Senhor. Amém.
Oração pós-comunhão
Obrigado, Senhor, por teres permitido que nos aproximemos do teu altar para receber o sacramento do corpo e sangue de Cristo. Como comunidade, teus discípulos e tuas discípulas, somos alimentados por ti. Permite que possamos viver em fidelidade ao teu chamado e que assumamos o compromisso de levar o teu evangelho aonde quer que formos. Em nome de Cristo. Amém.
Bibliografia
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CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Millennium, 1982. v. 2.
LIEVEN, Guilherme. 16º Domingo após Pentecostes: Lucas 14.25-33. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; IEPG, 2000. v. 37, p. 266-271.
Disponível em:
LÜCKEMEIER, Valdemar. 16º Domingo após Pentecostes: Lucas 14.25-33. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; IEPG, 1994. v. 20, p. 251-254.
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SCHMIDT, Ervino. 5º Domingo após Trindade: Lucas 14.25-33. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. 8, p. 235-240. Disponível em:
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