Prédica: Isaías 50.4-9a
Leituras: Mateus 26.30-56 e Filipenses 2.5-11
Autor: Martin Dreher
Data Litúrgica: Domingo da Paixão (Ramos)
Data da Pregação: 20/03/2005
Proclamar Libertação - Volume: XXX
1. Introdução
O texto que trata do servo de Javé é hino de lamentação, no qual foram incluídos elementos de discurso de apelação do acusado. Como há parentesco entre hinos de lamentação e hinos de confiança, pode-se também chegar à conclusão de que, no presente hino, sobressai a confiança. A delimitação da perícope é correta, pois a partir do v. 10 há outro locutor, que se dirige a outras pessoas, aparentemente prosélitos, tementes a Deus.
2. Texto
v. 4 – Quem fala é pessoa que constantemente ouve Deus. Tem um ministério da palavra, dirigido ao “cansado”. v. 5 – Obediente a Deus, não foge à incumbência que recebeu. Não somos informados do(s) motivo(s) que o poderia(m) ter levado a se “retrair” ou a ser “rebelde”. Simplesmente é fiel. v. 6 – Sofreu abusos de toda natureza. v. 7 – No entanto, Deus o fortaleceu: fez seu “rosto como um seixo” e não passou vergonha (cf. Ez 3.8-9). Por isso, v. 8, provoca seu(s) adversário(s) para um debate jurídico: que apareça o promotor! v. 9 – Tem certeza da proteção de Deus e de que seus adversários serão corroídos, assim como o vestido é comido pelas traças (cf. tb. Is 51.6,8).
A perícope nos traz um texto marginal ao grande texto sobre o servo de Javé, que estamos acostumados a ler nesta época do ano eclesiástico: Is 53. Não tem a profundidade, nem a abrangência do texto clássico que fala sobre aquele que carregou sobre si nossas enfermidades e nossas dores. Traz, contudo, alguns aspectos, nos quais a comunidade deveria se aprofundar, pois neles o homem das dores a caminho de Gólgota pode ser identificado.
Por que um texto tão antigo para o Domingo de Ramos? Por que não pregar sobre o texto do Novo Testamento? O texto não quer trazer previsão de fatos futuros; fala de pessoa que vive no século VI a. C. ou do próprio povo de Israel. O que esse texto tem a ver com o Cristo? Sempre é bom lembrar que a cruz de Jesus é também a cruz de sua igreja. É verdade que nem de longe precisamos enfrentar todas as profundezas do abandono pelo qual passou o crucificado. No entanto, tudo o que acontece em sua igreja está sob o signo de sua cruz. Seguir a Jesus é seguir o crucificado. Lembro que Paulo carregava em si os estigmas de Jesus (Gl. 6.17), a morte de seu Senhor (2 Co 4.10). Também os que precederam Jesus viveram sob o sinal da cruz: “Assim perseguiram aos profetas que viveram antes de vós” (Mt 5.12). Onde a ação de Deus se encontra com a ação pecaminosa do ser humano, só existe uma opção: juízo – ou sofrimento. Em qualquer lugar, onde se sofre por causa da vontade de Deus, a cruz de Cristo está presente. Isto também se aplica ao servo de Javé. É esse o motivo que nos faz reconhecer a sina do Senhor, que ele ainda não conhece. A isso deve ser acrescido o fato de que o Novo Testamento se reporta aos textos que falam do servo de Javé (Mt 12.18; At 3.13,26; 4.27,30; Ap 8.32s). O próprio Jesus e a primeira comunidade interpretaram o sofrimento do Cristo a partir dos textos que nos falam do servo de Javé. É, por isso, que podemos interpretar a caminhada de Jesus até o Gólgota a partir de nossa perícope.
