Prédica: João 12.12-16
Leituras: Salmo 118.1-2,19-29 e Hebreus 9.11-15
Autoria: Roberto Natal Baptista
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 28/04/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Jesus e o jumentinho!
1. Introdução
Escrevo este texto, como muitos colegas, em pleno crescimento dos casos da Covid-19 no Brasil. Vivemos um isolamento social nunca experimentado nessas proporções em nosso mundo. Neste ano de 2020, deveríamos ter celebrado o Culto de Confirmação em nossa comunidade. Mas nosso Domingo de Ramos não pôde ser festejado como o fizemos por muitos anos, junto com os jovens confirmandos e as jovens confirmandas, seus familiares e amigos e amigas. Como será em 2021? Espero que possamos preparar uma bela celebração de Ramos. E que este pequeno texto possa ajudá-los nessa bela tarefa.
Estamos numa das mais importantes datas do cristianismo. Sim! Domingo de Ramos tem uma beleza teatral e uma forte afirmação do tipo de rei que o evangelho nos apresenta. Por isso devemos aproveitar esse momento para realizar um culto especial junto com a comunidade.
O texto-chave para este estudo encontra-se no Evangelho de João 12.12-16. Interessante observar que algo não muito comum acontece aqui. Não são muitas as perícopes de João que se encontram também nos evangelhos sinóticos. É o caso especial dessa porção. Você poderá encontrá-la também em Mateus 21.1-9, em Marcos 11.1-10 e em Lucas 19.28-38. E, claro, nesses três evangelhos elas estão espelhadas e com muito mais informações do que em João. Era de se esperar. As ênfases em João são sempre muito específicas.
Podemos encontrar quatro comentários sobre o texto em Proclamar Libertação. No primeiro deles (PL XI, 1985), Dario Schaeffer faz uma boa análise do contexto na época de Jesus. Vale a pena vê-lo. O segundo estudo apareceu dez anos depois, no PL 20, com Eduardo Gross. Ele faz uma análise verso a verso e aponta para a ambiguidade do ser humano, fato que também abordarei mais adiante. O terceiro, no PL 36, de 2012, com a colaboração de Werner Wiese, também se destaca por sua exegese e as abordagens teológicas do texto. E, por fim, no PL 42, de 2018, Manoel Bernardino de Santana Filho faz uma exegese considerando os fatos presentes no texto de João e lembrando as outras narrativas
dos evangelhos.
As demais leituras para este ano não são as mesmas dos outros auxílios homiléticos que acabei de citar. Porém, o Salmo 118 aparece em dois deles. É fácil perceber sua relação com nosso texto de João 12. Ali vemos uma ode de louvor ao rei entrando pelas portas da cidade para restaurar a justiça de Deus. Nosso texto de Hebreus 9.11-15 nos fala do Jesus sumo sacerdote, que além de entrar pelas portas de Jerusalém como um rei diferente, também entrou no lugar mais sagrado do Templo como um sumo sacerdote diferente.
Uma última consideração nesta introdução. Podemos ler os textos paralelos de João 12 nos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas. Vamos encontrar ali riquezas de detalhes. Portanto a pergunta que podemos fazer seria: qual o particular da narrativa de João? Nosso texto aqui está reduzido aos versos 12 a 16. No entanto, poderíamos ler um pouco antes e um pouco depois. Seria natural.
2. Exegese
Contexto em torno da entrada de Jesus em Jerusalém
O texto de João 12 encontra-se numa circunstância de muita tensão na vida de Jesus e seus discípulos. Domingo de Ramos abre uma semana intensa que todos sabemos onde irá culminar. Mas, antes, temos a narrativa que trata da ressurreição de Lázaro. E o Evangelho de João nos mostra como esse evento trouxe grande impacto ao povo e principalmente às autoridades religiosas. É fácil perceber. Lázaro e suas irmãs, Marta e Maria, amigo e amigas de Jesus, viviam em Betânia, um vilarejo muito próximo de Jerusalém. E eram pessoas conhecidas naqueles arredores. Ao ficar doente, pode-se imaginar que a notícia correu entre amigos e amigas. O evangelho nos diz que Jesus se atrasou propositalmente na sua ida até a casa de Marta e Maria. Elas haviam enviado mensagem a Jesus dizendo da gravidade da saúde de seu irmão. Sabemos que Jesus chegou a Betânia quando já fazia quatro dias desde o sepultamento de Lázaro. E diante do túmulo Jesus ordena: Tirem a pedra! O que veio a seguir foi motivo, como já disse, de grande impacto nas notícias. Ela se espalhou. E levou Jesus até Jerusalém.
