Auxílios Homiléticos - Proclamar Libertação



ID: 2911

João 10.22-30 - 4º Domingo de Páscoa - 08/05/2022

Auxílio Homilético

08/05/2022

Prédica: João 10.22-30
Leituras: Salmo 23 e Apocalipse 7.9-17
Autoria: Gerson Acker
Data Litúrgica: 4º Domingo de Páscoa
Data da Pregação: 08/05/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI

Ser ou não ser ovelha? Eis a questão!

1. Introdução

A imagem da “ovelha” como símbolo da pessoa crente é antiquíssima. Talvez por sua mansidão, facilmente incorremos no erro de associar o discipulado cristão à inofensividade e à passividade das ovelhas. As perícopes previstas para o 4º Domingo da Páscoa querem nos ajudar a construir novas perspectivas.

O famoso Salmo 23 é palavra de consolo e fortaleza; não é apenas para “acalmar”, mas também para encorajar quem caminha pelo vale da sombra da morte (v. 4) e quem precisa estar na presença dos meus adversários (v. 5). O texto de Apocalipse 7.9-17 apresenta o consolo que o Cordeiro de Deus oferta aos que vieram da grande tribulação (v. 14), uma analogia aos mártires cristãos que não apostataram de sua fé diante do terror imposto pelo Império Romano. O Evangelho de João 10.22-30 apresenta um dilema discipular: ser ou não ovelha? A partir da pergunta feita pelos judeus sobre sua messianidade, Jesus empodera suas ovelhas e denuncia que “quem poupa o lobo, sacrifica a ovelha” (Victor Hugo).

2. Exegese

O capítulo de João 10 pode ser dividido em três partes. Na primeira parte (v. 1-21), encontramos três imagens que qualificam o pastor como “bom”: o pastor e o ladrão (v. 1-6), a porta (v. 7-10), o pastor que dá a vida pelas ovelhas (v. 11-21). Essa parte encerra com uma ameaça à vida de Jesus, na qual ele é acusado de estar endemoniado. A segunda parte (v. 22-39) é uma espécie de epílogo da perícope anterior, visto que retoma a mesma temática: ovelhas, conhecer-se, seguir, escutar a voz, doação da vida. Assim como a parte anterior, essa também encerra com uma ameaça à vida de Jesus, desta vez uma tentativa de prendê-lo. Na terceira e última parte (v. 40-42), trata-se de uma conclusão, na qual o evangelista João faz referência a João Batista com a finalidade de repetir mais uma vez que o Batista é inferior a Jesus. A perícope prevista para a pregação encontra-se na segunda parte.

O texto bíblico inicia localizando temporal e geograficamente a cena: é inverno, provavelmente pelo fim de dezembro. Jesus está no templo, mais precisamente no Pórtico de Salomão, durante a Festa da Dedicação. Essa festa lembrava a purificação do templo de Jerusalém, consequência da vitória de Judas Macabeu sobre Antíoco IV (1Mac 4.36-59; 2Mac 1.9-18; 10.1-8), que durante três anos usou o altar do templo para oferecer sacrifícios ao deus grego Zeus. Assim sendo, a festa representava a expulsão dos elementos estrangeiros do centro religioso e a recuperação da identidade judaica baseada na pureza ritual e no exclusivismo étnico e religioso.

O templo era um dos mais importantes elementos de agregação e identidade da comunidade judaica. Mas essa identidade estava sendo ameaçada com as afirmações que Jesus fazia sobre si, sobre Deus e sobre a natureza da relação com Deus. Jesus propunha uma relação de fé e confiança com Deus, em detrimento de normas de pureza e ritos estipulados pela Lei, relativizando a centralidade do templo. Logo, isso podia ser entendido como ameaça à identidade de diversos grupos no judaísmo. Flanagan sintetiza a intencionalidade teológica do evangelista da seguinte maneira: “João pode muito bem ter pretendido uma ligação entre Jesus como aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo e a festa da dedicação, comemoração da consagração do Templo depois da profanação síria. Se assim for, essa é mais uma tentativa de João de mostrar como Jesus substituíra as instituições judaicas” (FLANAGAN, 1999, p. 124).

É fácil perceber o conflito entre a sinagoga e as comunidades cristãs no tempo em que João escreve o seu evangelho. A sinagoga, tentando reencontrar sua rígida identidade, decidira expulsar os judeus que aderiram à fé em Jesus. Procurava dissuadir os cristãos inseguros, alegando-lhes que ele não era o Messias, o Cristo. Contudo, João mostra que a fé em Jesus deve ser mantida tendo em vista as suas obras de amor.

O debate entre Jesus e os judeus (a NTLH traduz como “povo”) assume formas de processo público. A questão em debate é se esse “Jesus-ameaça” é o Messias. Evidentemente, os judeus não entenderam as imagens sobre o bom pastor (v. 1-21) e por isso desejam uma declaração explícita: Se tu és o Cristo, dize-o francamente (ARA). É importante perceber que a incredulidade não está na falta de clareza. Jesus sempre falou claramente e suas obras testemunham em seu favor (v. 25). O povo não acredita, porque não são suas ovelhas (v. 26).

Jesus afirma que as minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu as conheço, e elas me seguem (v. 27 ARA). Três verbos ganham destaque e indicam a profundidade da relação entre Jesus e as pessoas que em torno dele se congregam: ouvir, conhecer e seguir. É imprescindível “ouvir” a voz do pastor. O verbo “conhecer” expressa uma relação existencial, profunda, íntima com o Cristo. O verbo “seguir” significa aderir a seus ensinamentos, às suas propostas e ser cúmplice de seu projeto. Logo, conhecer e seguir culminam no discipulado!

O bom pastor não apenas dá a vida pelas ovelhas, ele promete a vida eterna e que ninguém as arrebatará de sua mão (v. 28). A promessa de Jesus para quem ouvir sua voz e seguir sua proposta é de vida eterna. Em meio a um ambiente hostil, no qual viviam as primeiras comunidades cristãs, as palavras de Jesus oferecem segurança e fortalecem a comunidade a continuar resistindo. A verdadeira comunidade que segue os princípios de Cristo não poderá ser arrebatada ou destruída, porque Deus é mais forte do que tudo e todos. Por isso é possível interpretar a expressão aquilo que é maior do que tudo (v. 29) de duas formas. A primeira, como a autoridade concedida pelo Pai ao Filho; a segunda, como a comunidade (as ovelhas) sendo o maior bem que Jesus recebeu de Deus. Esse bem precioso ficará bem guardado sob a proteção de Deus.

A afirmação eu e o Pai somos um (v. 30) pode ser compreendida em dois sentidos. O primeiro aponta para a filiação de Jesus e Deus. Joachim Jeremias afirma que no Evangelho de João o termo “Pai” quase se tornou sinônimo de Deus. Obviamente essa interpretação causa grande escândalo entre os judeus. Em segundo, eu e o Pai somos um pode ser entendido como união de propósito, ou seja, Jesus comparou o modo como ele e o Pai são “um”, com o modo como ele queria que os discípulos fossem “um”.

3. Meditação

As ovelhas são animais gregários, sensíveis e inteligentes, são capazes de distinguir diferentes expressões da face de outros integrantes do rebanho, identificar os componentes do grupo, lembrar-se de acontecimentos ocorridos há dois anos e reconhecer a voz do seu pastor. As ovelhas não têm dúvidas quando o assunto é reconhecer o seu tutor. Penso que não somente a voz, mas a forma de manejo e a forma de agir do pastor faz com que as ovelhas o identifiquem e tão logo o sigam.

O capítulo 10 de João é um verdadeiro “aprisco” no qual a temática do pastor e de suas ovelhas é desenvolvida com diversas nuanças. Na perícope em estudo, há uma pergunta central dirigida a Jesus: Você é ou não o Messias? (v. 24c NTLH). No contexto das primeiras comunidades cristãs, responder a essa pergunta representava algo identitário, no mundo pós-moderno, com seus próprios desafios e tantos “falsos messias”, essa questão precisa continuar sendo pauta.

Jesus deixa evidente ao longo de seu ministério que sua forma de viver e sua forma de pregar são inseparáveis. Seu falar e seu agir apontam para a íntima relação que ele tem com o Pai. Sua pregação e suas ações (curar, salvar, ensinar) mostram sinais da vida eterna. Portanto os discípulos e as discípulas de Jesus do passado e do presente reconhecem o messias como aquele que com palavras e ações prega o amor e aponta para o reinado de Deus. Aqueles que não creem nisso, não são minhas ovelhas (v. 26b), diz Jesus.

Confesso que tenho um pouco de dificuldade com esse tipo de sentença de exclusão. Como comunidades cristãs, buscamos ser inclusivas e acolhedoras, mas não podemos obrigar ninguém a seguir Cristo – exceto que tenhamos uma visão doentia e deturpada do que é a missio Dei. Há que se perceber que algo essencial está em discussão – o ser ou não ser ovelha é uma questão de escolha! Ser ou não ser ovelha é questão de fé. Porém, uma vez a escolha sendo feita, o ser ovelha aponta para uma existência de constante discipulado. O que identifica uma ovelha, segundo o evangelista João, é o escutar, o conhecer e o seguir o pastor. Sejamos sinceros conosco mesmos, nossos “apriscos-comunidades” estão cheios de ovelhas surdas, que não conhecem plenamente o evangelho e que têm dificuldades de seguir o bom pastor.

Não podemos romantizar o discipulado! Optar por ser ovelha é um constante desafio. É romper com a ideia de que o ser ovelha é sinônimo de  passividade e permissividade diante das atrocidades do mundo. Jesus colocou-se diante do sistema político-religioso-social do seu tempo, denunciando os abusos e sinais de morte. Ser ovelha é comprometer-se com a causa revolucionária do evangelho, como escreve George Orwell no livro “A revolução dos bichos”:

Nascemos, recebemos o mínimo alimento necessário para continuar respirando, e os que podem trabalhar são exigidos até a última parcela de suas forças; no instante em que nossa utilidade acaba, trucidam-nos com hedionda crueldade. Nenhum animal, na Inglaterra, sabe o que é felicidade ou lazer, após completar um ano de vida. Nenhum animal, na Inglaterra, é livre. A vida do animal é feita de miséria e escravidão: essa é a verdade, nua e crua. Será isso, apenas, a ordem natural das coisas? Será esta nossa terra tão pobre que não ofereça condições de vida decente aos seus habitantes? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, o clima é bom, ela pode dar alimento em abundância a um número de animais muitíssimo maior do que o existente [...] (ORWELL, 2007, p. 7).

Jesus é um personagem incômodo, ontem, hoje e sempre. Suas ovelhas também precisam ser. Não podemos ser coniventes e mansos diante da miséria e da escravidão disfarçada de inúmeras formas. Precisamos assumir nosso compromisso discipular de defender a vida em abundância e a certeza de que ninguém pode nos arrancar da mão de Deus (v. 29).

4. Imagens para a prédica

Conhecer bem a comunidade e suas necessidades é fundamental para o processo de escolher a melhor forma de abordar e conduzir a reflexão do evangelho. Tendo isso em mente, sugiro três opções de imagens para iniciar a prédica ou usar em alguma exemplificação.

4.1. Uma pequena história: “Um estranho certa vez declarou a um pastor sírio que as ovelhas conheciam a roupa e não a voz de seu amo. O pastor disse que era a voz que elas conheciam. Para provar isso, trocou de roupa com o estranho, que se meteu entre as ovelhas com a roupa do pastor, chamando as ovelhas imitando a voz do pastor, e tentando guiá-las. Elas não reconheceram sua voz, mas, quando o pastor as chamou, embora estivesse disfarçado, as ovelhas correram de imediato em resposta à sua chamada” (RICE, Edwin Wilbur. Orientalisms in Bible Lands. p. 159-161).

4.2. Tematizar o discipulado a partir dos três verbos que ficam em evidência no v. 27: escutar, conhecer e seguir. Escutamos o chamado? Nós nos (re)conhecemos como ovelhas? Seguimos de maneira fiel o bom pastor?

4.3. Utilizar a citação do livro “A revolução dos bichos” ou fazer menção ao livro. A obra de Orwell é uma fábula sobre o poder. Narra a insurreição dos animais de uma granja contra seus donos e critica de forma (in)direta a corrupção dos governantes e a fraqueza dos que se deixam manipular por eles. Um lembrete às ovelhas de que precisam ter postura crítica frente aos acontecimentos que se desenrolam no mundo em que vivemos.

5. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Amado Jesus, não nos portamos como tuas ovelhas. Nós nos acomodamos. Nós silenciamos. Nós nos tornamos coniventes com a realidade do pecado. Pedimos perdão por nosso testemunho discipular ser tão pífio! Desejamos ser tuas ovelhas, desejamos ser teus discípulos e discípulas, embora muitas vezes não nos demos conta do que isso realmente significa. Na certeza de que nada nem ninguém poderá nos arrancar das tuas mãos, nos abrigamos sob tua misericórdia. Tem piedade de nós, Senhor! Amém.

Oração do dia: Amado Deus, tu nos congregas qual pastor reúne o seu rebanho. Envia-nos teu Santo Espírito para que nos ilumine e nos mantenha um rebanho unido. Que possamos ouvir tua voz, reconhecer tua presença e seguir todos os teus ensinamentos. Por Cristo, o bom pastor, que vive e reina contigo e o Espírito Santo hoje e eternamente. Amém.

Bibliografia

BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno (Orgs.). Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1990. v. 1.
FLANAGAN, Neal M. João. In: BERGANT, Dianne; KARRIS, Robert J. (Orgs). Comentário Bíblico. São Paulo: Loyola, 1999. v. 3.
JEREMIAS, Joachim. A mensagem central do Novo Testamento. 3. ed. São Paulo: Paulinas, 1986.
MOTA, Sônia; KILPP, Nelson. Ninguém as arrebatará da minha mão (Jo 10,27-30). Disponível em: .


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Autor(a): Gerson Acker
Âmbito: IECLB
Área: Celebração / Nível: Celebração - Ano Eclesiástico / Subnível: Celebração - Ano Eclesiástico - Ciclo da Páscoa
Área: Governança / Nível: Governança - Rede de Recursos / Subnível: Governança-Rede de Recursos-Auxílios Homiléticos-Proclamar Libertação
Natureza do Domingo: Páscoa
Perfil do Domingo: 4º Domingo da Páscoa
Testamento: Novo / Livro: João / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 22 / Versículo Final: 30
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2021 / Volume: 46
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 68598

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