Prédica: Filipenses 2.5-11
Leituras: Números 6.22-27 e Lucas 2.15-21
Autoria: Daniel Kreidlow
Data Litúrgica: Ano-Novo (Nome de Jesus)
Data da Pregação: 01/01/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
O humilhado-exaltado Deus-humano
1. Introdução
A temática do “nome de Deus” aparece como fio vermelho nos três textos previstos para o dia do Ano-Novo. Em Filipenses 2.5-11, o nome de Jesus é exaltado e colocado acima de todos os nomes. Jesus é testemunhado como Senhor (Kyrios), nome usado na Septuaginta para traduzir o termo hebraico YHWH (Javé). Já o Evangelho de Lucas 2.15-21 relata a ida dos pastores até a estrebaria onde estava o menino recém-nascido. Logo após, o foco do texto recai sobre a circuncisão e o dar nome ao menino. Ele recebe o nome Jesus, assim como o anjo o anunciara antes mesmo de sua concepção. Por último, o texto de Números 6.22-27 nos traz a bênção aaraônica. Nela o nome de Deus (YHWH) é colocado como marca e bênção sobre todos os filhos de Israel.
O texto para prédica, Filipenses 2.5-11, já foi estudado diversas vezes em edições do Proclamar Libertação. O presente estudo pressupõe a leitura das contribuições anteriores.
2. Exegese
A Carta aos Filipenses é um dos textos com características mais pessoais escritos pelo apóstolo Paulo. Ele conhecia a comunidade pessoalmente (2.12), o que possibilitava um relacionamento de proximidade com “todos os santos em Cristo Jesus” na cidade de Filipos (1.2).
Filipos foi nomeada assim pelo seu fundador, Filipe da Macedônia, e foi a mais importante cidade da parte leste dessa região. A partir de 168 a.C., ela ficou sob senhorio romano, com o status de uma colônia romana (At 16.12), o que possibilitava direitos de governo próprio, dando a seus cidadãos o mesmo direito que os cidadãos em Roma possuíam.
A cidade não pode ter sido pequena, pois continha um teatro com capacidade para aproximadamente 50 mil pessoas. Como em toda grande cidade daquela época, também em Filipos podemos encontrar difundido o sincretismo. A adoração de deuses da fertilidade, os cultos de mistérios de tradição egípcia, assim como orgias em honra a Dionísio, o deus do vinho, não deviam ser estranhos entre os filipenses.
A comunidade cristã em Filipos foi fundada durante a segunda viagem missionária do apóstolo Paulo e é a primeira comunidade a surgir na Europa (At 16.11-40). Ao chegar à cidade, Paulo encontra Lídia, vendedora de púrpura, num lugar de oração próximo a um rio. Lídia e sua casa convertem-se ao ouvir o Evangelho e assim lança-se ali a semente de uma nova comunidade de fé. Além da conversão de Lídia, o livro de Atos relata ainda a conversão de outra pessoa em Filipos, enquanto Paulo e Silas ficaram presos na cidade. Um guarda da prisão onde eles estavam encarcerados também se converte e provavelmente se soma à futura comunidade. Esses encontros com pessoas e ao mesmo tempo a formação da comunidade são interrompidos, pois Paulo e Silas são chamados a sair da cidade após serem libertados. A Filipos eles voltam outra vez somente na sua terceira viagem missionária (At 20.6).
Paulo escreve a Carta aos Filipenses enquanto ele provavelmente era prisioneiro em Roma (1.7). Ele a redige por três motivos principais: primeiro, a Carta aos Filipenses mostra-se como uma carta de gratidão, pois Paulo agradece pela ajuda recebida por meio de Epafrodito (4.10-20); segundo, revela-se como uma carta de acompanhamento, pois revela o cuidado que o apóstolo demonstra pela comunidade (2.25) e anuncia o envio de Timóteo como um auxiliador (2.19). Um terceiro motivo da redação da carta poderiam ser as contendas e brigas havidas na comunidade. Paulo exorta os filipenses à união (2.1-4) e pede por mudança de comportamento entre os membros da comunidade (4.1-3).
