Prédica: Lucas 13.1-9
Leituras: Salmo 126 e I Coríntios 10.1-13
Autor: Anete Roese
Data Litúrgica: 3º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 14/3/2004
Proclamar Libertação - Volume: XXIX
Tema:
1. Tempo da Quaresma. Tempo da Paixão de Cristo
Nesta época de Quaresma, é importante que o culto tenha o poder de propiciar o sentimento, o tempo de pensar, refletir sobre o sentido da Palavra de Deus nesta época para a vida de cada pessoa, para a vida comunitária, social, familiar. Por isso, sugiro que o culto seja mais meditativo, mais quieto – com pausas para pensar. Mas que seja um culto com presença e força simbólica muito grande!
Qual é o contexto social, que acontecimentos se estampam no momento em que você lê este texto? Como esses acontecimentos podem convergir com o tema/tempo da Quaresma? Que tipo de situação precisa de arrependimento e conversão, conforme indica o texto de Lucas?
2. Evangelho de Lucas: o texto e seu contexto
O texto de Lc 13.1-9 faz parte do bloco de capítulos que compreende os acontecimentos que integram a viagem de Jesus a Jerusalém (Lc 9.51-19.28). A maior parte deste bloco é material exclusivo de Lucas.
Para o evangelista Lucas, a cidade é o lugar-símbolo do poder violento, pois é na cidade onde vivem aqueles que exercitam seu poder com decisões baseadas em interesses de um pequeno grupo de autoridades, que governam com leis que ordenam a morte dos que contrariam a ordem estabelecida. É o que testemunha Lc 13.34: “Jerusalém, Jerusalém, tu que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados...” Lucas revela insistentemente o problema das injustiças sociais. No seu contexto há uma situação social dividida entre a miséria, a pobreza e a opulência, os banquetes e a riqueza (6.20).
O povo do Evangelho de Lucas é uma multidão de pessoas necessitadas. São doentes, marginalizados, pecadores (Lc 5, 6, 9), que têm sede de um mundo novo. O pão, a fome, a comida, bem como o roubo, a acumulação e a exploração (Lc 6, 10, 12, 14-16, 19, 21) são temas constantes nesse evangelho. É provável que esse evangelho tenha sido escrito em Antioquia da Síria ou em Corinto na Grécia, ou em Éfeso na Ásia Menor, cidades que tinham entre 400 e 700 mil habitantes. Portanto, pode-se prever que as comunidades do Evangelho de Lucas se encontram na periferia dessas grandes cidades, onde a miséria e a exploração alcançam níveis extremos.
O culto ao imperador romano foi instalado aos poucos em algumas regiões como na Ásia Menor. Havia os ritos religiosos cotidianos com sacrifício de animais, além dos templos de padroeiros em cada cidade, como o culto a Ártemis (At 19). Por outro lado, também crescia o número de pessoas que aderia aos cultos e religiões de mistério que vinham do oriente. Além disso, havia a corrente dos gnósticos, que acreditavam que o mundo era do mal, era desprezível.
O tempo de Jesus em Jerusalém é o tempo que caminha para a sua morte e sua glória. Os discípulos, portanto, vão sendo preparados, orientados e ensinados para o tempo futuro, o tempo que será da igreja. No capítulo 12, v. 22, inicia uma série de ensinamentos que recomendam e alertam: despreocupação com as coisas materiais e com o dia de amanhã; a vigilância pela espera do Senhor; o discernimento dos sinais dos tempos; que as multidões compreendam o sentido do tempo presente e se convertam.
É preciso discernir os tempos, e este discernimento vem pela fé, que revela que a interpretação rígida das leis nos afasta do Reino de Deus. Os judeus acreditavam que esse tipo de acontecimento era resultado do castigo de Deus por causa do pecado. Jesus, ao invés do castigo, insiste no arrependimento, na conversão para a remissão dos pecados. Estende a responsabilidade do pecado e suas conseqüências a toda a sociedade, invertendo a ordem daqueles que, numa lógica simplista, excluem-se da culpa e do compromisso diante dos acontecimentos trágicos.
Lucas entende a necessidade de conversão e arrependimento, para a qual convoca Jesus, não “no sentido helenista, como se fosse um desenrolar determinado por um destino imutável, nem no sentido da apocalíptica, como se fosse o plano histórico de Deus para os últimos tempos (...), mas como a intenção salvífica de Deus, anunciada na Escritura. No entanto, na obra de Lucas essa intenção salvífica é prolongada e vinculada à História. Torna-se como um plano de salvação que se deve manifestar na História” (Goppelt, p. 526). Portanto, ainda há tempo, não muito, mas há, como indica a parábola da figueira, e a salvação deverá ter lugar em nossa história cotidiana.
