Prédica: Filipenses 3.17-4.1
Leituras: Gênesis 15.1-12,17-18 e Lucas 13.31-35
Autor: Jorge Batista Dietrich de Oliveira
Data Litúrgica: 2º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 24/02/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVII
1. Relação entre os textos
O texto indicado para a pregação neste segundo domingo na Quaresma já foi refletido em Proclamar Libertação 20 por Marli Lutz. Recomendo a leitura para quem tiver acesso. Já as leituras que o acompanham apresentam certa dificuldade de correlação. Em Gênesis 15.1-12,17-18, Deus renova a aliança com Abrão, prometendo a ele muitos descendentes e uma terra onde eles vão morar.Abrão crê na promessa de Deus. No Evangelho de Lucas 13.31-35, Jesus demonstra seu amor e chora por Jerusalém e seus habitantes, que rejeitaram sua oferta de paz e salvação e caminham para a destruição. Na Epístola aos Filipenses 3.17-4.1, encontramos o apelo do apóstolo Paulo para que os membros da comunidade de Filipos sejam seus imitadores e daqueles que andam segundo o modelo da cruz de Cristo. Paulo segue o exemplo de Jesus e chora por aqueles que têm deus por estômago e tem sua glória na indecência. Assim como Jesus, Paulo anuncia o juízo: o que espera os inimigos da cruz de Cristo são a destruição, a morte sem esperança, a perdição. Quanto aos filipenses, devem permanecer firmes no Senhor, resistindo às influências daqueles que poderiam minar-lhes a estabilidade cristã.
2. Exegese
Conforme Atos 16.12, Filipos era “uma das principais cidades da Macedônia”, e o surgimento da comunidade cristã nessa cidade aconteceu durante a segunda viagem missionária de Paulo, que chegou por volta do ano 50, acompanhado de Silas e Timóteo. Essa foi a primeira comunidade fundada pelo apóstolo Paulo no continente europeu. Não havia sinagoga na cidade, e a comunidade dos filipenses nasceu a partir de um grupo de mulheres que se reunia aos sábados na beira do rio Angites. Por meio dessa comunidade, o apóstolo recebeu grande ajuda material enquanto esteve preso na cidade de Roma.
A Carta de Paulo aos Filipenses é conhecida como a carta da alegria. Vários autores afirmam que ela é, na realidade, uma compilação de três cartas escritas em tempos e lugares diferentes, que a tradição exegética costumou chamar de Carta “A”, “B” e “C”. s diferenças de estilo e de conteúdo, assim como os bruscos hiatos entre 3.1 e 3.2 e entre 4.9 e 4.10 não se explicam de outro modo. É possível que os filipenses juntassem as cartas do apóstolo para serem lidas em conjunto em suas reuniões. E, mais tarde, tornaram-se uma só carta.
A primeira, Carta “A”, é a mais antiga e trata-se de um bilhete de agradecimento “pela ajuda que a comunidade lhe enviou através de Epafrodito” (Fp 4. 10-20). A Carta “B” é a mais longa: traz uma exortação à unidade “e contém noticias pessoais de Paulo” (Fp 1.1-3.1 + 4.2-9,21-23). Por fi m, a Carta “C”, que bem poderia ser chamada de carta de advertência (Fp 3.2-4.1). A primeira e a segunda cartas foram escritas na prisão, sendo difícil estabelecer com exatidão o local e a data das mesmas. A chamada Carta “C” possui exatos 21 versículos. Certamente trata-se de uma carta escrita pós-prisão. Ela sucintamente quer alertar a comunidade de Filipos, entre outras coisas, para os perigos doutrinais difundidos ou por judaizantes ou por judeu-cristãos antipaulinos (cf. Fp 3.2ss). Podemos dividi-la em quatro focos:
1º foco: advertir contra os judaizantes (Fp 3.1-3);
2º foco: ilustrar os perigos que esse grupo pode gerar a partir de traços autobiográficos de Paulo (Fp 3.4-16);
3º foco: um convite à imitação do apóstolo, que segue somente a Cristo (Fp 3.17-21);
4º foco: um chamado à fidelidade (Fp 4.1).
Nossa perícope (Fp 3.17-4.1) compreende o 3º e o 4º focos da Carta C e bem poderia ser resumida assim: Paulo exorta a comunidade a ser seguidora dele, que segue a Cristo. Ao mesmo tempo, ele a convida a desacreditar naquilo que anunciam os seus adversários, pois eles se fazem passar por irmãos, mas são “inimigos da cruz de Cristo”. Certamente rejeitam “a participação nos sofrimentos de Cristo” (3.10). Seu deus é o ventre. Por fi m, Paulo encerra a carta exortando sua comunidade amada a permanecer firme no Senhor.
V. 17 – “Sede imitadores meus”: esse é um tema frequente nas epístolas paulinas. O apóstolo Paulo coloca o seu próprio modo de ser e daqueles que “andam segundo esse modelo” como exemplo para os filipenses. Ele não coloca a si mesmo como um ideal a ser seguido, mas aponta para Cristo. Em 1 Coríntios 11.1, ele esclarece: “como também eu sou de Cristo”. Paulo pode ser modelo pelo caminho da cruz que escolheu, pois optou pelo caminho da humilhação, do sofrimento e do esvaziamento de si próprio. Sua dedicação à causa do Reino era conhecida e estava em contraste com o procedimento de seus adversários, que pensam somente nas coisas que são deste mundo. Paulo é fiel à cruz (Gl 6.14). Cristo é a sua glória (v. 21), e sua preocupação são as coisas celestiais.
V. 18 – Paulo passa agora a falar de outras pessoas, que não devem absolutamente ser imitadas. O pior é que elas andavam no meio cristão: entre nós. Elas são “inimigos da cruz de Cristo”. Paulo já havia advertido contra os falsos missionários, que eram judeus convertidos ao cristianismo, ainda ligados a uma religiosidade legalista que buscava a salvação através da observância da lei, da busca da perfeição e da prática das obras. Parece que a situação se agravou, e tais mestres representam agora um grupo poderoso, tanto em tamanho como em influência. Por isso o apelo veemente do apóstolo e a condenação de seus adversários, pois a cruz é a melhor representação do evangelho cristão. Ser inimigo da cruz é ser inimigo frontal do cristianismo.
V. 19 – A frase “o deus deles é o ventre” pode ser uma alusão às observâncias alimentares que ocupavam um lugar importante na religião judaica ou um sinônimo de carne, isto é, o eu na sua fraqueza e incapacidade de salvar. Tomar o ventre como deus seria tomar a si mesmo como referência suprema. “A glória deles está na sua infâmia”: o termo traduzido por “infâmia” frequentemente caracteriza a ruína vergonhosa e definitiva no juízo de Deus. Assim como seu fi m será a perdição, também a infâmia tomará o lugar de sua glória. “Só se preocupam com as coisas terrenas”: os pensamentos e perspectivas deles são limitados pela confiança naquilo que é transitório. Falta-lhes o principal: as coisas que vêm do alto, que não são transitórias, mas eternas porque vêm de Deus.
V. 20-21 – Diversos pesquisadores supõem que estes versículos faziam parte de um antigo hino ou de uma tradição consolidada. Paulo os teria “retrabalhado” para falar do caráter escatológico da salvação, que não é produto humano, mas vem de Deus, e para afirmar a verdadeira esperança cristã. Paulo estabelece aqui um contraste entre os seus adversários e os verdadeiros cristãos; enquanto aqueles só se preocupam com coisas terrenas, nós somos diferentes. “Nossa pátria está nos céus”: a palavra traduzida por pátria é politeuma e designa tanto o direito à cidadania como o Estado, a associação civil, que confere o direito do cidadão. O termo também é usado de preferência para designar uma colônia de estrangeiros. Talvez Paulo escolhesse essa formulação peculiar justamente porque essa cidade era uma colônia militar romana, que do ponto de vista administrativo estava diretamente ligada a Roma, sem responder às autoridades provinciais da Macedônia, sendo detentora do direito romano. Por isso a metáfora podia ser particularmente compreensível para os filipenses.
Nós cristãos certamente vivemos nesta terra, dependendo dela para suprir nossas necessidades, somos atribulados pelos poderosos, mas pertencemos ao reino de Deus. Quem “busca as coisas terrenas” transforma a terra estranha em pátria e renega sua cidadania real e verdadeira, distanciando-se da comunidade cujo membro tem o privilégio de ser e separando-se daquele que é seu verdadeiro Senhor para se perder com outros senhores e transformar o ventre em deus! Por isso Paulo afirma enfaticamente: “Nossa cidadania existe nos céus, de onde aguardamos o Salvador”. Não somos cidadãos natos do reino celestial, mas simplesmente porque Cristo está nos céus. Só ele é a garantia de nossa cidadania. Pertencemos a um reino eterno que ainda não se manifestou na sua plenitude, mas virá com toda a força de Deus. Daquilo que transcende nossas possibilidades é que esperamos o Salvador. Por isso aguardamo-lo com confiança.
V. 21 – Paulo deixa claro que a salvação vem “de fora”, melhor: de cima. Um salvador que vem dos céus choca o orgulho dos que querem salvar ao menos um pouco de sua própria justiça e santidade. Por isso o apóstolo afirma que o Salvador vindouro transformará nosso corpo de humilhação (de pecado) e o conformará a seu corpo glorificado. Ele ressuscitou corporalmente da sepultura. Seu reino atinge o ponto culminante na ressurreição dos corpos. Esperamos por essa gloriosa redenção, pois pertencemos ao mundo dos ressuscitados (cf. Rm 8.23;1Co 15.43-53). É a partir daí que a vida cristã passa a ser “correr rumo ao alvo para o prêmio da vitória da vocação celestial de Deus em Cristo Jesus”.
4.1 – O trecho conclui de forma muita carinhosa com a exortação de permanecer firmes no Senhor, sem vacilar. Paulo procede assim com amor afetuoso,/chamando os destinatários duas vezes de “amados” nessa breve frase, afirmando que eles são sua alegria e coroa (a coroa, feita de folhas de louro, era troféu de vitória concedido aos vencedores em competições esportivas).
Esse apelo aos irmãos de permanecer firmes no Senhor liga-se ao chamado anterior (3.17) para que se unam e imitem o apóstolo e seus companheiros e assim sejam fortificados contra os sectários. Permanecer firmes é resistir às tentações dos falsos missionários. A comunidade inteira deve formar uma defesa inabalável para não se deixar confundir pelas heresias. Deve permanecer naquele estado em que foi colocada através da graça de Deus por intermédio de Cristo.
3. Meditação
Assim como a comunidade de Filipos, nossas comunidades sofrem a influência de falsos regadores, que anunciam um evangelho desconectado da cruz de Cristo. Eles pregam o que a maioria das pessoas gosta de ouvir. Costumam fazer uso de frases de efeito e promessas de vitórias e “profecias” que resolvem todos os problemas. Usam esses artifícios para obter lucro fácil e riquezas, comercializando a palavra e Deus e enganando os desavisados. Seja pela mídia ou até mesmo dentro de nossos grupos, pessoas pregam e ensinam falsas doutrinas.
Assim como os irmãos de Filipos, também nossas comunidades precisam ser advertidas quanto a esse perigo. Por amor e para proteger as pessoas do engano, precisamos com coragem afirmar que, no meio evangélico, há falsos cristãos, que são inimigos da cruz de Cristo pelos ensinamentos que espalhavam e pelo comportamento incoerente com o evangelho de nosso Senhor Jesus.
Vale para nossos dias a advertência de Paulo. Devemos ter muito cuidado com aqueles que causam desordens na congregação, ensinando doutrinas falsas, buscando os prazeres pecaminosos, orgulhando-se daquilo de que deveriam sentir vergonha, pensando somente nas coisas deste mundo.
Aqui valeria uma reflexão para as nossas comunidades gastronômicas, que são conhecidas muito mais pelos almoços regados a cerveja que realizam do que pelo testemunho do evangelho, pela diaconia ou pelo amor ao próximo. Algumas dessas são conhecidas como “igreja das cucas”, “igreja do churrasco”, “igreja do kerb”. Seguem o próprio ventre em vez de seguir Jesus no caminho do amor, da doação em favor da vida. Querem Deus para si e não têm visão para o anúncio do evangelho e para a missão. Assim como em Filipos, muitas de nossas comunidades têm orgulho naquilo que é vergonhoso, pois vendem caixas e mais caixas de cerveja, promovendo a embriaguez e o desrespeito à lei. Não é difícil constatar que pessoas saem de nossos almoços alcoolizadas e dirigem seus automóveis para casa servindo de escândalo, pois dirigir sob a influência do álcool é crime que pode gerar multa, suspensão do direito de dirigir por doze meses e até mesmo prisão.
Por vezes, falta-nos a coragem para fazer como Paulo. Ele conclama os cristãos de Filipos para que sejam seus imitadores e dos que vivem de acordo com o exemplo que ele deu. Não precisamos ter medo de ser modelo. Ser modelo é uma opção de vida. Crianças seguem o modelo dos pais ou daqueles que estão próximos. Professores são modelos para os alunos e alunas. Líderes, ministros e ministras são chamados a ser modelos em nossas comunidades.