Dentro desse conteúdo exortativo que a carta transmite se encontra também o texto de Filipenses 2.5-11, o famoso hino cristológico. O texto retrata a obra salvífica de Deus em Cristo Jesus, que sendo Deus se torna humano para salvação e redenção daqueles que creem. Deus se humilha resgatando e dignificando o ser humano. Semelhantemente a João 1.1-14, o hino quer testificar a preexistência de Jesus Cristo, uma confissão de fé que possivelmente tem como pano de fundo concepções judaicas antigas, como a da Sabedoria (Pv 8). Segundo a tradição judaica, também a Sabedoria existia antes de tudo (Pv 8.22-31).
V. 5 – O vínculo entre o hino cristológico e o texto anterior da carta nós encontramos no v. 5. Toda a exortação parenética encontrada nos versículos 1-4 possuem como fundamento Jesus Cristo, assim como ele é revelado no hino cristológico. Ter o mesmo modo de pensar ou o mesmo sentimento em Cristo mostra a ligação que toda pessoa cristã, segundo Paulo, possui com o Cristo testemunhado nesse trecho da carta.
V. 6 – De modo semelhante à Sabedoria do livro de Provérbios, Jesus é testemunhado como sendo igual a Deus (en morphē theou hyparchōn) e, consequentemente, estando com ele desde o início. Em contraposição a Provérbios, Cristo não é designado no hino cristológico como cocriador do mundo existente. Contudo, o entendimento dele como cocriador do que existe encontramos em Paulo e em outros textos do Novo Testamento (1Co 8.6; Cl 1.16, assim como em Jo 1.3 e Hb 1.2).
V. 7 – Embora Cristo tivesse a mesma forma (morphē), ou melhor, fosse igual a Deus, ele se humilha deixando essa forma, esvaziando-se (ekenōsen), tornando-se igual a um servo humano. Que um Deus tivesse vindo à terra com aparência de um ser humano não era estranho para nenhuma pessoa que vivia em Filipos. Nas mitologias da época, os deuses Júpiter e Mercúrio assumem, por exemplo, a aparência humana e surgem entre homens e mulheres. Mas Paulo estava anunciando algo muito diferente aos filipenses.
V. 8 – Isso nos é reforçado agora. Cristo, que era igual a Deus, se humilha e se rebaixa (etapeinōsen heauton), assumindo, como ser humano, a obediência até a morte de cruz. Jesus Cristo não é, assim, um deus vestido de humanidade. Ele é antes disso verdadeiramente ser humano. De deuses que vinham ao mundo os filipenses já haviam ouvido. Mas de um Humano-Deus-Crucificado eles ouvem de Paulo pela primeira vez. Com a expressão “e morte de cruz” (thanatou de staurou) o apóstolo introduz ao hino cristológico (que em sua origem não é redação de Paulo) sua teologia da cruz, teologia essa que foi minuciosamente anunciada em outras cartas que ele escreveu (1Co 1.18ss).
V. 9 – A morte de cruz de Jesus não é o fim desse ser humano testemunhado no início do hino como sendo igual a Deus. Após sua humilhação, surge sua exaltação e com isso uma drástica mudança. Jesus Cristo recebe um nome acima de todos os nomes. Ele é identificado e dignificado como Kyrios. E, ao mesmo tempo, seu tornar-se humano dignificou a humanidade. Dignidade não está aqui vinculada à força e ao poder, e sim à humildade e fraqueza do Deus-Humano crucificado.
V. 10-11 – A exaltação do humano-Deus-crucificado traz consigo a consequência do reconhecimento do senhorio de Jesus Cristo. O humano-Deus-crucificado é Kyrios, nome acima de todos os nomes, nome usado para traduzir a designação hebraica para Deus (YHWH) no Antigo Testamento. Aquele que morre na cruz e no terceiro dia ressuscita é verdadeiramente ser humano e Deus.
