Prédica: João 19.16-30
Leituras: Isaías 52.13-53.12 e 2 Coríntios 5.(14b-18) 19-21
Autor: Renato Becker
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 01/04/1994
Proclamar Libertação - Volume: XIX
1. Introdução
Amigos do Proclamar Libertação, oi! Estranharam esse oi? Ele é válvula de escape para explicitar que estou sob pressão. Já é de manhã e deveria ter entregue esse trabalho pelo menos anteontem. A droga do caminhão do gás já irrita de novo com aquela musiquinha subliminar. Luto com o ouvido, mas ele não tem nervo na coxa. Às 9h, vou receber visita. Só tenho chimarrão e pedaços de cuca dormida para oferecer. Enquanto a turma não vem, cerco-me da Bíblia de Jerusalém. Estou cansado e sentado diante da mesa para tentar criar palavra boa em cima de João 19.16-30. Béééééééééppp — opa. Acabaram de chegar num Fusca o Dietrich, o Rubem e o Martin. Introduzo-os na sala. Falo-lhes rapidamente da minha dificulda-de. Ouço piadinhas carinhosas depois dos abraços, da conversa rasa e dos risos.
2. Sob diálogo
Sorvos depois, está pintando um bom diálogo. A conversa vem ao meu encontro. Minha caneta esferográfica está quente. Presto atenção. O Rubem está alegre. O poeta Glauco Saraiva diria que ele acaricia a cuia como se fosse um seio moreno. Rubem Alves não é gaúcho, mas simpatiza com minha oferta de chimarrão amigo. Todos o escutam...
— Ó, pessoal. A verdade é que a vida é sempre frágil. A morte anda com passos mais firmes. A vida dança com pés descalços. Parece haver mais eternidade numa pedra do que numa flor. No entanto, é na flor que está a alegria. É certo que a pedra não morre. É certo também que dela não surge a vida. Para se poder dar a vida, é necessário poder morrer. É sempre assim que aparece a tentação: garantir a vida com as pedras. Comer o fruto da imortalidade, construir a torre, cujo topo toque os céus, viver com segurança.
Eu estava embevecido. Claro! Jesus tinha tudo a ver com a flor, e César tudo a ver com a pedra. Pilatos, os judeus, os soldados e o populacho queriam cruz, porque a flor desestruturava a pedra. Nunca tinha pensado assim. A térmica estava à minha mão, e enquanto eu servia outro chimarrão, o Rubem continuava a falar:
— Lembro-me de uma estória que me contaram muitos anos atrás. De um pato selvagem. Sempre nas alturas, contemplando cenários que ninguém mais via, horizontes que sumiam de vista e pores-do-sol invisíveis para os que andavam sobre a terra firme. O ar era puro e frio. O sentimento de solidão terrível e maravilhoso.
Tudo isso morava naquele corpo. E era por isso que ele era selvagem: por haver visto e amado coisas que ninguém mais... Mas a vida era dura, os voos longos, os caçadores persistentes, o alimento incerto, o cansaço constante... Um dia, das alturas, viu uma chácara. No quintal sombreado e fresco, muitos patos refestelados e seguros à beira de um lago. Veio-lhe então uma vontade imensa de trocar de vicia. Era bem merecedor de uma aposentadoria. Baixou seu voo e juntou-se aos domésticos. Esqueceu de tudo no fascínio da abundância. E assim foi indo... Até que... Ale que voltou o tempo da migração dos patos selvagens, que passavam voando, nas alturas, com o seu monótono grasnar. Curioso, os patos domésticos continuavam a dormir, indiferentes. É que eles não tinham memórias. Por isso, o grasnar não acordava nostalgias. Mas com ele não era assim. Aquele era um som mágico, que fazia acordar do esquecimento em que se encontrava saudades que não podiam permanecer enterradas, partes que eram de sua própria carne. Ah! O corpo não pode nunca se esquecer daquilo que ele um dia viu e amou. E sorria, vendo renascer o pato selvagem que um dia fora. Até que não mais resistiu. Abriu as asas para o voo de volta. Mas quase quebrou o pescoço. Havia engordado muito. Não conseguia voar. Nunca mais... E viveu o resto de seus dias na lembrança das alturas que moravam em suas funduras.
