Prédica: Isaías 55.1-9
Leituras: Lucas 13.1-9 e 1 Coríntios 10.1-13
Autor: Michael Kleine
Data Litúrgica: 3º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 7/03/2010
Proclamar Libertação - Volume: XXXIV
1. Introdução
O texto da pregação é um convite insistente para beber na fonte da vida. Deus está perto (v. 6) e oferece nova possibilidade de vida: “Ouvi, e a vossa alma viverá!” (v. 3). As leituras previstas têm outra ênfase. Lucas 13.1-9 é uma admoestação: “Se não vos arrependerdes, perecereis” (v. 3 e 5). Da mesma forma
1 Coríntios 10.1-13: “Aquele que pensa estar em pé veja que não caia” (v. 12). Sugiro que as leituras sejam substituídas. Para leitura do evangelho proponho João 7.37-43, onde Jesus convida: “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (v. 37). É o convite de Isaías 55.1: “Todos vós, os que tendes sede, vinde às águas”. Para a leitura da epístola sugiro Apocalipse 21.1-7 ou 22.12-17. Ambos os trechos citam Isaías 55.1.
2. Exegese
Isaías 55 é a parte final da coleção de textos conhecida como Deutero- Isaías (Is 40-55). O tema dominante dessa coleção são a libertação e o retorno daquela parte do povo de Israel que havia sido deportada para a Babilônia. Os dois últimos capítulos (54 e 55) tratam do tempo da graça e da salvação, das bênçãos que serão concedidas por Deus a Israel após a libertação do cativeiro.
Proponho a seguinte estrutura para Isaías 55:
1-3a: introdução
1-2a: “Vinde e comprai/comei!”
2b-3a: “Vinde a mim e ouvi-me!”
3b-5: anúncio de salvação: a aliança perpétua
6-7: “Buscai o Senhor!” (retoma o convite de 1-3a)
8-9: os caminhos do Senhor são diferentes dos nossos
10-11: a palavra de Deus é eficaz (fundamenta 2b-3a)
12-13: o novo êxodo
Considero apropriado incluir os v. 10 e 11 na reflexão e na pregação. Eles retomam, desdobram e fundamentam o convite e a oferta que são feitos na introdução: “Inclinai os ouvidos e vinde a mim; ouvi, e a vossa alma viverá” (3a).
V. 1-3a – O v. 1 lembra o apelo de um vendedor na feira tentando convencer os passantes de uma oferta especial. Ele é insistente: “Vinde!” (3x), “Comprai!” (2x). O produto oferecido é alimento: água e pão (o verbo šabar/comprar significa “comprar cereal”), vinho e leite. Gêneros de primeira necessidade e que representam fartura e festa. Trata-se de uma promoção “imperdível”: tudo de graça! Ele chama justamente os necessitados: “os que têm sede” e “os que não têm dinheiro”. – De início, não fica claro quem está fazendo a oferta. Apenas no v. 3 descobrimos: é o próprio Deus (só ele pode firmar uma “aliança eterna”). Mas o que significa a imagem do alimento? V. 2b: o “comer” é resultado do “ouvir com atenção”. V. 3a: “viver” é resultado do “ouvir”. Assim também fala a Sabedoria: “Vinde comer do meu pão e beber do vinho que misturei” (Pv 9.5; também ela é insistente, grita nas praças e encruzilhadas, Pv 1.20s.; 9.3). V. 1-3a parecem nos dizer: Seremos saciados e teremos vida se inclinarmos nossos ouvidos a Deus e o ouvirmos. “Não só de pão viverá o ser humano, mas de tudo o que procede da boca do Senhor” (Dt 8.3). – V. 2a questiona o investimento de forças e de recursos naquilo que não alimenta e não satisfaz.