3. Meditação
O hino cristológico de Filipenses contém uma mensagem social. É notório que na comunidade há divisões e brigas (Fp 2.2,3). E a causa dessas divisões é a busca de alguns membros por status, sendo que uns gostariam de estar em posição privilegiada em relação a outros. Assim, o apóstolo Paulo exorta, por meio do hino, a eliminação da busca por privilégios e status. Em contraposição a isso, no entendimento de Paulo, na comunidade deve haver a busca pela humildade.
E é Jesus Cristo a imagem dessa humildade. Sendo igual a Deus, ele possuía o mais alto status possível, mas por amor ao ser humano o abandona. Ao tornar-se igual a nós, Cristo assume a forma de servo, servo que sofre a morte de cruz para que a humanidade pudesse ser salva. Ele assumiu como Humano-Deus o lugar do ser humano condenado e pecador. Por isso foi elevado por Deus e recebeu o nome que está sobre todo nome.
Para os cristãos filipenses havia aí um profundo desafio e encorajamento. Primeiro, os que pertenciam à classe dos excluídos e desprezados recebiam a boa notícia de que Deus se colocava ao lado deles. Também eles possuíam valor e dignidade. Segundo, os que pertenciam a uma classe privilegiada, seja por causa do nome que carregavam ou por causa do aspecto financeiro, recebiam a boa notícia e a exortação de que podiam em fé ajudar outras pessoas, colocando-se junto a quem menos era, menos tinha ou sofria por algum motivo. Em prol de uma sociedade justa, as pessoas com mais possibilidades deveriam ter a capacidade de assumir uma posição ao lado de quem menos possui. Uma sociedade ou uma comunidade que não tem essa coragem e esse desprendimento está descumprindo a vontade de Deus anunciada no hino cristológico.
O hino cristológico contém também uma mensagem ao ser humano como indivíduo. Paulo está preso na cadeia no momento em que escreve a carta e testemunha esse Deus-humano em Cristo. Também Jesus foi condenado e morto pelos judeus e romanos. Quem vê seu Deus sofrer enfrenta e suporta de forma mais leve a própria dor, o próprio sofrimento e a própria morte. Se o próprio Deus assume e enfrenta a morte, Paulo não a percebe como contradição na sua história pessoal. O hino cristológico revela-nos o destino de todo ser humano e a dignidade que há em toda pessoa. Quem era igual a Deus abre mão de sua posição de igualdade com ele ao tornar-se verdadeiramente humano, não assumindo somente uma aparência de ser humano. Assim nos é testemunhado que o humano é criado à imagem de Deus e deve ser visto em sua dignidade como criatura, e isso independente do seu status social. Desta forma, a igreja primitiva anuncia e enfatiza a dignidade humana enquanto testemunha a encarnação do próprio Deus entre nós seres humanos.
A mensagem do hino cristológico de Filipenses é uma “contramensagem” às exigências e aos desejos do mundo. Como imperador, César queria ser adorado e reverenciado como sendo Deus. Sêneca escreve na época do apóstolo Paulo para o seu aluno Nero que ele não podia abandonar seu alto status, pois sua posição é que o possuiria como imperador. Independente para onde Nero fosse, seu status o perseguiria. Consequentemente, na figura do imperador se encontram temas como status e divindade. A essa falsa imagem de Deus incorporada pelo imperador na fala de Sêneca o apóstolo Paulo contrapõe a verdadeira imagem de Deus com o hino cristológico em sua Carta aos Filipenses. Deus em Cristo Jesus vincula-se à fraqueza, humildade e humanidade necessitada. Essa imagem de Deus pode ser encontrada no mais insignificante ser humano e não no César poderoso.