3. Leituras
Sugiro dar destaque às leituras do dia, reservando a estas um breve comentário e também símbolos para que sejam bem compreendidas:
Salmo 126: No momento da leitura, é importante fazer referência no culto ao contexto em que este salmo surgiu, para que haja uma preparação para a compreensão da situação que o salmo retrata. Ele é um cântico ou oração de agradecimento, cantada no caminho de volta do exílio na Babilônia. Para esse povo, que espera ver sua cidade restaurada, a volta do exílio é sinal da chegada do Messias. O salmo exala alegria e assim merece ser anunciado na comunidade onde será lido. É o louvor e a confiança em Deus, cantada por um povo que sofreu no exílio. Pode ser anunciado com sons, instrumentos, batidas que anunciam uma vitória, para, em seguida, ser lido em coro por toda a comunidade.
1 Coríntios 10.1-13: Paulo recorre ao Antigo Testamento para providenciar um exemplo da importância da confiança em Deus e os cuidados com os males da presunção e do orgulho. Relata experiências que não devem ser repetidas e adverte que mesmo quem está de pé pode cair (v. 12). Estes acontecimentos podem ser relembrados brevemente após a leitura, para que esta adquira mais clareza e entendimento. O texto de 1 Co termina reafirmando a fidelidade de Deus para com seu povo, que não permite que carreguemos fardos além de nossa capacidade.
4. Texto da pregação: Lucas 13.1-9
O texto está dividido em duas partes. Uma primeira parte descreve um contexto de violências praticadas por um sistema que persegue e mata pessoas contrárias ao regime político; e pergunta pelas conseqüências do pecado e por “quem” é responsável/culpado pelo pecado. A segunda parte do texto traz a parábola da figueira estéril, que é como uma palavra pastoral e profética para as dúvidas que se geram nessas situações extremas da realidade social, onde se pergunta pelos bons e pelos maus e o que fazer diante de pessoas que demoram a compreender os propósitos de Deus.
v. 1 – Pessoas (talvez fariseus) que relatam a Jesus a respeito dos galileus mortos por Pilatos, enquanto celebravam no templo. Um caso de violência praticada por um líder político, uma autoridade pública. É um relato egoísta por parte daqueles que se excluem de qualquer compromisso e responsabilidade diante dos fatos. Tema: violência, abuso de poder, pecado = morte/culpa.
v. 2 – Jesus diz: Vocês pensam que os outros galileus são menos pecadores do que estes que morreram? Jesus confronta a concepção de que uns são pecadores e culpados, enquanto outros são salvos e livres. Para Jesus, todos são igualmente pecadores e responsáveis enquanto não se converterem.
v. 3 – Se não vos arrependerdes... perecereis do mesmo modo que aqueles que sofrem a violência, os que a praticam e os que a permitem.
v. 4 – Todos são pecadores também em Jerusalém. A morte de 18 pessoas sob a torre de Siloé traz de novo um caso e o tema: violência, responsabilidade, descaso, pecado x morte/castigo.
v. 5 – Se não vos arrependerdes... perecereis do mesmo modo. As pessoas que morreram sob a torre de Siloé não eram mais culpadas do que outras em Jerusalém.
v. 6-7 – Um exemplo: uma figueira sem fruto; há três anos não produz frutos e deve ser cortada, excluída, eliminada.
v. 8-9 – Uma atitude, um compromisso, uma responsabilidade: o vinhateiro sugere ao dono deixá-la mais um ano, tempo de escavar ao redor, colocar adubo, esperar. Tempo de espera. Tempo de graça. Atitude, intervenção, ação. Esperar os frutos da fé.
Se o escopo teológico do texto é o debate sobre pecado e culpa, que invoca a responsabilidade de toda e qualquer pessoa indistintamente, convoca ao arrependimento e estende a graça de Deus como paciência, o escopo sociológico do texto é o retrato da violência estampada nos versículos 1 e 4. Jesus ouve um relato de violência. As pessoas que vêm relatar o fato não estão inconformadas com o acontecimento. A preocupação era saber se as pessoas que morreram estavam sendo castigadas por algum motivo, para alívio da consciência própria desses que interpelam Jesus.
5. Olhar para nosso tempo e nosso arrependimento
O texto apresenta duas situações específicas de violência. Da mesma forma podemos nós escolher situações específicas para a partir destas refletir, meditar.
- Podemos optar por refletir especialmente sobre marginalização que sofrem as pessoas idosas no país, na cidade etc., sejam aquelas que passam fome, que precisam trabalhar duramente para sobreviver até o último dia de suas vidas, que sofrem descaso dentro das famílias etc.
- A violência nas famílias poderia ser outra abordagem, com enfoque na relação entre adultos e crianças e a hierarquia violenta dessas convivências em muitas situações, como estão sendo educadas as crianças.
- A violência étnica, etnocêntrica, de brancos em relação a pessoas de descendência afro-brasileira em nosso país e como ela se expressa no dia-a-dia da comunidade é outro tema desafiador a ser refletido.