Outro ponto que gosto e considero importante é a escolha de um jumentinho. Aqui há algumas informações que não parecem coesas. Em Mateus 11, Jesus ordena a dois discípulos que vão adiante e tragam um jumentinho e sua mãe. Em Marcos 11, e Lucas 19, a narrativa é muito parecida, mas os discípulos deviam trazer apenas o jumentinho, o qual jamais houvera sido montado. Em João não há detalhes de como o jumentinho foi obtido. O importante aqui é a ênfase na citação de Zacarias 9.9, que diz: Alegre-se muito, povo de Sião! Moradores de Jerusalém, cantem de alegria, pois o seu rei está chegando. Ele vem triunfante e vitorioso; mas é humilde, e está montado num jumento, num jumentinho, filho de jumenta. Vamos aos detalhes do nosso texto principal.
Detalhes em João 12.12-16
Esta parte inicia-se dizendo que as pessoas que estavam em Jerusalém para celebrar a Festa da Páscoa ouviram dizer que Jesus estava chegando na cidade. Antes, porém, aparece uma ligação com os textos anteriores: “no dia seguinte”. Que dia será esse? João 12.1 afirma que o que vem a seguir aconteceu no sexto dia antes da Páscoa. Após a ressurreição de Lázaro, Maria, sua irmã, aparece com um bálsamo e unge Jesus. Portanto o v. 12 continua, após esse fato, no dia seguinte. Provavelmente, estamos numa segunda-feira, cinco dias antes do Shabat da Páscoa. Devemos considerar que a Festa da Páscoa durava de um sábado ao outro, ou seja, oito dias. E a população da cidade quadruplicava nesses dias.
No verso 13, lemos sobre a recepção a Jesus com folhas de palmeiras. Mateus nos fala de ramos de árvores e Marcos de ramos que haviam sido cortados dos campos; Lucas refere-se apenas a mantos. O termo “ramos” também pode se referir a um broto novo, um rebento, um renovo. É claro, lembramos os profetas como Isaías 11.11 (o tronco de Jessé sairá um rebento, e das suas raízes, um renovo), de Jeremias 33.15 (naqueles dias e naquele tempo, farei brotar a Davi um Renovo de justiça) ou ainda Zacarias 6.12 (eis aqui o homem cujo nome é Renovo; ele brotará do seu lugar e edificará o templo do Senhor). Esses brotos são declarados como de palmeiras, uma alusão à vitória, ao triunfo, à glória. Todos nos lembramos dos ramos de palmeira concedidos aos atletas vitoriosos na Grécia antiga. De qualquer maneira e acima de tudo, o broto de palmeira é um símbolo da messianidade de Jesus. E estender mantos no chão para a passagem do rei também era uma prática comum. Vemos essa prática, por exemplo, em 2 Reis 9.13, na aclamação do rei Jeú: Então, se apressaram, e, tomando cada um o seu manto, os puseram debaixo dele, sobre os degraus, e tocaram a trombeta, e disseram: Jeú é rei!
Mais forte ainda é o grito popular em João 12.13: Hosana a Deus! Que Deus abençoe aquele que vem em nome do Senhor! Que Deus abençoe o Rei de Israel! É uma clara alusão ao Salmo 118 (veja verso 26, principalmente). A palavra hosana, além de expressar alegria, continha um pedido de salvação no
hebraico: hoshi’anna seria “salve-nos”. Não é uma palavra grega, mas hebraica aramaica. E toda a expressão é claramente encontrada nos outros evangelhos. Portanto não podemos deixar de enfatizar o caráter messiânico dessa passagem. A pergunta que eu já fizera: com que tipo de rei estamos tratando? Os próximos versos nos ajudarão a responder a essa questão.
Os versos 14 e 15 tratam rapidamente da montaria que Jesus utilizou em sua entrada em Jerusalém. Os outros evangelhos gastam mais energia na narrativa. Contudo, João vai direto ao ponto. A montaria tem a ver com o que nos diz o v.15: Povo de Jerusalém, não tenha medo! Veja! Aí vem o seu Rei, montado num jumentinho! Já citara acima a alusão direta a Zacarias 9.9. Mas, afinal, o que é jumentinho? E por que um jumentinho?
O jumento (Equus asinus), asno ou jegue, é uma espécie de “parente” do cavalo (Equus caballus). Os reis ou generais romanos, por exemplo, entravam na cidade, após um retorno vitorioso de uma guerra, montados em potentes cavalos, símbolo do seu poder. Um cavalo é uma montaria, acima de tudo. Representava o poder e a força. O jumento está em outro patamar. Ele tem sido, durante séculos, em várias civilizações, um símbolo do trabalho. Ele é um operário. Trata-se basicamente de um forte e resistente animal de carga. Ele consegue inclusive se equilibrar em regiões montanhosas de difícil acesso. Temos vários exemplos do uso desse animal na história e na própria Bíblia. Algumas poucas vezes, usado como montaria, como, por exemplo, por Abraão (Gn 22.3) e por Balaão (Nm 22.21). Porém o mais importante de tudo é que o jumento era “parte da família” do povo humilde. Jesus, ao escolher esse tipo de montaria, diz claramente que sua escolha tem a ver com o tipo de rei que ele representa: um rei do povo, comprometido com a justiça e com o deleite. Além disso, sua escolha pelo jumentinho nos remete aos textos messiânicos do Primeiro Testamento, como já o vimos.
