Prédica: Jeremias 23.1-6
Leituras: Marcos 6.30-34,53-56 e Efésios 2.11-22
Autoria: Vítor Hugo Schell
Data Litúrgica: 9º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/07/2018
Proclamar Libertação - Volume: XLII
A corrupção dos pastores de Israel e o Renovo do Senhor
1. Introdução
O texto de Jeremias 23.1-6 deve ser analisado a partir da atividade de Jesus Cristo como o Messias, como bom pastor que se compadece de seu povo por estar perdido e desorientado como ovelhas sem pastor, como relatado pelos textos do evangelho de Marcos 6.30-34,53-56. A imagem trazida pelo evangelista no episódio da multiplicação dos pães é a mesma: o povo é o rebanho que precisa ser apascentado e que se mostra exausto, carente e sem esperança. O v. 34 descreve de forma plástica a atitude de Jesus diante daquela situação. Jesus é “impactado em suas entranhas” (esplanchnisthē). A revolta de Jesus é a demonstração da mesma revolta que é apresentada no texto do profeta Jeremias, pela situação em que se encontra o povo sob seus “pastores”. Tanto a multiplicação dos pães, relatada nos v. 35 a 44, quanto o fato de ter ido na direção dos discípulos andando sobre as águas e a cura de enfermos que eram trazidos à presença de Jesus (v. 53-56), apontam para o cumprimento da palavra de Jeremias 23.5, ou seja, Jesus é o Renovo justo prometido por Deus, e com ele são chegados os dias da execução do juízo e da justiça na terra.
O texto de Efésios 2.11-22 aponta para o aspecto da reunião do povo de Deus, composto de judeus e gentios, através daquele que evangelizou paz àqueles que estavam perto e aos que estavam longe (Ef 2.17). Aqueles que viviam sem esperança e sem Deus no mundo (v. 12), como estrangeiros e peregrinos, são feitos agora parte do rebanho, parte da família de Deus (v. 19).
2. Exegese
O texto da prédica se encontra no final de uma profecia que diz respeito aos “pastores de Israel”. Depois de descrever a forma vergonhosa como Israel havia se prostituído, abandonando o Senhor, buscando auxílio político seja no Egito ou junto aos assírios (cf. 2.18,36,37), servindo a deuses inúteis e indo atrás dos baalins (cf. 2.11,23,25) e depois de descrever a desgraça que sobrevirá sobre o povo como consequência do seu pecado (cf. 4.6), o Senhor fala contra as lideranças do povo, os responsáveis pela corrupção de Israel. Tanto sacerdotes como intérpretes da lei e profetas e demais líderes do povo estão em rebelião: Os sacerdotes não perguntavam pelo SENHOR; os intérpretes da lei não me conheciam, e os líderes do povo se rebelaram contra mim. Os profetas profetizam em nome de Baal, seguindo deuses inúteis (2.8, veja também 5.31). Todas essas lideranças do povo são os assim chamados “pastores” que “destroem e dispersam as ovelhas”, aos quais o Senhor dirige sua palavra em várias partes de Jeremias.
No capítulo 22 encontra-se a palavra que o profeta deveria pronunciar no palácio do rei de Judá, àquele que se assentava no trono de Davi (cf. 22.1ss). O capítulo 22 nos traz ainda a descrição de uma sequência de reis corruptos e idólatras, a quem é proclamado o juízo, uma vez que constroem palácios por meios corruptos, seus aposentos, pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem pagar-lhe o devido salário (22.13), uma vez que não veem nem pensam noutra coisa além de lucro desonesto, derramar sangue inocente, opressão e extorsão (22.17). No final do capítulo 22 temos, então, as palavras proféticas de Jeremias a respeito de Joaquim, que deportado pelos babilônios (leia 2Rs 24.8-17), é substituído por seu tio Zedequias, que governou Judá de 598-587 a.C. até a plena derrocada de Jerusalém sob Nabucodonosor (2Rs 25).