O modelo não precisa ser perfeito; também tem o direito de errar. Paulo tinha consciência de que não era perfeito, não negou que era o pior dos pecadores e que esteve junto na morte de Estêvão. Paulo reconhecia que era fraco e que Deus o tornava forte em sua fraqueza. Nós somos motivados a servir a Cristo imitando o exemplo e Paulo e de tantos outros irmãos e irmãs na fé que se dedicaram ao serviço fiel ao Senhor. Ao mesmo tempo, precisamos ser exemplos que motivam e ajudam outros a seguir nesse caminho de amor, renúncia e doação em favor da vida.
Colocar-se como modelo que aponta para Cristo não significa, necessariamente, apenas sofrimento. Existe a dimensão da alegria no caminho da cruz. Paulo afirma que, por causa de Jesus, nós temos uma pátria nos céus e, de lá, nós esperamos a vinda do Salvador, que, com seu poder, vai transformar o nosso corpo de humilhação, ou seja, o nosso corpo pecador, fraco, imperfeito, mortal, em um corpo glorioso.
Somos cidadãos dos céus, pois a partir do Batismo recebemos uma nova vida, que nos foi conquistada por Jesus Cristo em seu sofrimento, morte e ressurreição. Agora, nós temos a responsabilidade de viver essa nova vida, não para nós mesmos, mas para Deus, como cidadãos de um reino já presente, mas ainda não em toda a sua plenitude. Por isso, todas as vezes que vivermos o amor ao próximo, a solidariedade e a justiça ensinados por Jesus, estaremos experimentando um pouquinho desse reino e exercendo nossa cidadania celeste.
Nesse período da Quaresma, somos lembrados o quanto Deus investiu para nos tornar cidadãos dos céus: Jesus sofreu, morreu pregado na cruz e ressuscitou ao terceiro dia e, assim, nos resgatou das trevas para a luz e nos concedeu a cidadania celeste, perdoando os nossos pecados e dando-nos a certeza da vida eterna.
Em resposta ao grande amor de Deus revelado na cruz, nós somos motivados pelo evangelho (palavra e sacramentos) a buscar, em primeiro lugar, o reino de Deus e a sua justiça. Somos motivados a servir a Cristo e, por isso, fortalecidos no evangelho, imitamos o exemplo de Jesus no caminho da cruz, como também o exemplo de Paulo e de tantos outros irmãos e irmãs na fé. E assim permanecemos firmes, vivendo unidos com o Senhor.
4. Imagens para a prédica
Pensando na exortação de Paulo que diz: “sede meus imitadores...”, lembrei-me desta estória: Na estrada de minha casa, há um pasto. Dois cavalos vivem lá. De longe, parecem cavalos normais, mas, quando se olha bem, percebe-se que um deles é cego. Contudo, o dono não se desfez dele e arrumou-lhe um amigo: um cavalo mais jovem.
Se você observar, ouvirá um sino. Procurando de onde vem o som, você verá que há um pequeno sino no pescoço do cavalo novo. Assim, o cavalo cego sabe onde está seu companheiro e vai até ele. Ambos passam os dias comendo e, no final do dia, o cavalo cego segue o companheiro até o estábulo. E você percebe que o cavalo com o sino está sempre olhando se o outro o acompanha e às vezes para, dando um tempo para que o outro possa alcançá-lo. E o cavalo cego guia-se pelo som do sino, confiante de que o outro o está levando para o caminho certo.
Assim como o dono desses dois cavalos, Deus não se desfaz de nós só porque não somos perfeitos ou porque temos problemas ou desafios. Ele cuida de nós e faz com que outras pessoas venham em nosso auxílio quando precisamos.
Algumas vezes, somos o cavalo cego, guiado pelo som do sino daqueles que Deus coloca em nossas vidas. Outras vezes, somos o cavalo que guia, ajudando outros a encontrar o seu caminho.
5. Subsídios litúrgicos
Oração:
Senhor nosso Deus, neste mundo de tantos ensinos e filosofias, precisamos de tua orientação. Há muitas vozes querendo nos confundir, anunciando um evangelho diferente daquele que Jesus ensinou. Ajuda-nos a não cair no engano e a não nos conformar com o pecado. Concede-nos discernimento, pois queremos ser tão somente teus discípulos. Em nome de Jesus Cristo. Amém.
Bênção:
Deus te dê para cada tempestade um arco-íris, para cada lágrima um sorriso, para cada preocupação uma perspectiva, uma ajuda em cada dificuldade. E uma resposta para cada oração (da Irlanda).
Bibliografia
BORTOLINI, José. A Carta aos Filipenses. São Paulo: Paulinas, 1991.
COMBLIN, José. Epístola aos Filipenses. Petrópolis: Vozes, 1985.
MARTIN, Ralph. Filipenses. Introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova e Editora Mundo Cristão, 1985.