Prédica: João 4.5-26
Leituras: Êxodo 17.1-7 e Romanos 5.1-11
Autor: Léo Zeno Konzen
Data Litúrgica: 3º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 27/03/2011
Proclamar Libertação - Volume: XXXV
1. Introdução
Na caminhada para a Páscoa, o terceiro domingo na Quaresma convida- nos a aprofundar o conhecimento e a experiência existencial de nossa relação com Jesus como água viva que sacia nossa sede e torna-se dentro de nós uma fonte a jorrar da mesma água. O livro do Êxodo lembra a crise provocada pela falta de água no deserto e relata como, através de Moisés e de alguns anciãos, Deus saciou o povo sedento, fazendo jorrar água da rocha. Na Carta aos Romanos, em- bora sem usar a linguagem da água, Paulo lembra que, se o amor de Deus tomou a iniciativa e nos envolveu sem que o merecêssemos, tanto mais ele nos sacia agora que já fomos reconciliados por seu amor. E o evangelho apresenta o episódio do encontro de Jesus com a samaritana, no qual a comunidade cristã joanina revela suas convicções profundas a respeito de Jesus: ele é a fonte da água viva, que sacia definitivamente nossa sede, sejamos nós judeus ou samaritanos, homens ou mulheres, jovens ou adultos; ele é o verdadeiro marido que torna livre a mulher, isto é, toda e qualquer comunidade humana, libertando-a dos ídolos que dela se apossam e a escravizam; ele é o profeta que denuncia o vazio dos templos, cultos e doutrinas que não estão a serviço da libertação e da vida dos seres humanos; ele próprio é o novo templo que acolhe santos e pecadores dispostos a entrar na dinâmica do amor e da partilha.
2. Exegese
O Evangelho segundo João foi escrito com a intenção de aprofundar o reconhecimento da importância de Jesus e da comunhão com ele para a vida das pessoas e do mundo. Isso fica muito claro em 20.31-32, primeira e original conclusão desse evangelho. Para alcançar seu objetivo, a comunidade que está por trás desse texto e seu redator final – seja ele uma pessoa ou uma equipe – apresentam diversos episódios, em que vai aparecendo quem é esse Jesus, privilegiando a sua relação profunda com Deus e seu projeto de vida. A identidade de Jesus vai se revelando primeiro através de algumas ações (denominadas sinais), como a do vinho no casamento em Caná, e de encontros com pessoas representativas, como Nicodemos. No capítulo 4, é o encontro com a mulher samaritana que está em foco. Trata-se também de um encontro de revelação da identidade de Jesus e do projeto de vida ao qual serve.
Mas, antes de analisar esse encontro, convém recordar um pouco da história da comunidade joanina. Ela se originou de maneira semelhante às demais comunidades das origens, mas cedo tomou rumos próprios. Uma das marcas desses novos rumos foi a integração bem-sucedida de samaritanos. Essa decisão da comunidade joanina lhe custou suspeitas e críticas por parte de outras comunidades cristãs e, muito mais, das comunidades do judaísmo lideradas pelos fariseus e escribas. Mas também lhe trouxe inovações surpreendentes: os samaritanos não foram tidos como um apêndice da comunidade; ao contrário, tiveram participa- ção ativa na mesma, fazendo com que, inclusive, a maneira de compreender Jesus e a linguagem sobre ele ficassem marcadas pela cultura samaritana. Esse fato explica, em parte, as enormes diferenças entre os chamados evangelhos sinóticos e o Evangelho de João. No evangelho deste domingo, aparece uma dessas diferenças: a compreensão de Jesus como Messias está relacionada mais com Moisés e o prometido profeta semelhante a ele (“quando ele vier, nos explicará tudo” – 4.26) do que com a tradição do messias filho de Davi, muito identificado com os interesses político-religiosos dos judeus. Muito mais do que “rei dos judeus”, Jesus será o “salvador do mundo” (4.42).
O que foi dito no parágrafo anterior conduz a outra constatação da exegese: é provável que o episódio da samaritana expresse muito mais a ação evangeliza- dora da comunidade joanina do que de Jesus mesmo. Não há nada de estranho nesse modo de proceder, pois os evangelhos todos fundem em seus relatos aspectos do Jesus histórico e da ação evangelizadora das comunidades. Os sinóticos apoiam nossa constatação: enquanto no Evangelho de João Jesus desenvolve importante ação evangelizadora na Samaria, nos sinóticos ele não se mostra muito preocupado com os samaritanos e até pede a seus discípulos, quando os envia em missão, que não vão aos samaritanos (Mt 10.5). É verdade que, apesar disso, o Jesus dos sinóticos revela simpatias para com os samaritanos, principalmente em Lucas, único a contar a parábola do samaritano que socorre o assaltado à beira do caminho (Lc 10.25-37) e do único leproso curado que volta para agradecer, sendo esse um samaritano (Lc 17.11-19). Indica na mesma direção o texto de Atos dos Apóstolos que narra a boa acolhida que tiveram entre os samaritanos os discípulos helenistas de Jesus, que tiveram de fugir de Jerusalém após o martírio de Estevão (At 8). Essa cena dos Atos levanta a suspeita de que o capítulo 4 de João tenha a ver com essa atividade dos helenistas na Samaria.