V. 3b-5 – Aqui é apresentado o “produto” para o qual se está fazendo propaganda: a palavra que pode saciar e dar vida. Trata-se de uma promessa de Deus: ele quer firmar uma “aliança eterna/duradoura” com seu povo (“convosco”). Deus quer dar ao povo como um todo aquilo que ele havia prometido dar a Davi: um “reino eterno” (2Sm 7.16) e “descanso de todos os teus inimigos” (2Sm 7.11). A prosperidade da dinastia davídica significava para o povo uma vida em segurança na terra dada por Deus. Era um sinal da graça, fidelidade e misericórdia de Deus (2Sm 7.15). Com a destruição dessa dinastia e do reino de Judá, o povo passou a viver sob o domínio de estrangeiros. A própria religião estava ameaçada por causa da dispersão do povo e da pressão das religiões oficiais dos povos dominantes. “Israel” passou a ser um grupo minoritário, espalhado por vários países e tendo que lutar para manter sua fé e sua identidade religiosa. Por isso Deus promete e garante algo inusitado: que o povo de Israel assumirá o papel que era do rei Davi: “príncipe e comandante dos povos” (v. 4). Israel será um povo de reis e rainhas. Terá um papel de liderança entre as nações, não no sentido político-militar, mas religioso: “testemunha (de Javé) aos povos” (v. 4s.). Em meio às crises de fé e contra toda a probabilidade Javé cobre seu povo de esplendor/glória (v. 5). – É essa promessa que dá novo sentido ao povo de Deus, que sacia sua sede de vida e dá fundamento e razão à sua existência.
V. 6-7 – O convite para inclinar os ouvidos a Deus é repetido com outras palavras. “Buscar” (drš) tem o sentido de “perguntar”, “examinar”, “tirar informações”, “consultar”. “Buscar a Javé” no AT significa procurar saber o que ele diz, procurá-lo na necessidade, confiar em sua palavra e fazer o que ela diz. A quem busca Javé é prometida a vida: “Buscai-me e vivei” (Am 5.4,6). Nas palavras de Isaías 55: “Ouvi (a promessa), e vossa alma viverá” (v. 3). Como mostra o convite insistente na introdução (“Vinde!”), Deus está muito perto e pode ser encontrado: na sua palavra. – Mas, para encontrá-lo, pode ser preciso dar meia- volta, mudar de rumo, admitir que se está procurando no lugar errado – como já foi constatado no v. 2a. Deus aceita de volta quem tomou um caminho oposto ao dele e, assim, se tornou culpado. Ele chama de volta (“Vinde!” – “Buscai!”) e perdoa o arrependido.
V. 8-9 – Se no v. 7 eram “o perverso” e “o iníquo” que tinham caminhos opostos aos de Deus, aqui os “vossos” caminhos e pensamentos são diferentes dos de Deus. Parece que todos se tornaram “perversos” e “iníquos” e necessitam dar meia-volta. Segundo o AT, os caminhos e pensamentos errados de Israel são a causa da desgraça atual: deportação, dispersão, domínio estrangeiro (cf. 1Rs 8.46-51). Na linguagem do v. 2a: todos procuraram “alimento” e “satisfação” lá onde não há, longe de Javé.
V. 10-11 – No v. 2 temos o convite: “Ouvi, e vossa alma viverá”. O simples ouvir produz vida e sacia. Essa confiança no poder criador da palavra de Deus é enfatizada nos v. 10 e 11. A palavra pronunciada por Deus realiza aquilo que ela diz. Ela não é apenas comunicação a respeito de algo, mas ela própria é acontecimento. È palavra eficaz e poderosa e, por isso, confiável. Aqui aparece novamente a metáfora do alimento: a palavra é como a chuva e a neve, que fazem brotar e dão “semente ao semeador e pão ao que come”.
3. Meditação
Vejo no v. 3 o tema central de Isaías 55.1-11: “Ouvi (a promessa), e vossa alma viverá”. Trata-se do convite insistente para ouvir a palavra de Deus e a promessa de que essa palavra é fonte de vida. Os versículos anteriores conduzem a esse centro, formulando o convite de forma figurada e relacionando o “ouvir” com o “comer”. Os versículos posteriores apresentam o conteúdo da promessa (a “aliança eterna”), as bênçãos que dela derivam (“esplendor” para Israel); repetem o convite (“Buscai o Senhor”) e fundamentam a confiança no poder da palavra (v. 10s.). Se essa interpretação estiver correta, temos em Isaías 55.1-11 uma unidade temática.