3. Meditando
a) Na Paixão Segundo São Mateus, Johann Sebastian Bach traz as palavras: “Ele fez o bem a todos nós. Aos cegos deu a visão. Aos coxos fez andar. Deu-nos a palavra de seu Pai. Expulsou o demônio. Ergueu os cansados. Aceitou os pecadores. Nada mais fez meu Jesus”. Em nosso texto, o próprio servo de Deus descreve sua atuação: ele transmite a palavra. Toda a sua vida está determinada pelo ouvir e falar. É um aprendiz. Não é autônomo. Nada é por si mesmo. Tudo o que faz vem de um ouvir obediente. Não pensa sequer que algum dia poderá ser auto-suficiente, autônomo, que não precisará mais ouvir a Deus. Permanece aberto para a voz de Deus. Ele “me desperta todas as manhãs”, caso contrário seria incapaz de ouvir. O milagre que experimenta dia após dia é que Deus se lhe revela sucessivamente. É alguém que não sabe tudo de antemão, nem tem uma fórmula para responder a qualquer pergunta que lhe é feita. Deus ensinou-o a ouvir atentamente.
Quem de nós ainda é capaz de ouvir? Quem de nós consegue ouvir Deus? Parece-me por vezes que, quando abrimos a Bíblia, ela permanece muda – ou nós [soberbos!] já sabemos de antemão o que ela vai dizer! Ouvir é um milagre. Esta é a experiência diária do servo de Javé. Essa é também a experiência de Jesus, segundo o Evangelho de João (8.26; 5.19,30; 7.16).
Não penso em dizer que o que dá destaque a Jesus resida no fato de ouvir. No entanto, quando percebemos esse ouvir, descobrimos algo muito importante em Jesus. É importante que se entenda Jesus como alguém que sempre está aberto para ouvir o que o Pai tem a dizer. É por isso que Jesus tem tanta autoridade: tudo o que diz e faz vem do ouvir e do obedecer. Em Jesus, a incumbência que recebeu é o mais importante. – Agora, é bom refletir, quem está de tal maneira ancorado em Deus está preso a ele. “Não fui rebelde, não me retraí.” Ouvir e agir formam uma unidade. Não se pode estar aberto para Deus e, depois, agir de maneira discordante daquilo que foi dito e ouvido. Aí não se pode mais ouvir a própria voz ou a voz de outros. O que eu mesmo penso e pretendo fazer posso alterar. No caso daquele que caminha para o Gólgota, tal possibilidade inexiste. Já houve muitos que fizeram acordos com o Sinédrio. Jesus está sempre em posição de conflito em relação a seus opositores. Terá sido pessoa tão problemática?Não. É pessoa que ouve! Sua expressão “Eu, porém, vos digo....” não brota de opinião própria, mas é decorrência da vontade de Deus, que quer e que tem (!) que expressar.
O “servo” diz, ele próprio, como nos serve. Sua função é responder aos cansados, apascentá-los. Ele anuncia o Deus que dá força aos cansados, que está aí para os sobrecarregados. Ele não se apresenta contra os seres humanos, mas a favor deles, dizendo: Não resignem! Deus deseja o melhor para vocês! Tudo o que ele experimentar e sofrer está a serviço dos seres humanos. É morrendo que está a serviço dos cansados.
b) Ele está a nosso serviço e nós o rejeitamos. Sim, nós. Só poderíamos evitar esse “nós” caso conseguíssemos comprovar que não nos fechamos a Deus, que ele sempre pode contar conosco, que não o desonramos no mundo... É na comunidade que acontece o choque entre o mensageiro de Deus e o mundo ao qual ele se dirige. O texto nos diz que o servo é desprezado pela comunidade e na comunidade! Nos acontecimentos da semana santa, a culpa é de Pilatos, do Sinédrio, da multidão que gritava “crucifica-o!”, mas também da comunidade que o abandonou.
O servo não se volta contra Deus e não se torna desobediente. Assume as conseqüências do falar de Deus. É batido, tem a barba arrancada, cospe-se-lhe no rosto. É maltratado e profundamente humilhado. Nossa perícope nos deixa entrever quanto ódio é capaz de irromper desde as entranhas de um ser humano! Os horrores da semana santa não são fato único na história da humanidade. Deus ouve os gritos dos torturados de todos os séculos da história da humanidade: Brasil, nunca mais! Auschwitz, Bagdá, Gaza... Nosso texto fala do que é pecado. Não que pecado só existisse ali, onde se praticam excessos. Há variantes muito piedosas desses excessos na chamada luta do bem contra o mal, ... mas também lá em casa. Jesus não morreu porque, infelizmente, no meio de uma maioria querida e bondosa, houve alguns safados. A antropologia bíblica não é otimista. Nossa resposta ao “servo” é miserável.
O servo não se volta contra Deus – o servo não se volta contra nós. Ele assume tudo, ele carrega tudo. Não se defende, não foge: “Ofereci as costas aos que me feriam e as faces aos que me arrancavam os cabelos; não escondi o meu rosto dos que me afrontavam e me cuspiam”. Por mais macabra que seja a cena da semana santa, não a deveríamos apagar. Na semana santa, o Deus encarnado esteve entregue a nós (cf. Mt 20.19)! A semana santa nos mostra como nós agimos com Deus, quando o conseguimos agarrar. E ele, ele não desiste e aceita a cruz: “Eu não fui rebelde, não me retraí”, “para que eu saiba dizer boa palavra ao cansado”.
c) Deus está com ele. Tudo o que é dito a partir do v. 7 refere-se à fidelidade de Deus em relação a ele. As sandices praticadas contra ele não são o fim de sua tarefa. Ele sabe que Deus está a seu lado. Deus não impede os sofrimentos, mas sustenta o servo em meio a eles. Porque Deus está com ele, seu rosto fica duro como um seixo. Que cuspam, debochem, batam, matem ... há uma certeza que permanece, mesmo quando a vida se for e quando o coração parar de bater. Deus está com ele; não será envergonhado.
Por isso, pode chamar seus detratores para um debate. É incrível: está nas mãos dos que o maltratam. Não tem amigos, não tem defensores. Tudo o que disse a respeito de seu Deus está desmentido, e é grotesco que ainda continue a invocar esse Deus. Podemos entender que Deus chega a seus objetivos por meio da cruz? O poder de Deus revela-se na fraqueza, no escândalo da cruz. É bom dar uma olhada no v. 10, que já não faz parte de nossa perícope: “Quem há entre vós que tema ao Senhor, e ouça a voz do seu servo, que andou em trevas sem nenhuma luz, e ainda assim confiou em o nome do Senhor e se firmou nele sobre o seu Deus?”. Nossa soberba sucumbe ante a graça de Deus, que tudo suporta. Não que Deus desista de seu juízo sobre nós. Se ela não sucumbir, seremos incapazes de ver que somos como pano velho comido pelas traças.
O Jesus com o qual caminhamos na semana santa não é simples repetição do servo de Javé. O servo soube Deus presente em todas as fases pelas quais passou. Com Jesus foi diferente. O castigo que lhe foi imposto, para que nós tivéssemos paz, foi o abandono total. A cruz de Jesus é o escândalo total: “Fazendo-se ele próprio maldito em nosso lugar, porque está escrito: Maldito aquele que for pendurado em madeiro” (Gl 3.13). Jesus não teve apenas seres humanos como inimigos. Na hora derradeira, Deus se lhe tornou inimigo e juiz. Entrou mais no fosso do que seu predecessor. A semana santa nos quer auxiliar a odiar o pecado do fundo do nosso ser e amar, profundamente, aquele que o carregou por nós.
Bibliografia
SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no Exílio. História e Teologia do povo de Deus no século VI a.C. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulinas, 1987.
SCHWANTES, Milton. Sexta-feira da Paixão: Isaías 50.4-9a(9b-11). In: van KAICK, Baldur (Coord.) Proclamar Libertação. Auxílios Homiléticos. V. II. São Leopoldo: Sinodal, 1977. p. 28-33.
WIENER, Claude. O Dêutero-Isaías. O profeta do novo êxodo. 2. ed. São Paulo: Paulinas, 1984.