No texto em foco neste domingo, aparece um elemento muito significativo: a fonte ou o poço de Jacó. Talvez mais do que importante fonte de vida, esse poço representa a própria cultura e identidade dos samaritanos. Então, o fato de a mulher buscar água nessa fonte pode significar que ela, representando também os samaritanos todos, está se abastecendo de sua própria história, da religião, das tradições e dos valores de seu povo.
Talvez isso ajude a compreender melhor as implicações do gesto de Jesus. Ele, cansado da viagem, senta-se junto ao poço. Em seguida, quando chega a mulher, revela que tem sede e pede água. Não poderíamos dizer que o pedido de Jesus representa um interesse pelas crenças, pelos costumes e pelos valores dos samaritanos? Não estaria se mostrando necessitado dessa comunicação com o diferente, no caso com a cultura e a história dos samaritanos?
Se for assim, também se entende melhor a estranheza manifestada pela samaritana: como é que um homem, identificado como judeu, pode dignar-se a querer “beber” da “água” dos samaritanos? O gesto de Jesus era inusitado de- mais. E a mulher somente vai compreender a atitude de Jesus quando esse lhe revela que não está tão identificado com os judeus quanto ela pensa. E ela começa a se interessar também pela “água” que Jesus eventualmente lhe possa oferecer.
Quando a samaritana começa a se interessar pela água que Jesus (e nele as comunidades joaninas) tem para partilhar, o texto introduz uma nova surpresa: a samaritana diz não ter marido. E Jesus aprofunda o tema, dizendo que ela tem razão, que teve cinco e o que tem agora não é seu marido. Se estamos lendo todo o texto numa chave de representatividades, também podemos falar aqui de que a situação matrimonial confusa da samaritana tem a ver com a leitura que a comunidade joanina faz da situação religiosa dos samaritanos: seu sincretismo e sua atual identidade religiosa merecem respeito, mas representam uma carência profunda, uma série de “casamentos malsucedidos”... O encontro com Jesus faz com que essa comunidade humana também encontre seu verdadeiro esposo e possa celebrar a aliança com o vinho novo e de excelente qualidade, conforme anunciado no casamento em Caná (cap. 2).
O encontro do verdadeiro marido representa também uma nova relação com templos e lugares sagrados: Jerusalém, Garizim ou qualquer outro “monte sagrado” podem ter sua importância, mas somente à medida que ajudam a cultivar a relação decisiva que é, nas palavras do evangelho, “adorar o Pai em espírito e verdade” (4.23). O verdadeiro templo será o próprio esposo, isto é, o corpo de Jesus, como é anunciado no início do evangelho (2.21).
A samaritana, como já ocorreu com Nicodemos, percebe que necessita romper com ídolos que a escravizam. Romper com eles nem sempre é fácil – que o diga Nicodemos! Ainda mais quando esses ídolos vêm revestidos de mantos sagrados, como em geral são os dogmas e as instituições religiosas. A samaritana parece ter se dado conta!
3. Meditação
Nossa vida é feita de relações. Relações com outras pessoas, com os acontecimentos do mundo, com as coisas, com a cultura, com as questões mais pro- fundas da existência etc. Nosso ser depende dessas relações. Podemos até dizer que nós somos o que são nossas relações.
Por um lado, as relações vão nos constituindo, isto é, nossa identidade vai sendo marcada pelas relações nas quais estamos envolvidos. Se sofremos violências, isso marca nosso modo de ser; se somos amados e valorizados, também isso interfere profundamente em nosso modo de ser. De algum modo, podemos então dizer que somos “vítimas” ou resultados das relações nas quais estamos envolvidos. Por outro lado, nós também podemos tomar decisões quanto às relações que queremos estabelecer ou quanto à maneira de integrá-las em nossa vida. Podemos escolher, em certa medida, as pessoas com quem queremos caminhar na vida; podemos decidir se queremos, ou não, participar desse ou daquele evento, fazer parte de uma comunidade, dessa ou daquela; podemos decidir se investimos, ou não, em nossa própria formação, dessa ou daquela maneira. Enfim, se há relações que nos envolvem e nos constituem sem nossa livre decisão, há outras que nós mesmos estabelecemos. E as relações que nós estabelecemos com relativa liberdade implicam, às vezes, rupturas com outras que herdamos ou nas quais nos vemos envolvidos.
A liturgia do terceiro domingo na Quaresma convida-nos para uma revisão de nossas posturas no que se refere às relações que vivemos. Ela nos chama a tomar consciência dessas relações e a avaliá-las a partir do encontro com Jesus Cristo. Podemos imaginar que hoje Jesus senta junto à fonte ou poço onde nós costumamos buscar água e nos pede de beber. Qual será essa fonte ou esse poço? Talvez seja nossa comunidade. Talvez nosso mundo marcado por tantas transformações. É possível que nos admiremos, como a samaritana, de que Jesus se digne a pedir-nos de beber de nossa água, principalmente se for da água de grupos humanos que discriminamos, quem sabe até em nome de Deus!