A palavra de Isaías 55.1-11 dirige-se a indivíduos que perderam as bases da sua identidade e da sua fé. Com o fim do reino de Judá e a deportação das lideranças políticas e religiosas para a Babilônia, os/as adoradores/as de Javé entraram em profunda crise. Até então, a religião javista era a religião oficial do reino de Judá e apoiava-se na segurança proporcionada pela dinastia davídica. O bem mais precioso era a vida segura e independente na terra prometida e dada por Javé. Isso, agora, não existe mais. Vivendo sob o domínio de povos estrangeiros e suas reli- giões, a fé em Javé corre o risco de desaparecer.
Nosso texto é um convite aos “sedentos”, àqueles/as que estão à procura de alimento para sua fé e de sentido para sua existência. Desorientados, procuram aqui e ali, mas nada encontram para saciar sua fome e sede. De tanto procurar, estão sem forças (veja o paralelismo entre “dinheiro” e “suor/esforço” no v. 2). São os “cansados e sobrecarregados”, a quem Jesus também se dirige: “Vinde a mim” (Mt 11.28); ou os/as “que têm fome e sede de justiça” (Mt 5.6), aos quais ele promete fartura. “Se alguém tem sede, venha a mim e beba” (Jo 7.37). – Quantos membros e filhos de membros da IECLB não estão nessa situação? Estão à procura de sentido e seguem aqueles que fazem a oferta melhor. Estão dispostos a dar tudo o que têm para saciar sua “fome” e “sede” de sentido e de vida.
São esses e essas que Deus convida com insistência em Isaías 55.1-11. Não se recusa a gritar bem alto, como um vendedor ambulante. Entra no mercado religioso e faz a sua oferta, plenamente convicto de que é a melhor (v. 2). E a promessa que ele faz é grande: De indivíduos dispersos, atomizados e sem esperança ele fará um povo de reis e rainhas (o “sacerdócio real” de 1Pe 2.9). Por sua proximidade, Deus coloca a sua glória sobre esse povo, de forma que ele será bênção até para os outros. Deus não apenas sacia as “necessidades básicas”, mas concede abundância (“finos manjares”) suficiente para distribuir adiante. “Quem crer em mim, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.38).
Essa promessa é feita a todos/as que buscam o Senhor lá onde ele está, lá onde ele fala. É a Palavra que transforma indivíduos sedentos e cansados num povo saciado capaz de alimentar outros. “Ouvi (a promessa), e vossa alma viverá” – “Procurai-me e vivereis” (Am 5.4,6). O simples ouvir produz vida e sacia. Confiança irrestrita no poder da palavra (v. 10s). A convicção no AT é que Deus está perto do seu povo através da sua palavra revelada, a Torá (Dt 30.14); a Torá é – aos olhos de outros povos – uma prova da grande proximidade de Deus (Dt 4.6-8). “Porque esta palavra não é para vós outros cousa vã; antes, é a vossa vida” (Dt 32.47).
Nós “cremos, ensinamos e confessamos” que a palavra de Deus revelada está em Jesus Cristo, a palavra encarnada. Em Jesus Cristo, a expectativa e a promessa de Isaías 55 se cumprem. Através de Cristo, Deus se tornou próximo e pode ser encontrado. Cristo oferece vida – a sua própria. Ele é “o pão de Deus... que dá vida ao mundo”: “o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede” (Jo 6.33,35). Ele também questiona: “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que subsiste para a vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará” (Jo 6.27; cf. Is 55.2).