Eu não queria o término daquele momento. Jesus tinha tudo a ver com o pato selvagem, mas nada com o pato domesticado. Patos selvagens são caçados. Eles voam liberdade e justiça. Eles desafiam o status quo. Eles têm proposta maior. Eles não são medíocres, porque o horizonte se lhes está aberto para além dos cinco sentidos. Com o rabo do olho vi que o Martin Luther queria entrar na conversa. Ele agradeceu o chimarrão. Pediu uma Caracú com espuma, que, por incrível que pareça, ainda sobrava na geladeira.
— Fala, Martin. Somos todos ouvidos.
— Boa essa palavra do Rubem. Eu sou mais direto. Não tenho esse joguinho de cintura brasileiro. Para mim, o Jesus pendurado na cruz, despido e nu, inchado e coberto de sangue, com uma coroa de espinhos cravada em sua fronte é, ao mesmo tempo, sacerdote e sacrifício. Ele sacrificou na cruz o seu corpo e a sua vida, em grande amor, para a redenção de toda a humanidade. O mundo o vê como desprezível e simples e sem esplendor algum. Eu o vejo como sumo sacerdote, que assumiu os pecados de todos nós sobre os seus ombros. É por isso que o cristão, na qualidade de novo homem, deve estar orientado de tal forma que tenha pensamentos totalmente diferentes do mundo e possa ficar firme, ser feliz e louvar mesmo quando as coisas andam mal e abrigar em sua mente apenas pensamentos como estes: Que ele tem um grande tesouro, mesmo que seja pobre; é príncipe e senhor poderoso, mesmo que esteja na prisão; tem muita força, mesmo sendo fraco e doente; tem toda a honra, embora seja desonrado e humilhado. Esse homem apenas se tornará pessoa com vida nova, caso agora tiver de morrer.
Belisquei-me e senti dor. Era verdade. O Martin Luther acabara de trazer mais uma de suas contribuições, enquanto o som estridente do caminhão de gás se repetia. O Dietrich queria intervir. Mexia no cachimbo, que insistia em apagar devido à má qualidade do fumo que lhe alcancei. Percebendo minha falta de jeito, disse ter fumado fumos piores quando preso pela SS nazista. Ele também queria contribuir no debate. Facilitei sua entrada.
— Vai fundo, Dietrich Bonhoeffer.
— Respeito o Martin. Também penso que ser crucificado é sinónimo de sofrer e morrer rejeitado e repudiado por força da necessidade divina. A cruz é sofrimento necessário. Um cristianismo que não toma o discipulado a sério, que transforma o evangelho ao consolo da graça barata, sempre considera a cruz como desventura. O sofrimento é, pois, a característica dos seguidores de Cristo; é afastamento de Deus e tem que ser suportado para que passe. Ou o mundo tem que suportá-lo e sucumbir sob seu peso, ou ele recai sobre Cristo e é vencido por ele. É dessa maneira que Cristo sofre em lugar do mundo. Exclusivamente o sofrimento de Cristo é sofrimento expiatório. A comunidade dos discípulos chora, ou seja: suporta os sofrimentos. Não é assim, Martin? Ela não se desvencilha dos sofrimentos, como se eles não lhe dissessem respeito, mas os suporta. Ela carrega o que é lhe imposto e o que sobre ela recai por amor de Cristo no discipulado. Esse sofrimento não chega a cansar os discípulos, desgastando-os, tornando-os amargurados, a ponto de se arruinarem. Suportam-no na força daquele que os sustém. Os discípulos carregam os sofrimentos a eles impostos exclusivamente no poder daquele que, na cruz, suportou todo o sofrimento.