- A violência de gênero é outra possibilidade, pois vivemos numa sociedade que educa principalmente homens para uma violência que mata; cada vez mais mulheres agridem suas crianças; a cada 15 segundos, uma mulher é espancada no Brasil (segundo dados do IBGE). Como homens e mulheres podem encontrar caminhos de paciência ativa para relações não-violentas, mais humanas e sadias?
- A violência no trânsito é outro grande tema. Pois hoje o trânsito é uma das maiores causas de morte no Brasil; são verdadeiros crimes e assassinatos cometidos com veículos. Por que há tanto desrespeito, tanta imprudência?
- A violência contra o meio ambiente, a destruição, a aniquilação, a poluição do mundo de Deus sem dó nem piedade.
A Quaresma nos convida a meditar sobre todo tipo de violência, pois foi uma sociedade violenta que levou Jesus à cruz. O culto precisa apontar para a responsabilidade da comunidade cristã frente a essa realidade; proporcionar a possibilidade do arrependimento e prática comprometida, fruto da graça e da paciência de Deus.
6. Dinâmica da reflexão
A homilia pode ser dividida em três partes ou momentos:
1 – Escolher um tema específico da violência que acontece no contexto social; enfocar dados e situações reais como nos v. 1 e 4 do texto de Lucas. Apontar esse contexto como pecado e perguntar por (nossa) responsabilidade diante dos fatos, em que medida e de que forma fazemos parte dessa falta diante de Deus. É em certa medida a pergunta por situações da nossa vida que nos levam à paixão, ao sofrimento.
2 – Um segundo momento poderia ter como enfoque o arrependimento de cada qual e da comunidade cristã reunida, em vista da falta de responsabilidade. Aqui o arrependimento pode se dar em silêncio como sinal de que o arrependimento deve acontecer concretamente. Exercitar o discernimento é um caminho para o arrependimento, é o exercício de colocar-se no lugar de outras pessoas para melhor saber entender.
3 – O terceiro momento seria, então, a parábola da figueira. É a oferta da graça e da paciência de Deus. O tempo de Deus é aquele tempo que espera, é um tempo de paciência, de silêncio, de cuidado, de oração, de atitude. Foi assim com o joio e o trigo, com Ana, com Isabel, com Sara e com a figueira. Não é um tempo passivo, nem para Deus tampouco para nós É tempo de escavar, adubar e cuidar da vida.
7. Subsídios litúrgicos
Os três momentos da homilia poderiam estar intercalados assim:
* escuridão, o uso de pouca luz e de mais luz na parte do arrependimento e bastante luz na parte sobre a paciência ativa. A escuridão pode simbolizar a ausência de paz, de justiça... A luz pode simbolizar discernimento, esperança de um novo tempo, de se relacionar, de distribuir o pão, de viver com justiça;
* cada parte também poderia ser intercalada com dramatizações (de um minuto) sem fala, só com movimentos e expressões que indicam relações violentas, arrependimento e graça/espera ativa;
* instrumentos e sons, de acordo com cada momento, também podem ser usados para intercalar os três momentos;
* a comunidade poderia participar relatando de forma breve situações de violência específica, bem como situações em que a violência foi sanada;
* momentos de silêncio também podem servir como símbolo de paciência, de tempo de pensar, refletir sobre a nossa vida ou sinal da paciência de Deus.Saudação inicial: Esta pode ser lida por jovens que lêem juntos e repetem três vezes o versículo, começando a leitura em tom de voz baixo, aumentando o tom aos poucos até o final da terceira leitura.
* Por muito tempo me calei, estive em silêncio e me contive; mas, agora, darei gritos como a que está de parto (Is 42.14 ou Is 62.1).
Confissão de pecados: Silenciosa e individual, intercalando momentos de silêncio com a súplica: Ouve, Senhor, a nossa confissão. Podem ser usadas pedras pequenas para simbolizar a violência que será confessada por cada pessoa. Concluir a confissão com a leitura do Sl 51.1-13, intercalando a leitura dos versículos em dois grupos da comunidade.
Absolvição: “O Senhor não demora para cumprir o que prometeu, como alguns pensam, achando que há demora; é que Deus tem paciência com vocês, porque não quer que ninguém se perca, mas que todos cheguem a se converter” (2 Pe 3.9).
Bênção: A bênção pode ser mútua, envolvendo toda a comunidade. As pessoas podem colocar as mãos nos ombros daquelas que estão ao lado e podem ser convidadas a repetir as frases curtas da bênção, que será lida por alguém. Poderia também ser feita em duplas.
“A ti a profunda paz do vaivém das ondas.
A ti a profunda paz do fluxo do ar.
A ti a profunda paz da terra silenciosa.
A ti a profunda paz das estrelas reluzentes.
A ti a profunda paz do filho da paz.”
(Antiga bênção céltica)
Bibliografia
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2. ed., v. II, 1988.
KÜMMEL, Georg Werner. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
MOSCONI, Luís. Leitura Segundo Lucas. Pistas para uma leitura contemplativa espiritual e militante. A Palavra da vida. Belo Horizonte: Cebi, n. 43/44, 1991.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia