Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Mateus 22.23-33 e 1 Coríntios 15.12-20
Autoria: Ruben Marcelino Bento da Silva
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Fé e solidariedade:
para atravessar a morte, para acreditar na vida
1. Exegese
Por ocasião deste Dia de Finados, somos convidadas e convidados a pensar sobre a experiência da morte a partir do texto de Isaías 35.1-10. Iniciemos com o exercício exegético sobre essa perícope para, em seguida, passarmos à meditação sobre essa ocasião em que nos lembramos daquelas e daqueles que já não estão mais ao nosso lado nesta vida.
Isaías 35.1 – A primeira parte deste versículo começa com um verbo hebraico, cuja flexão expressa uma qualidade de ação conhecida como imperfeito, ou seja, uma ação que não se completou. Além disso, trata-se de um verbo que se apresenta na voz ativa simples, chamada no hebraico de qal (leve, simples). Uma opção para traduzir o imperfeito do qal aqui é usar o futuro do presente do indicativo: yeśuśûm, exultarão. Todavia, na segunda parte, com a conjunção aditiva waw prefixada, temos dois verbos no qal, os quais se apresentam, respectivamente, nas formas do jussivo (wetāguēl, e que se regozije) e do imperfeito (wetifraḥ, e florescerá). O jussivo expressa uma expectativa, um anseio de que algo aconteça. Admitindo, então, que esse capítulo 35 seja “[...] um oráculo destinado a entusiasmar os judeus exilados para que retornem a Jerusalém” (Croatto, 1989, p. 209) e considerando a estrutura de paralelismo em que se encontram os três verbos, sugiro que sejam todos traduzidos tomando como referência o jussivo. Essa alternativa é reforçada quando descobrimos quem são os sujeitos de cada verbo: de śîś (exultar), são a estepe (midbār) e a região seca (tsîyâ); de guîl (regozijar-se) e pāraḥ (florescer), é o deserto (‘arābâ). Aliás, o emprego de sujeitos e respectivos verbos nas duas partes parece operar uma “troca” numérica:
Se bem que se limite ao anúncio de algo ainda por acontecer, esse imperfeito de śîś da primeira parte do versículo, sem dúvida, quer encher os corações de esperança. De acordo com Talmon (1997, p. 91), midbār é uma região árida ou semiárida que se mostra inadequada para a lavoura e os assentamentos agrícolas em razão da escassez de água. No livro dos Salmos, com esse mesmo verbo (śîś), o eu-lírico expressa seu prazer pela palavra divina (Sl 119.14, 162) e, em várias ocasiões, as leitoras e os leitores são convidados à alegria por causa dos feitos benevolentes de Deus: a criação (Sl 19.6), a proteção (Sl 68.4) e a salvação (Sl 35.9; 40.17; 70.5).
As orações da segunda parte do versículo, que possuem o mesmo sujeito, reforçam a expectativa de transformação de uma área desolada. O substantivo ‘arābâ (deserto), que se refere normalmente a um terreno inóspito, caracterizado pela salinidade do solo e pela vegetação escassa, acentua sobretudo a dimensão hostil assinalada pelo termo paralelo midbār (Talmon, 1997, p. 92, 93). Em protesto a essa condição lastimável, anseia-se que a ‘arābâ floresça, que o narciso (ḥavatstsélet) brote ali! Essa planta (Asphodelus microcarpus), que se distribui amplamente pela costa do mar Mediterrâneo, possui caule alongado com cacho de belas flores brancas ou amarelas. Além disso, foi documentado seu uso tradicional como agente antimicrobiano (Majeed, 2014, p. 61; Di Petrillo, 2017, p. 2; cf. Lisowsky, 1993, p. 461).
Isaías 35.2-4 – Mantém-se o apelo ao regozijo e às manifestações efusivas de alegria. Usa-se aqui o infinitivo do verbo rānan (jubilar, festejar), intensificado pelo grau ativo piel: deve ecoar nas regiões desérticas um gritar de júbilo. Segue-se a apresentação do motivo da alegria:
A porvindoura fertilidade e o rico florescimento das plantas em Judá tornarão este território [ora abandonado] tão gloriosamente verdejante quanto o Líbano, com o esplendor da vegetação do Carmelo e da planície de Sharon, ao sul do Monte Carmelo [...]. Com essa transformação da natureza, afirma o profeta, os habitantes de Judá verão a glória de Yahweh e, incluindo a si mesmo na comunidade, o esplendor do “nosso” Deus (Roberts, 2015, p. 440-441). (tradução própria).
Segundo Croatto (1989, p. 210), as referências às montanhas do Líbano e do Carmelo e à planície de Sharon têm em vista sua fertilidade célebre, cujos frutos serão destinados a Jerusalém. Mais adiante, Isaías 60.13, por exemplo, afirma que as madeiras nobres vindas do Líbano serão empregadas para decorar o Templo! Certamente a menção àqueles que verão a glória de YHWH (kevôd yhwh) e a majestade de nosso Deus (hadar ’elōhênû) anuncia uma mudança em sua condição de vida se comparada àquela dos judaítas outrora exilados, os quais haviam sido desterrados após a destruição de Jerusalém e do santuário de YHWH em 587 AEC. Agora se aguarda a repatriação e, consequentemente, o restabelecimento da presença de YHWH no meio do seu povo reassentado em sua própria terra (cf. o abandono do Templo de Jerusalém pela glória de YHWH, a qual vai em direção aos primeiros exilados na Babilônia por volta de 593 ou 592 AEC [Ez 1; 10-11]). Por isso o escritor exorta os destinatários de sua mensagem assegurando-lhes que pelo medo (observe o emprego dos imperativos fortalecei [ḥazzeqû], robustecei [’ammétsû], sede fortes [ ḥizqû] e não temais [’al-tîrá’û] em contraposição às expressões mãos lânguidas [yādáyim rāfôt], joelhos trôpegos [birkáyim kōshlôt] e apressados de coração [nimharê-lēv]).
Isaías 35.5-7 – Nestes três versículos, a ideia de salvação divina se constrói através de declarações sobre a reversão extraordinária de circunstâncias desfavoráveis, tanto humanas quanto ambientais. Entre a transformação das circunstâncias humanas e a transformação das circunstâncias ambientais, é realçado um nexo de causalidade:
Croatto (1989, p. 210) entende que os v. 5 e 6, em lugar de oferecer promessas de curas milagrosas, têm a libertação dos judaítas exilados como seu interesse fundamental. De fato, caso seja considerado o nexo de causalidade entre a transformação das circunstâncias humanas e a transformação das circunstâncias ambientais, pode-se concluir que a glória de YHWH, manifesta como conversão da terra desolada em recanto bucólico para (e mediante) o reassentamento de seu povo, revivificaria olhos, ouvidos e línguas amortecidas por causa dos anos vividos em desalento, a fim de que celebrassem a novidade de vida criada pela graça de Deus! Zwetsch (2013, p. 336) o confirma quando diz que “[...] justamente as pessoas mais frágeis e desqualificadas é que anunciam um novo tempo. [...] Os que voltam devem preparar-se assim para uma grande festa de libertação [...]”. A segunda parte do v. 7 talvez contenha uma alusão a Jerusalém, que deixará de ser uma localidade arruinada e habitada por animais carniceiros para converter-se numa aprazível campina.
Isaías 35.8-10 – Com esses versículos, a composição chega ao seu ápice: assegura-se que YHWH fará retornarem a Sião aqueles que houver resgatado para si. O trecho é dividido em dois momentos: a viagem e a chegada. Consoante aos demais versículos da composição, esses se arranjam estilisticamente mediante a estrutura do paralelismo de membros:
A linguagem que opõe santidade e impureza, associada à imagem da estrada, recorda o que está disposto na “lei da pureza” (Lv 11 – 16) e na “lei de santidade” (Lv 17 – 26):
Sim, eu sou YHWH, vosso Deus. Santificar-vos-eis e sereis santos porque santo eu sou. Portanto não corrompereis vossas vidas com todo o fervilhamento de criaturas que se movem sobre a terra. Sim, fui eu, YHWH, que vos fiz subir da terra do Egito para ser para vós Deus. Portanto, sereis santos, porque santo eu sou (Lv 11.44-45).
Eu, YHWH, vosso Deus, é que vos separei dentre aqueles povos. Separareis o animal puro daquele impuro e o bicho alado impuro daquele puro. Não contaminareis vossas vidas com o animal, com o bicho alado ou com tudo o que se move no solo, que afastei de vós como impuro. Sereis para mim santos, porque santo eu, YHWH, sou. Separei-vos dos povos para serdes meus (Lv 20.24b-26).
É verdade que Isaías 35.8-10 não prescreve regras alimentares, mas evidentemente compartilha com Levítico a noção de que YHWH libertou um grupo de pessoas a fim de separá-lo para si e conduzi-lo a uma terra própria. Pode-se dizer, então, que a marcha dos libertados por esse caminho da santidade fortaleceria a certeza de que YHWH resolvera fazer deles seu próprio povo! Chama atenção, inclusive, que, de acordo com o v. 8, o próprio YHWH estaria entre eles ao longo da jornada! Sua assistência repeliria o risco de ataque de animais ferozes, ameaça sob a qual as pessoas no antigo Israel sempre estiveram (Wildberger, 2002, p. 354). Dessa maneira, não admira que sejam chamados de gue’ûlîm (resgatados). Podemos lembrar aqui a atuação de Boaz como gō’ēl (resgatador), que se casou com Rute e comprou a terra do falecido marido de Noemi, garantindo, assim, uma vida digna para ambas as mulheres, além de descendentes para o marido morto da moça moabita, o qual era filho de Noemi e parente dele (Rt 4.1-17). Acerca dos judaítas libertados, Wildberger (2002, p. 355) observa: “Eles são resgatados porque Yahweh os adquiriu; sua libertação é conceituada como uma redenção. Todavia o antigo termo legal já havia se tornado um elemento fixo na descrição da expectativa escatológica da salvação no momento em que foi usado em 35:9s” (tradução própria).
A poesia termina com a chegada dos resgatados a Sião, a montanha da santidade, onde Jerusalém estivera erguida. Acerca desse aguardado acontecimento, Croatto (1989, p. 210-211) comenta:
Um tema novo é introduzido no v. 8, que descreve um “caminho sagrado” (este é o nome da grande estrada, de cuja construção nada se diz). Nem indignos nem animais passarão por ele e sim os “resgatados/redimidos” (v. 9b-10a). O 2-Isaías [40 – 55] fará alusão ao caminho aberto no deserto para a passagem de Javé (40,3) mas aqui, como em 11,16 e 62,10 (textos tardios também), o grande caminho é para o povo que retorna do exílio. As duas imagens são complementares: Javé preside a grande marcha para Jerusalém. A freqüência [sic] desta mesma imagem no livro de Isaías faz pensar que sua matriz inspiradora está nas célebres procissões com a estátua de Marduc na Babilônia, por ocasião da grande festa do ano novo, quando ela era levada pelo caminho das procissões até a “porta de Istar”, onde era completada a celebração. Os exilados participarão de outra festividade, desta vez culminando em Jerusalém.
2. Meditação
Toda a exposição precedente poderá levantar, sem dúvida, uma pergunta muito legítima: de que modo se aplica esse texto poético, que fala demasiadamente em esperança, libertação e alegria, ao contexto do Dia de Finados, marcado não poucas vezes por desespero, culpa e tristeza?
A morte e a memória dos mortos devem ser tratadas sempre com muita reverência. A dor da perda e a sensação de impotência que a acompanham não podem ser qualificadas como simples intervalo entre o acontecimento da morte e o prosseguimento da vida por parte dos que ficaram. Perder alguém a quem se amava tira o chão, implode o mundo, abala a fé, mergulha o ser na escuridão. Diante disso é preciso cuidar da pessoa enlutada com muito carinho, e penso que o texto de Isaías 35.1-10 oferece pistas sobre como fazer isso.
Pista 1: Acolher a realidade da perda e a dor que ela provoca. Sim, o poema de Isaías 35 inicia com uma conclamação à alegria. Contudo, há um cenário anterior com o qual esse convite veemente se depara e que não é omitido: uma região inóspita, desértica, desoladora. A morte pode provocar semelhante devastação emocional em muitas pessoas. Elas precisam viver novamente a alegria, mas isso somente será viável se sua dor receber a devida atenção e for considerada legítima de ser experimentada e enfrentada. Entretanto, da mesma maneira que a transformação da estepe em prado verdejante só se daria por obra de YHWH, a pessoa enlutada também não conseguirá recuperar sozinha a alegria da vida. No texto de 1 Coríntios 15.12-20, Paulo faz uma defesa da fé na ressurreição. Havia aqueles na igreja de Corinto que negavam essa crença, mas Paulo procurava convencê-los pronunciando-se várias vezes no coletivo: fala conjuntamente em nossa pregação e vossa fé (v. 14); refere-se ao fato de que esperamos em Cristo (v. 19) A ressurreição é crida quando vivida em comunhão, quando a presença de Cristo se torna palpável através dos laços de amor e da preocupação com cada pessoa, fortalecendo a convicção de que a vida é mais forte do que a morte. Pelos mortos, já não há o que fazer; em Cristo e com Cristo, porém, podemos fazer muito uns pelos outros (v. 20)!
Pista 2: Fortalecer a pessoa enlutada com a assistência solidária da comunidade de fé. Segundo já foi visto, a voz que fala no poema bíblico tem diante de si uma plateia que parece dominada pela exaustão, pelo desespero e pelo medo. Usando belas imagens da geografia da Palestina, o orador assevera que as pessoas a quem se dirige verão a glória de YHWH, que ele designa como nosso Deus. Não se trata de alguém que pretende encorajar pessoas com as quais não está envolvido. Seguramente está no meio delas, participa de suas aflições e angústias. Apenas desse jeito se desenvolve empatia, se sente a ferida do outro, se juntam forças no momento da incerteza. Fé e solidariedade andam sempre juntas! Em Mateus 22.23-33, ao ensinar sobre a ressurreição, Jesus afirma que os ressurretos serão como os anjos no céu. Mais do que simplesmente defender uma angelologia, Jesus parece ressaltar o caráter comunitário da vida em ressurreição: humanos e anjos agora vivem juntos! E Deus, Deus de vivos, Deus das matriarcas e patriarcas de Israel, congregará pessoas e seres celestes para uma existência comum e abençoada. Se, portanto, Deus é Deus de famílias, a família da fé pode e deve ser uma grande comunidade terapêutica!
3. Subsídios litúrgicos
Sugestão de hinos: HPD 1, n. 174 – Por tua mão me guia (antes da prédica); HPD 2, n. 453 – Nada te turbe (após a prédica).
Bibliografia
CROATTO, José Severino. Isaías: a palavra profética e sua releitura hermenêutica. Tradução de Jaime A. Clasen. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Imprensa Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1989. v. I: O profeta da justiça e da fidelidade, p. 1-39.
DI PETRILLO, Amalia et al. Broad-range potential of Asphodelus microcarpus leaves extract for drug development. BMC Microbiology, London, v. 17, n. 159, jul. 2017. Disponível em:
LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz zum Hebräischen Alten Testament. Editio tertia emendate opera H. P. Rüger. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1993.
MAJEED, Khansaa Rashed. Morphological and anatomical study of Asphodelus microcarpus. Bulletin of the Iraq Natural History Museum, Baghdad, v. 13,n. 1, p. 61-66, 2014. Disponível em:
ROBERTS, J. J. M. First Isaiah: a commentary. Minneapolis: Fortress, 2015.
TALMON, Shemaryahu. Miḏbār; ‘arāḇâ. In: BOTTERWECK, G. Johannes; RINGGREN, Helmer; FABRY, Heinz-Josef. Theological Dictionary of the Old Testament. Translated by Douglas W. Stott. Grand Rapids; Cambridge: William B. Eerdmans, 1997. v. 8, p. 87-118.
WILDBERGER, Hans. Isaiah: a commentary. Translated by Thomas H. Trapp. Minneapolis: Fortress, 2002. v. 3.
ZWETSCH, Roberto E. Deus vem! O sertão vai virar mar! In: HOEFELMANN, Verner (Coord.). Proclamar Libertação: auxílios homiléticos. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2013. v. 38, p. 334-339.
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