Tarefa da prédica é mostrar onde o “pão de Deus” pode ser encontrado. Sabemos que a Palavra encarnada vem até nós de variadas formas. É bom enfatizar que a palavra pregada não é apenas um ensino a respeito de Cristo, mas ela é o próprio Cristo encarnado. De forma visível e degustável, a encarnação acontece também na Ceia do Senhor, onde o próprio Jesus Cristo “é a comida e a bebida, o cozinheiro e o garçom” (Lutero). Cristo está presente “onde dois ou três” estive- rem reunidos em seu nome (Mt 18.20). Se ligamos essa promessa de presença real com a promessa “ouvi, e vossa alma viverá”, poderemos dizer: No culto da comunidade acontece a Palavra que alimenta e dá vida. O que Deus faz através da sua comunidade é algo fantástico e inusitado: ele usa “mendigos” para alimentar outros “mendigos”. Graças à força e à eficácia da sua Palavra!
Isaías 55.1-11 é mais convite (“propaganda”) do que descrição do “produto”. No centro está a “aliança eterna”, mas pouco é dito sobre ela. O texto afirma que a Palavra traz vida, sacia e concede fartura; mas pouco é dito sobre o conteúdo desse “alimento”. Parece que a intenção é criar expectativa e curiosidade, mostrando onde a fome e a sede podem ser saciadas: “Venham! Aqui está o que todos procuram. Aqui tem, de graça, aquilo para o que todos estariam dispostos a pagar um alto preço. Aqui tem o que a maioria procura em lugar errado”.
Pregadores/as precisam estar convictos de que no culto, através da pregação e dos sacramentos, acontecem “vida e salvação” (Lutero). É o que Isaías 55 está nos dizendo. O esvaziamento dos cultos evidencia que as pessoas não creem nisso. Nossa tarefa é convidar com insistência e confiar na eficácia da Palavra encarnada.
4. Imagens para a prédica
Se optarmos por enfatizar a importância do culto para a vida de fé, podemos lançar a seguinte pergunta: É possível levar uma vida de fé longe do culto? É possível ficar longe da pregação da Palavra, da Santa Ceia, do anúncio do perdão, da oração em conjunto e da bênção e mesmo assim continuar “vivo” (como cristão/ã)? Dá para ser membro do corpo de Cristo longe de Cristo?
Ocorrem-me as seguintes imagens: Um membro do nosso corpo que per- deu a conexão com o cérebro (acidente) fica paralisado e morre. Um aparelho elétrico desconectado da tomada não recebe energia e não funciona – por mais que ele esteja inteiro em seus componentes. Um ramo que está separado do caule e das raízes não produz frutos – ele seca e morre.
O culto é a conexão que nós precisamos com a fonte da vida. Através daquilo que acontece no culto, nossa fé é alimentada, é fortalecida – e pode produ- zir frutos. No culto, Jesus Cristo partilha conosco algo do seu poder, da sua ener- gia, da sua vida.
5. Sobre a responsabilidade pela pregação
Sobre a relação entre pregação e alimento e sobre a responsabilidade do/a pregador/a de ser canal para esse alimento, cito o seguinte relato de Dietrich Bonhoeffer (Tentação. São Leopoldo: Sinodal, 1995, p. 12):
Esta manhã culto na igreja, Pastor G. (...). Homem já de mais idade. Fui até a sacristia. Foi uma cena meio constrangedora. Primeiro minha pergunta: Por que não prega Cristo? Por que nos deixa sair famintos? Houve resistência. Pergunta dele – Mas vós ainda quereis ouvir? – Reviravolta. Depois total capitulação. ‘Eu não posso pregar o que não tenho!’ e ‘Sim, o senhor tem razão!...’. Foi o fim. Um sacerdote frustrado. É muito triste...
Bibliografia
FREY, Hellmuth. Das Buch der Weltpolitik Gottes. Kapitel 40-55 des Buches Jesaja. 4. ed. Stuttgart: Calwer, 1954.
WESTERMANN, Claus. Jesaja 55,1-5. In: Calwer Predigthilfen, Band 4, 1965, p.174-184.