Prédica: João 1.10-18
Leituras: Jeremias 31.7-14 e Efésios 1.3-14
Autoria: José Kowalska
Data Litúrgica: 2° Domingo após Natal
Data da Pregação: 03/01/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
O Logos encarnado
1. Introdução
A véspera de Natal fica cada vez mais longe e no imaginário popular a festa do Natal já passou. Mas o tempo de Natal se estende até a celebração da Epifania, 06 de janeiro. Por isso estamos no 2º Domingo após Natal. Continuamos a celebrar o mistério da encarnação de Cristo. Utilizando a terminologia de João, o Verbo que se fez carne e habitou entre nós.
No lecionário contamos com uma só série de leituras no ciclo trienal. Por um lado, isso mostra que não é comum a celebração deste domingo, já que nem sempre podemos ter um segundo domingo após o Natal. Por outro lado, esse grupo de leituras segue os casos de datas específicas em que a temática do evangelho é seguida pelos outros textos bíblicos. O hino do profeta Jeremias está relacionado com a volta do povo exilado a Israel. Nesse poema Deus mesmo se coloca como aquele que traz uma nova vida, que liberta e permite que a alegria volte aos corações. A Carta aos Efésios retoma e aprofunda a intermediação de Cristo para recebermos a graça divina por meio da predestinação, para ser parte das pessoas que acreditam. Paulo aqui lembra aquilo que recebemos, a consequência da nossa união com Cristo.
No presente auxílio serão utilizados os v. 10-18, evitando assim uma possível duplicidade de leitura e pregação em relação ao 3º Domingo de Advento.
2. Exegese
Interessante notar que, apesar de estar presente em todas as traduções para o português, o sujeito da primeira frase do v. 10, Palavra/Verbo (Logos), não está presente no texto bíblico. Aqui é feita uma nova referência ao v. 1, onde sim está explicitado o sujeito. Por isso se faz necessária uma breve explicação sobre o conceito Logos.
Geralmente o título Logos é considerado como a expressão mais elaborada de toda a cristologia neotestamentária. Em todo o Novo Testamento, ele só é encontrado nos textos da escola joanina: no prólogo do evangelho, no início da primeira epístola e em Apocalipse 19.13. Colocar o título Logos no prefácio do Evangelho de João demonstra que é indispensável relacionar a revelação divina na vida de Jesus e a revelação na preexistência. Uma age na outra.
A relação do título Logos com Jesus só pode ter-se dado depois da morte de Jesus. É uma reflexão teológica que pressupõe uma experiência litúrgica. Assim sendo, as afirmações referentes ao Logos são fruto de uma reflexão profunda sobre a vida de Jesus, que é a revelação central de Deus. O Logos é Deus em ação.
Outro aspecto interessante é a intervenção do Logos na criação. Por meio dele todas as coisas foram criadas, pois ele mesmo já estava junto a Deus no começo. Isso coloca um paralelo inevitável com o início do livro de Gênesis, onde também, no início, Deus criou todas as coisas. Assim, o Logos é também cocriador, ao ser ele o intermediário da criação das coisas. Isso demonstra a divindade do Logos ao ter uma das características de Deus: a criação. É colocada tanta importância no Logos, que sem ele coisa nenhuma foi criada, senão por ele (Jo 1.2-3).
Para João, a boa nova é que o Logos já não age em forma espiritual, não é mais uma realidade transcendente. Agora, encontra-se na forma de um homem, o Logos converte-se em humano. Permanecendo o que era, o Logos revelou-se na carne, ou seja, revelou-se realmente na forma humana. A pessoa de Jesus não deve se entender como um segundo Deus, mas como Deus mesmo encarnado. Deus se faz presente e conhecido pelas pessoas na forma humana de Jesus. Porém foi o Logos, Deus em sua revelação escatológica, que se tornou homem, não o próprio Deus em si. E ainda mais, Jesus é o Logos encarnado, não o Logos em si.
De forma geral, no texto em estudo, apresenta-se a dialética entre o anterior e o novo. Nos v. 10-12, o Logos veio para aquilo que era seu, ou seja, seu grupo, mas não foi reconhecido. Por isso surge um novo grupo, que, sim, o recebe e reconhece. No v. 13, encontra-se a diferenciação entre aquilo que está relacionado com o humano (carne/sarks) e o divino, aqui sendo usado o caso do nascimento/paternidade. No v. 17, está colocado de forma contrastante o recebido por Moisés (lei) e por Jesus Cristo (graça e verdade). Por último, no v. 18 é ressaltada a maior diferença em nossa perícope: a proximidade de Jesus como o unigênito de Deus que está no seio do Pai, em contraste com qualquer outra pessoa.