Por último, o hino cristológico contém uma mensagem sobre Deus em uma linguagem poética-mítica: Jesus, o Cristo, não é nenhum mito. Ele é uma figura histórica concreta. Ele anunciou o reino de Deus e concretiza seu anúncio, ele fala sobre Deus e o encarna em meio à humanidade. Esse Deus que viria com seu reino pode ser reconhecido por todas as pessoas. O hino cristológico dá um nome a esse Deus: Jesus Cristo, o crucificado.
Os discípulos de Jesus tinham a esperança de que Deus e seu reino fossem revelados em todo o mundo. Eles ouviam sobre a vinda do reino sempre de novo no ensino de Jesus. Mas a crucificação acabou desestabilizando essa esperança. Porém, com as aparições do crucificado-ressurreto, essa esperança do reino de Deus recebeu concreticidade: o crucificado-ressuscitado Jesus Cristo vive e é Deus.
Na mensagem de Paulo, Jesus é SENHOR (Kyrios), pois ele era e é igual a Deus (YHWH). Se Jesus como crucificado estava ao lado dele, então ele pertencia desde sempre a essa esfera e era Deus. Assim, ele possuía também seus atributos e somente por um momento deixou de ser igual a Deus, tornando-se humano e sofrendo morte de cruz. A linguagem poético-mitológica revela uma figura nada mítica: Jesus Cristo. Desta forma entrelaçam-se memórias históricas sobre Jesus de Nazaré e dá-se concreticidade a um Deus que era inacessível e mitológico, o Eterno e Criador. O mito e sua linguagem são certamente poesia, mas trazem à luz verdades concretas sobre nós humanos e Deus.
Com base no exposto acima, podemos resumir e afirmar que o hino cristológico com sua linguagem mitológica nos exorta não somente à eliminação do status injusto e maléfico em meio à sociedade e à comunidade cristã. Antes de mais nada, ele nos encoraja a acolhermos a transitoriedade e as limitações da nossa vida. O hino ajuda-nos na aceitação da fragilidade da nossa realidade como seres humanos por meio de uma confiança que se baseia no Cristo encarnado. Esse Cristo deixa de ser igual a Deus para se tornar um como nós, valorizando e dignificando o humano. Dessa forma, ele possibilita a todo ser e a qualquer vivência indigna neste mundo novo valor e respeito.
4. Imagens para a prédica
Deus dignifica a humanidade por meio de Cristo Jesus ao tornar-se um como nós. O hino cristológico enfatiza que não no poder e na força existem valor supremo e dignidade, mas no colocar-se ao lado daqueles fragilizados, desprezados e prejudicados. Por isso, tomando a temática da dignidade do humano que foi exaltada com Cristo, percebo duas possibilidades de vínculos temáticos para a celebração:
a) Dignidade e Ano-Novo: Um novo ano nos possibilita e motiva a um recomeço, o que podemos facilmente vincular com a busca de uma dignidade perdida ou a tentativa da renovação da dignidade. A possibilidade de uma retrospectiva do que se foi com o ano que termina e o fortalecer do renascimento de novos sonhos com o ano que inicia está ligada ao resgate ou afirmação de valor e dignidade próprios.
b) Dignidade e o nosso nome: O “nome” que cada pessoa carrega está ligado a valor e dignidade. Nosso nome é algo pelo qual somos reconhecidos e que nos identifica. Desde os tempos do Antigo Testamento, os nomes já tinham relação com o local e o momento do nascimento de uma criança. Em muitos outros casos, tinham relação também com o futuro, como no caso de nomes proféticos. O nome representava o próprio indivíduo, sua personalidade, seu caráter, enfim, o valor que a pessoa iria carregar. Por isso muitas pessoas ainda hoje não querem “sujar” ou “manchar” o nome que possuem ou o nome de sua família. O nome que possuímos e carregamos está ligado à presença ou ausência de dignidade.
Bibliografia
LOHMEYER, Ernst. Die Briefe an die Philipper, an die Kolosser und an Philemon. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1953. (KEK 9).
MÜLLER, Ulrich B. Der Brief des Paulus an die Philipper. Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 1993. (ThHK 11/1).
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