O texto da prédica pode ser dividido em duas partes principais: 1) Os versículos 1 e 2 descrevem a realidade das lideranças de Israel e confirmam tanto seu pecado quanto o castigo que virá sobre eles por causa de seu mau procedimento; 2) a partir do versículo 3, o próprio Senhor se apresenta como aquele que reunirá o seu rebanho e estabelecerá outros pastores que cuidarão dele. Em Jeremias 23.7-8, após o texto da prédica, o retorno do remanescente de Israel do exílio babilônico, conforme a promessa que encontramos no texto da prédica, é apresentado como novo marco da história de salvação do Senhor a ser recordado pelas gerações futuras.
O primeiro versículo do texto da prédica é iniciado com o juízo descrito por meio de um “ai” onomatopeico que expressa a dor reservada pelo Senhor aos pastores de seu rebanho. Os pastores de Israel, justamente os que deveriam tomar conta do povo, são os mesmos que “não cuidaram dele”. Na segunda ocorrência do mesmo verbo, pāqaḏ, seu significado é “castigar”, sendo que o próprio Senhor é quem então “castigaria” esses pastores, ou seja, cuidaria dessa situação fazendo justiça. Temos aqui um claro jogo de palavras com esse verbo. Os dois primeiros versículos utilizam-se de conhecidas metáforas do mundo bíblico: pastores, ovelhas, rebanho. O povo de Deus é comparado ao rebanho que é confiado a pastores, para que esses o conduzam. São imagens riquíssimas, muitas vezes encontradas como forma de evidenciar o relacionamento de Deus com seu povo, como lemos por exemplo no Salmo 23, o conhecido “salmo do pastor”, ou até mesmo pelo próprio Cristo ao falar de sua obra como o “bom pastor”, como lemos em João 10.1ss.
O texto de Ezequiel 34 é um importante paralelo. Trata-se também de uma profecia contra os “pastores de Israel”. A partir de Jeremias 23.3, o Senhor afirma que será ele mesmo aquele que reunirá o remanescente do seu rebanho destruído e disperso (v. 1) e os levará à pastagem para que cresçam e se multipliquem (v. 3). Ao contrário dos “pastores” que dispersaram e expulsaram (v. 2), o Senhor reunirá e trará de volta à pastagem (v. 3). O Senhor mesmo estabelecerá pastores para cuidarem do rebanho (v. 4). A expressão “dias virão” não faz referência a um tempo em particular, mas captura a atenção para a proclamação solene que aparece a seguir (compare, p. ex. Jr 7.32; 9.25 e 31.31). A reunião do rebanho, assim como seu sustento, será providenciada pelo próprio Senhor. Ele é quem dará ao povo sustento e fertilidade. Não seriam as negociações dos governantes idólatras nem a semente de Baal que traria esse novo tempo, mas o agir gracioso de Deus. A identidade do “Renovo Justo”, levantado por Deus, o nome pelo qual seria chamado, seria “O Senhor é a nossa Justiça”. Deus, ele mesmo, seria a justiça e cumpriria a justiça. Nada do que é dito sobre esse Renovo (o que brota das raízes de uma árvore caída) pode ser dito em relação aos reis em Israel. Seu reino é de sabedoria e ele fará o que é justo e certo, Judá será salva, Israel viverá em segurança. Ainda que o nome Zedequias, o rei que estava no comando por ocasião da queda de Jerusalém sob os babilônios, signifique “o Senhor é a minha justiça”, também ele acabou em ruína e pecado (2Rs 24.19). O Renovo Justo, chamado “o Senhor é a Nossa Justiça”, da dinastia restaurada de Davi, esse sim traria de fato algo novo (compare com Jr 33.14ss, onde num crescendo, a própria cidade sob a marca desse Rebento de Davi seria chamada “o Senhor é a nossa Justiça”). A profecia sobre o Renovo Justo, que tem seu cumprimento parcial em Zorobabel, em um novo momento de restauração para o povo cumpre-se plenamente em Jesus Cristo.
3. Meditação
O texto da prédica pode ser considerado como um dos pontos altos da profecia de Jeremias, na medida em que deflagra a destruição e dispersão do povo, causadas justamente por aqueles que deveriam edificar e reunir. O texto aponta para a situação, em especial, sob o comando dos últimos reis de Judá antes do exílio babilônico; é interessante pensarmos que aqui os reis são considerados pastores, ou seja, os governantes políticos são considerados como pastores do povo. Eles são maus pastores! Governo político é, nesse sentido, “pastorado”, serviço ao Senhor.
Podemos identificar facilmente a conexão entre nossas experiências com as lideranças políticas de nosso tempo e os pastores do povo de Deus, criticados no texto de Jeremias. Aqueles que eram responsáveis por guiar, cuidar, mostrar o rumo, são justamente aqueles que se tornam um peso ao povo, naqueles que maltratam e matam as “ovelhas”. São mercenários, “ladrões e salteadores” (cf. Jo 10.8-12). A descrição trazida por Jeremias 22.13-17,22 é muito atual, pois também os nossos governantes, infelizmente, poderiam ser descritos com as mesmas palavras A maioria deles edifica seus palácios por meios corruptos, seus aposentos, pela injustiça, fazendo os seus compatriotas trabalharem por nada, sem pagar-lhe o devido salário (22.13), uma vez que não veem nem pensam noutra coisa além de lucro desonesto, derramar sangue inocente, opressão e extorsão (22.17).
Não é muito difícil associarmos a palavra de Jeremias com os eventos recentes em nosso país. Pensemos apenas nos desdobramentos da famosa “Operação Lava Jato” da Polícia Federal, se o que se vê não é justamente corrupção sem fim, injustiça, opressão e extorsão, enquanto tantos compatriotas morrem em filas de hospitais, trabalham sem ver o resultado desse trabalho e sem ter o mínimo para seu sustento, enquanto palácios são construídos, joias e viagens são compradas com dinheiro de lucro desonesto. Fala-se em propinas de milhões de reais com grande naturalidade.
A idolatria praticada e incentivada pelos “pastores” do povo reflete na situação de calamidade e confusão em que o povo se encontra. No pano de fundo da desgraça do povo está o abandono ao Senhor e a prática da religião de Baal. A busca por socorro, a busca por outras fontes, em outras formas de espiritualidade ou na tentativa de conchavos políticos, seja com a Assíria, no norte, ou, no Egito, ao sul, mostram a perdição e o desespero, assim como a perda de referenciais e perspectiva de onde, de fato, poderia vir o socorro. Também essa é uma realidade em nossos dias e que se mostra nas mais variadas formas de “idolatria moderna”. O povo havia abandonado o Senhor, o manancial de águas vivas, e cavaram cisternas, cisternas rotas que não retêm as águas (cf. Jr 2.13).
O ponto alto do texto está, sem dúvida, nas palavras de Jeremias a respeito do Renovo, da linhagem de Davi, que reinaria e agiria sabiamente, trazendo juízo e justiça à terra. A salvação, a redenção e a justiça definitiva e completa estão somente em Jesus Cristo e esperamos por essa justiça em sua segunda vinda. Governantes políticos sempre são chamados à obediência a Deus, à justiça e ao juízo. São chamados em todas as épocas – também em nossa época – a serem “pastores” servos do povo e se encontram também sob o juízo de Deus, caso venham a apascentar somente a si mesmos, caso venham a agir somente em benefício próprio (compare com Ez 34.10).
Zedequias, rei no momento da derrocada final diante dos babilônios, cujo nome significa “o Senhor é a minha justiça”, também não seria a salvação que viria de Deus. A verdadeira salvação deveria ser esperada adiante. O Senhor diz que “ele mesmo” agiria e recolheria o remanescente do seu rebanho e colocaria sobre ele verdadeiros pastores. A promessa trazida pelo Senhor por meio de Jeremias transcende qualquer tentativa humana de salvação. Somente Deus mesmo é aquele que dissipa qualquer temor e espanto (v. 4), que faz com que o povo se torne de fato fecundo (v. 3) e que viva sob completa justiça (v. 5). Jesus não é somente mais um rei da lista de reis justos, mas ele é a própria encarnação da justiça, e essa não é compreendida apenas como lei escrita em tábuas de pedra, mas como nova justiça, como justiça melhor, gerada por ele mesmo naqueles que são seus por meio de seu Espírito Santo (compare com Jr 31.21ss). Os textos de Marcos 6.30-34,53-56 e Ef 2.11-22, sugeridos como leituras paralelas à pregação, mostram na prática, a partir do ministério de Jesus, o cumprimento dessa profecia, a concretização dessa esperança em Jesus e na sua igreja.