O v. 16 aponta para a discrição do seu reino. Nem os próprios discípulos o entenderam. Aliás, essa concepção foi e tem sido uma “pedra de tropeço” na igreja cristã. Em tantos momentos de sua história, ela deixou de lado essa compreensão e preferiu adotar as características dos grandes impérios. Basta ver as coroações do papado. Que bom vivenciarmos a escolha de Francisco, que tem procurado minimizar muito essa pomposidade. Na verdade, essa crítica vale para “toda a igreja”. Muito mais ainda aos evangélicos de nossa época, que adoram “cantar” em bom som o reinado de Jesus e suas consequências – por meio da teologia da prosperidade – na vida das pessoas mais humildes. Não! Viva o Jesus do jumentinho!
3. Prédica
Pensamos, então, na prédica. Baseado no que apontamos acima, por mim e outros colegas, precisamos valorizar alguns pontos:
a) O contexto delimitado para este domingo, João 12.12-16, deve ser lido a partir de todo o entorno, antes e depois. Já vimos como foram importantes a ressurreição de Lázaro e a visita de Jesus a Betânia. Maria, irmã de Lázaro, também contribui ao lavar os pés de Jesus com um bálsamo custoso. Em relação à ressurreição de Lázaro: as impressões das pessoas que visitavam Jerusalém por ocasião da Festa da Páscoa e as reações opostas das autoridades religiosas também têm a ver diretamente com nossa perícope. E não esqueçamos: a entrada de Jesus o levará à cruz e ao sofrimento. Claro, não podemos tratar de todos esses fatores na prédica. Cabe a você escolher algo que gostaria de enfatizar no entorno do nosso texto de João.
b) Um jumentinho faz diferença. Como enfatizamos acima, a escolha de Jesus diz coerentemente sobre o tipo de rei que ele é, e com tudo que viveu e ensinou junto aos seus discípulos. Baixar a bola e enfatizar esse rei simples seria muito adequado para o momento que vivemos. Não só pelo momento de dor e sofrimento que estamos passando devido à pandemia da Covid-19 e às duras consequências, principalmente pela nossa falta de estrutura e atenção à saúde em tantos e tantos anos de administração pública, mas também pela necessidade, que, ao meu ver, devemos retomar na figura de um autêntico rei que se identifica com seu povo mais humilde. Sei que não está na moda. Perdemos os conceitos essenciais para um novo momento em que conceitos não são fundamentais. Porém esse ponto é importante para evitarmos essa busca que sempre tivemos por salvadores messiânicos. Lembro uma fala do Dr. Drauzio Varela no programa Roda Viva, quando espectadores pediam sua candidatura à presidência. Ele rechaçou a ideia e enfatizou que devemos descartar essa ideia de um salvador da pátria. Nós devemos mudar a realidade. Com as bênçãos e a ajuda de Deus e do seu modesto rei!
c) Toda vez que me deparo com esse texto, não posso também deixar de enfatizar as controvérsias da natureza humana. Glória e desgraça caminham muito próximas e uma linha tênue as separa. Jesus experimentou esse contraste ao extremo. Chamar a atenção a esse fator, na minha opinião, não deve ser uma opção. Deve ser uma “obrigação”.
d) Finalmente, não podemos nos esquecer da esperança. O texto de João aponta para o sofrimento de Jesus a partir dos acontecimentos do capítulo 11 e 12. E João gasta muitos versos nos últimos discursos de Jesus e na sua despedida junto aos seus amigos. Porém vamos em direção à Páscoa. Esse Jesus montado em um jumentinho nos enche de esperança, mas, acima de tudo, nos chama como comunidade cristã a uma construção de um reino em que a justiça e a solidariedade devem imperar. O amor é o sinônimo do nosso Deus (1Jo 4.8). Não posso imaginar uma comunidade cristã de pessoas centradas em si mesmas e que buscam uma divindade apenas para seus próprios benefícios. Uma comunidade espelhada no rei do jumentinho é acima de tudo uma comunidade fraterna, solidária e que busca o bem comum. Viva o rei do jumentinho.
Bibliografia
BROWN, Raymond E. A comunidade do discípulo amado. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1983.
______. El Evangelio según Juan. Madri: Cristiandad, 1979. 2 v.
GRÜN, Anselm. Jesus, porta para a vida: o Evangelho de João. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2011.
KÜMMEL, Werner. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de São João: análise linguística
e comentário exegético. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1999.
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