Jesus Cristo, o Logos encarnado, é apresentado como tendo uma relação única com Deus Pai. Vemos isso no v. 10, pela intermediação na criação do cosmos, no v. 14, na revelação da natureza divina ao mostrar a sua glória e no v. 18, ao revelar de forma única a Deus. Tudo isso sendo completado com o testemunho de João Batista, relatado no v. 15. Em nove versículos, encontramos quatro vezes o reforço do evangelista para mostrar que aquele a quem ele reconhece como Senhor é totalmente diferente daquilo que se tinha previamente em termos humanos.
Em termos estruturais, não podemos encontrar uma estrutura facilmente delineável. Mas pode-se ver que o v. 10a introduz a intermediação na criação do kosmos. Neste caso, kosmos pode ser entendido não somente como a suma da totalidade das coisas criadas (universo, criaturas, toda a humanidade), mas também como cenário de alegrias e sofrimentos. Assim, a encarnação do Logos se faz para dentro do mundo das relações humanas. Daí que, como indica no v. 10b e 11, os seus, a sua “gente” (ou como interpreta NTLH “seu país/seu povo”) não o receberam.
Depois, nos v. 12 e 13, segue a novidade com a diferenciação entre biologia e teologia, entre ser filho, ser filha pelo sangue e carne ou ser filho ou filha porque se teve fé. Aqui encontramos a chave hermenêutica da fé para o recebimento do Cristo e a sua mensagem de salvação.
O v. 15 é colocado como um enxerto nesse hino no início do evangelho. O testemunho de João Batista, que em parte já foi relatado nos v. 6 a 9 e que será depois mais detalhado nos v. 19 a 34, indicam uma relação entre ambos os grupos de seguidores. A indicação direta de João Batista: Este é aquele de quem eu falei, que vem depois de mim, traz o cumprimento da profecia messiânica.
O v. 14 traz a provisoriedade do Logos neste kosmos sob sarks. Pois ele não fixa residência, mas morou em tendas (de skēnē). Assim sendo, a presença do Logos “entre nós” estava designada como temporária, mesmo que de muita importância para aquelas pessoas que acreditaram nele (v. 12). Os v. 14 e 16-18 trazem o resultado da presença temporária: ver a sua glória, o recebimento de graça/charis (não como NTLH que indica no v. 14, amor e no v. 16, bênção) e da verdade. Além de tudo, isso completa com a revelação do Pai. Esse resultado é entendido como sendo assumido por aqueles que leem ou cantam esses versículos, pois estão escritos na primeira pessoa do plural (habitou entre nós, vimos a sua glória, todos nós temos recebido). Ponto a ser considerado na reflexão posterior do texto.
3. Meditação
Em tempos de fake news e pós-verdades, como receber a notícia da encarnação? Será verdade verdadeira ou simples invenção? Por que é tão importante que Cristo tenha realmente encarnado? Não seria melhor ter simplesmente um Deus que estivesse além de tudo isso que está acontecendo? Por que tinha que ser diferente e único em relação a Jesus Cristo? Era preciso uma linguagem tão complicada para expressar algo tão natural como o nascimento de um bebê? Essas e muitas outras perguntas surgiram ao mergulhar no texto em estudo. Talvez você consiga responder algumas, outras ficarão para a volta gloriosa de Cristo. Mesmo assim, é bom se questionar sobre um dogma que dividiu a igreja em seus inícios e em relação ao qual até um imperador romano teve que intervir.
Voltemos para nossa realidade e a necessidade de encarnar também o texto bíblico para a nossa vida. Ainda estamos no tempo do Natal, mas a magia natalina já passou. Estamos na ressaca do réveillon, com todas as esperanças colocadas num 2021 que seja melhor do que o ano anterior, que veio com todos os problemas decorrentes da pandemia. As pessoas têm seus olhos fixos no que virá, não no que foi. Mesmo assim, temos o desafio de pregar sobre a encarnação do Logos.
Querendo ou não, Cristo se fez carne e, a cada ano, nos lembramos desse fato tão importante no Natal. Assim, Cristo sempre foi. O problema são as pessoas que não o querem reconhecer como realmente ele é. Não estamos falando daquelas pessoas que não acreditam em Deus. Falamos daquelas pessoas que normalmente lotam as igrejas pelas festas do Natal. Cabe perguntar-lhes o que elas celebraram no último 24 ou 25 de dezembro. Será que realmente fizeram que nem João Batista e testemunharam a vinda de Cristo?
Pensemos de forma positiva. Pensemos como geralmente o fazemos. Nós estamos do lado certo, fazendo sempre as coisas de forma correta. Assim como também as pessoas que celebraram o último Natal. Todos nós cremos e somos pessoas cristãs com plena consciência de quem é Cristo para nós e da sua relação especial com o Pai.
Recebamos a boa notícia, aquilo que Cristo nos transmitiu. Sim, podemos crer porque nascemos da vontade divina e podemos nos orgulhar de sermos chamados filhos e filhas de Deus. Para as pessoas cristãs, a chave para conhecer Deus é Cristo. Eis aqui a nossa especificidade diante do mundo religioso. Para nós, “Cristo” é a senha que nos leva a um novo nível no jogo da vida, chegamos à plenitude. Vemos a Deus por meio da glória de Cristo e descobrimos uma forma diferente de viver.
Importante ressaltar que por intermédio de Moisés recebemos a lei; por intermédio de Cristo, graça e verdade. Como pessoas de confissão luterana, encontramos este duo: lei e evangelho. A lei é dura, cortante. O evangelho é acolhedor. Muitas vezes, esquecemos que seguimos Cristo, o Logos encarnado, aquele que mostra a real face de Deus. Pois só ele a viu e a revelou para nós.
A revelação de Deus se dá numa pessoa de carne e osso, uma pessoa concreta e real. Não é fake nem pós-verdade. Não é um meme que circula nas redes sociais. Mas traz muita alegria aos corações que a recebem. É uma notícia libertadora reconhecer que Cristo é aquela pessoa que foi tão humana, que somente podia ser divina, e que essa pessoa realmente viveu como nós. Não é preciso deixar nossa humanidade para seguir Deus, ao contrário, em nossa humanidade é onde vivemos como pessoas cristãs.
Mais do que um culto de decisão, de saber-se convencido de poder se entregar ao Senhor, estamos hoje diante de uma pregação que mostra tudo aquilo que Deus fez por nós. O início do Evangelho de João traz uma dimensão que muitas vezes é esquecida no mundo ocidental: a face graciosa de Deus. A quem procuramos? A quem pregamos? A quem seguimos?
4. Imagens para a prédica
Extrato de A Gaia Ciência, de Friedrich Nietzsche
Acaso você ouviu falar daquele louco que acendeu uma lanterna nas claras horas da manhã e correu à praça do mercado gritando incessantemente: “Eu procuro Deus! Eu procuro Deus!”. Como muitos dos que não acreditam em Deus estavam por lá naquele momento, ele provocou muito riso. “Por que, ele se perdeu?”, disse um. “Terá sido esquecido pelo caminho como uma criança?”, disse outro. “Quem sabe está se escondendo?”; “Será que tem medo de nós?”; “Talvez tenha ido viajar?”; “Ou emigrado?”. Assim eles gritavam e riam. O louco pulou no meio deles perfurando-os com seus olhos.
“Aonde foi Deus”, gritou ele. “Eu lhes direi. Nós o matamos – vocês e eu.
[...] o louco se calou e olhou novamente para os seus ouvintes; e também eles estavam em silêncio, olhando-o com estranheza. Finalmente, ele arremessou no chão sua lanterna, que se quebrou e se apagou. “Eu vim cedo demais”, disse ele; “meu tempo ainda não chegou”.
A brincadeira “Onde está o bebê?”
Outra simbologia que pode ajudar a explicar o texto é aquela brincadeira feita com bebês pequenos, em que as pessoas escondem o rosto atrás das mãos ou de um material e com a face “escondida” perguntam: onde está o bebê? Depois disso afastam as mãos ou aquilo que impedia de ter uma visão direta da criança e diz: achou!
5. Subsídios litúrgicos
Credo Niceno-Constantinopolitano
Dentro do contexto da encarnação do Logos, consideramos importante a possibilidade do uso, neste culto, do credo que remarca de forma especial, por um lado, a humanidade de Cristo e, por outro, a divindade de Jesus. Seria bom ressaltar na costura as seguintes frases: “Filho unigênito de Deus”, “por quem todas as coisas foram feitas” e “o qual por nós homens [ressaltar aqui a necessidade da linguagem inclusiva] e pela nossa salvação desceu do céu”.
Oração de confissão de pecados
Deus, perdoa-nos ao não reconhecermos Jesus como aquele que tu enviaste ao mundo para trazer a graça e a verdade. Com nossas atitudes e ações, mostramos que não o recebemos em nossos corações. Permite-nos que nos lembremos de que somos teus filhos e tuas filhas porque renascemos para novidade de vida por meio do Batismo. Dá-nos teu Espírito, para que possamos cada dia testemunhar com palavras e gestos aquele que veio para salvar o mundo, Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém.
Bibliografia
CULLMANN, Oscar. Cristología del Nuevo Testamento. Buenos Aires: Methopress, 1965.
O GRANDE TEATRO DO MUNDO. O louco: De A Gaia Ciência de Friedrich Nietzsche. Chemnitz, 1882 d.C. Disponível em:
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