4. Imagens para a prédica
Ainda nos encontramos no período pós Pentecostes e, assim, seria muito importante ressaltar justamente o ponto alto do texto da prédica, ou seja, o agir do Espírito de Jesus como aquele que capacita para o agir com justiça. É o Espírito de Jesus aquele que batiza com o Espírito Santo, ou seja, com a capacidade para um novo agir, e com fogo, ou seja, aquele que nos coloca diante do juízo de Deus (a compreensão de lei e evangelho é muito importante nesse sentido).
A própria história da expulsão dos vendilhões do templo por Jesus em João 2.13ss pode ser usada muito bem como ilustração do agir concreto de Jesus. Devemos observar que também em nossa realidade, a cobiça, a dissimulação, a falsidade e o engano se disfarçam de fé evangélica. A prostituição do povo, deixando o Senhor e seguindo o deus Baal, como aquele que, segundo a fé apóstata, traria a fertilidade e prosperidade à terra, pode ser muito bem utilizada para a comparação com a prostituição do povo do Senhor, ao seguir os deuses de nossa época, entre eles, o deus “mercado”. Várias imagens da corrupção em nosso país, em suas diversas épocas, assim como as esperanças frustradas pelo agir de líderes humanos em diversos momentos de nossa história podem ser utilizadas para ilustrar a prédica.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro a leitura ou recitação do seguinte texto poético: Eu sou ateu!
“Sou ateu a um deus que precisa do meu dinheiro, que dizem trazer prosperidade, mas não se importa com os pobres e miseráveis da nossa sociedade. Não acredito nesse deus indiferente, afastado do seu povo, sem amor por sua gente, que é seguido por hipócritas, que largou o mundo entregue ao mal. Sou ateu para esse deus de político, de corrupto, conservador, opressor, machista, ou liberal, de direita, esquerda, feminista e até racista.
Eu sou ateu ao deus que dá mandamentos, regras, obrigação. Só que me deixa sozinho, a buscá-lo na escuridão. E eu sou ateu pra um deus que depende de mim, que foi criado, que é um espelho da minha vontade. O que eu falo dele é o que faz ele se tornar verdade.
Mas eu acredito no Deus que já estava no princípio, que é meu Criador. Que estava e está presente. Que veio pro rico e pro pobre, que chega até o doente. Acredito na Bíblia como sua Palavra. Que nos mostra que desde sempre nos amava. Tanto que mesmo em nosso pecado, por nós nasceu, sofreu, morreu e ressuscitou. E em si, em seu Filho, consigo nos reconciliou. Por isso entende o nosso sofrimento. Sobre si levou a minha culpa, pagou com sangue o meu perdão. E, assim, somente naquela cruz é que eu encontro a salvação. O Deus vivo, que nunca falhou com suas promessas, promete que em glória seu Filho vai voltar. O que é minha esperança, em meio a todo esse caos, a esse mal, pois ele me dá a vida eterna, isso aqui não é o final.
E esse Deus é maior que tudo, tudo pode, basta querer. Não há conceito que o defina, não há ideia que o descreva, pelo menos sem seus atributos desmerecer... Rei Eterno, soberano em glória! Senhor do tempo, da minha história, mas que por mim escolheu sofrer... E há quem ache que o domestica. Em próprio favor, usa o nome seu; e pra esse deus, eu sou ateu” (William Strebe).
Bibliografia
HARRISON, R. K. Jeremias e Lamentações. Introdução e Comentário. São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1980.
KEIL, C. F. Jeremiah, Lamentations. In: KEIL, C. F.; DELITZSCH, F. (Eds.). Commentary on the Old Testament in Ten Volumes. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1980.
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