Sim, era bom ouvir todos aqueles pontos de vista. Soljenítsin e Arns, mais o próprio Bonhoeffer, já haviam informado que a tortura socialista, capitalista e nazista não difere em nada daquela que vemos praticada pelo judaísmo de então. Jesus experimentara tortura em nosso favor. Seguir Jesus é caminhar descalço em meio a ninhos de cobra. Quando o discípulo João e as Marias viram todo aquele infortúnio, gerado pela morte induzida, choraram: suportaram a dor no poder daquele que sempre alçara voos maiores. Sua crise momentânea era geradora de força para a proclamação contaminada de esperança em meio ao caos. Esperança viva porque nascida da honra ao Senhor; porque nascida do reconhecimento do seu senhorio; porque nascida da conversão diária; porque nascida numa articulação calçada em resistência sob submissão. Quando levantei o rosto do papel, não vi mais nenhum dos meus visitadores. Ouvi um ronco de motor refrigerado a ar. Corri para fora, mas eles já sumiam na esquina. Será que tudo fora um sonho? Talvez! Agora só me resta continuar sonhando...
3. Uma proposta de prédica
Aqui em Florianópolis trabalho quase exclusivamente com adolescentes e universitários, que, às vezes, se confundem. Eles gostam de atuar como agentes da novidade. No culto da Sexta-Feira Santa, vou reconvidá-los a trabalharem a prédica de forma criativa. Isso precisa ser feito com, pelo menos, duas semanas de antecedência.
Penso que um grupo de seis ou sete jovens pode teatralizar, de forma tradicional, a crucificação, tendo o texto proposto como guia. Na peça podem aparecer caracterizados Pilatos, Jesus, os soldados, as Marias e o próprio João. Em 10 minutos essa cena estará completa. Com a morte de Jesus, todos os atores podem paralisar no palco, enquanto que um Martin Luther (caracterizado), um Dietrich Bonhoeffer (caracterizado) e um Rubem Alves passeiam em meio ao cenário, emitindo opiniões durante outros 7 minutos, mais ou menos.
É aí que eu, como oficiante, tento retomar a palavra. Ao tentá-lo sou impedido pelo evangelista, que intervém de forma ativa, contando a estória do pato selvagem. Ao cabo dessa cena, agora sim, eu retomo a palavra. Agradeço aos atores e introduzo a Santa Ceia, colocando as ênfases contextuais do momento. Hoje fomento a necessidade da vivência em gerúndio: é preciso ir carregando a cruz, para ir experimentando vida, a partir da fragilidade da flor e não da eternidade da pedra.
4. Outras propostas de subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor! Guarda-nos de não tomarmos o discipulado a sério. Não queremos transformar o evangelho num consolo de graça barata. Abominamos o entendimento da cruz como desventura. Temos ódio e nojo da mentira e da injustiça. Protege-nos contra a tentação de levarmos a cabo justamente o que não queremos; o que abominamos; do que temos ódio e nojo.
2. Oração de coleta: Senhor! Congrega-nos em torno dessa ideia, que brota dos evangelhos: queremos viver a vida presenteada por ti com posturas que reflitam amor e integralidade. Queremos ser sal e luz, irradiadores do sabor e da indicação do teu Reino. Queremos assumir a cruz que desperta a crise geradora da paz e da graça nesse mundo que ainda é de Deus.
3. Intercessão: Intercedemos pelo Brasil, praticamente todo fora de prumo. Desperta nele a vida que se origina do compromisso. Ele carece de ética em todos os recantos. Implanta em cada um de nós uma fé audaz, que não faz curvas; que segura-se só em ti; que absorve momentos de desespero; que se compromete com o novo céu e a nova terra.
5. Bibliografia
ALVES, Rubem. Poesia, Profecia, Magia: Meditações. CEDI, Rio de Janeiro, 1983, 80 pp.
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. Sinodal, São Leopoldo, 1980, 196 pp.
BARCLAY, William. Juan II. La Aurora, Buenos Aires, 1974, 318 pp.
LUTHER, Martin. Sacrifício pelos nossos pecados, in: Castelo Forte. Sinodal e Concórdia, São Leopoldo e P. Alegre, 1983, 23/03/83.