Hoje somos muito sensíveis ao novo, pois vivemos num mundo de constantes, rápidas e profundas transformações. Pode parecer estranho, mas há um “novo” que não é pela idade nem por não ter existido antes, mas pela capacidade de surpreender e enriquecer sem limites. Esse novo é Deus mesmo, que se fez humano em Jesus de Nazaré e acompanha a história da humanidade. Abrir-se para esse “novo” de Jesus em suas práticas e prédicas significa, para pessoas e comunidades, estabelecer uma relação libertadora e humanizadora. Entrando nessa relação, pessoas e comunidades, inclusive igrejas, percebem que a vida é muito mais do que dizem os ídolos que nos mantêm presos e amordaçados. Na relação com ele, descobrimos que ninguém pode se apropriar de Deus e dominar pessoas. Ninguém tem esse direito: nem templos, nem lugares, nem igrejas, nem instituições, nem pessoas. Todas essas coisas têm seus valores, e podemos precisar delas, mas elas só se justificam à medida que se colocam a serviço da vida e tornam-se “lugares” onde possamos beber da água que verdadeiramente mata nossa sede.
Talvez até consigamos nos convencer de que Deus, através de Jesus, pede de nossa água para beber. Mais difícil poderá ser admitir que ele também faça isso com grupos humanos que nós discriminamos ou excluímos. Essa dificuldade já foi vivida por judeus e cristãos que não conseguiam aceitar os samaritanos. Hoje ela pode se expressar na dificuldade de reconhecer que Deus queira se relacionar de maneira simpática também com aqueles que não são de nossa igreja, como aidéticos, homossexuais, presidiários etc. Pode ser que Jesus nos ajude a descobrir ou a reconhecer que também nós tivemos “cinco maridos” e o que temos hoje não é o nosso... Quer dizer, é possível que, apesar de pertencermos a uma comunidade cristã, não tenhamos nos encontrado verdadeiramente com aquele que tem a partilhar conosco a água viva que nos sacia e se torna uma torrente dentro de nós. Isso pode também acontecer com nossa igreja e com as igrejas cristãs em geral.
4. Imagens para a prédica
Um ditado popular pode ajudar-nos na reflexão neste domingo: “Dize-me com quem tu andas, e eu te direi quem tu és”. Ele expressa bem a importância das relações na constituição de nossa identidade. Ele pode ajudar a entender que nos relacionamos com valores, mentalidades, pessoas e instituições que nos alienam ou então que nos tornam mais conscientes e livres. O ditado ainda expressa a possibilidade de escolhermos com quem queremos nos relacionar. Embora sempre dentro de limites, nós temos um relativo livre-arbítrio para decidir com quem queremos construir nossa história e, portanto, de quem queremos receber mais influências. O convite que a liturgia nos faz neste tempo de Quaresma, especialmente neste domingo, é de acolhermos Jesus como companheiro de caminhada. Ele se revelará como fonte de água viva. Ele também nos conduzirá aos “samaritanos” de hoje, em atitude de respeito, partilha e solidariedade.
Há um filme chamado “Patch Adams – o amor é contagioso”, que apresenta a história de um homem que teve sua vida transformada a partir do momento em que, internado num hospital psiquiátrico, ajudou um colega e esqueceu um pouco seus próprios problemas. Daí em diante, em meio a muitas resistências e oposições, apostou tudo na busca de ser tornar médico para ajudar outras pessoas. Sua maneira de ser transformava muitas pessoas, inclusive as mais resistentes. É difícil não ver no personagem central do filme uma imagem do próprio Jesus e das transformações que a relação com ele provoca na vida de quem decide aceitá-la.
Outro filme, chamado “Daens – um grito de justiça”, apresenta a história de um padre que, por circunstâncias diversas, acabou se aproximando dos pobres na época da revolução industrial na Bélgica (final do séc. XIX). Essa relação com os “samaritanos” de sua época transformou completamente sua vida, a ponto de também entrar na vida política, tornando-se deputado para defender as causas dos pobres. As reações dentro e fora da igreja foram violentas, mas o povo pobre e trabalhador renasceu para a esperança.
5. Subsídios litúrgicos
Pode-se construir uma representação de um poço no lugar onde se realiza o culto. Junto com isso, pode-se também fazer uma encenação do evangelho ou uma leitura dialogada.
Interessante também pode ser o gesto de convidar a comunidade toda a beber um pouco de água junto à representação do poço no final do culto ou noutro momento oportuno, fazendo-se a devida motivação para isso.
Há um canto do padre Zezinho que é bem apropriado para a ocasião: “Eu te peço desta água que tu tens...”
Bibliografia
BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. São Paulo: Paulinas, 1984.
KONINGS, Johan. Evangelho segundo João: Amor e Fidelidade. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 2000.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O evangelho de São João: análise linguística e comentário exegético. 2.ed. São Paulo: Paulus, 1999.