Prédica: Efésios 3.1-12
Leituras: Isaías 60.1-6 e Mateus 2.1-12
Autoria: Marcos Henrique Fries
Data Litúrgica: Epifania de Nosso Senhor
Data da Pregação: 06/01/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
Unidade na diversidade
1. Introdução
“Unidade na diversidade.” Essa expressão tão conhecida é como uma bandeira de muitos grupos da sociedade que defendem a convivência fraterna e respeitosa entre pessoas diferentes. Também a igreja apela para esse lema constantemente, no que está correta, principalmente por causa de textos bíblicos como esse que o presente auxílio abordará. É que tolerância é (ou deveria ser) uma das marcas da comunidade cristã.
O texto está previsto para ser pregado no dia de Epifania, data litúrgica que comemora a revelação de Deus em Jesus Cristo, a luz que brilha sobre as trevas deste mundo (Is 60.1-6). Tradicionalmente, também se lembra nesse dia a visita dos magos ao Deus-criança (Mt 2.1-12), salientando que a luz oferecida por Jesus não é exclusividade de um só povo ou raça.
Efésios 3.1-12 já foi estudado e apresentado em PL XVI, XXII, XXXI e XXXV. Recomenda-se a leitura desses auxílios, que são muito ricos e esclarecedores principalmente na análise exegética, mas também na diversidade de enfoques.
2. Exegese
A Epístola aos Efésios tem sido objeto de muitas discussões entre biblistas nos últimos tempos, especialmente quanto aos destinatários originais, autor e data do escrito. Embora já no prefácio e saudação (1.1-2) o nome de Paulo seja mencionado como autor e a igreja de Éfeso seja apresentada como destinatária da carta, muitos estudiosos, por diversos motivos, como linguagem, temas abordados ou mesmo a falta de observações mais pessoais e saudações, atribuem a autoria a um discípulo do apóstolo, que nessa carta teria tentado sistematizar o pensamento paulino. No que se refere aos destinatários, considerando que muitos manuscritos da época não fazem menção a Éfeso, é possível, dizem, que essa seja uma carta circular, tendo passado por diversas igrejas da Ásia. Se o autor foi mesmo o apóstolo Paulo, então a epístola foi escrita enquanto ele era prisioneiro em Roma, na mesma época em que escreveu Filipenses, Colossenses e Filemom: por volta de 60-61 d.C. Se é de autoria de algum de seus discípulos, pode ter sido escrita após a destruição da cidade de Jerusalém: em 70 d.C.
O estilo dessa carta é muito semelhante a uma pregação, e o seu tema central parece ser a igreja.
No trecho selecionado para a pregação (3.1-12), o autor fala do seu chamado para anunciar o evangelho entre os gentios (os povos não israelitas). Nesse anúncio está a revelação de um mistério, “a saber, que mediante o evangelho os gentios são coerdeiros com Israel, membros do mesmo corpo, e coparticipantes da promessa em Cristo Jesus” (3.6). Antes disso, o tema já fora tratado pelo autor em 2.11-22. Essa verdade ficara oculta às gerações passadas, mas agora, depois da vinda de Jesus Cristo, deveria ser revelada a todos os povos.
Era de conhecimento geral que os “incircuncisos”, quer dizer, aqueles que não faziam parte do povo de Israel, que não se sujeitavam às leis desse povo nem observavam suas tradições, estavam excluídos das promessas de Deus. O próprio Jesus entendera seu ministério como primordialmente destinado aos judeus: “Não fui enviado senão às ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15.24). Condição um pouco melhor desfrutavam os gentios convertidos ao judaísmo. Entretanto mesmo a esses se impunham restrições. No templo de Jerusalém, por exemplo, uma parede separava o átrio dos gentios do átrio dos judeus. Havia um aviso de que qualquer não judeu que ultrapassasse essa parede receberia morte imediata e súbita. Essa parede de separação é usada como ilustração pelo autor da carta em 2.14.
Embora Jesus tenha muitas vezes assistido não judeus durante seu ministério e, em suas palavras de despedida, tenha ordenado que seu nome fosse testemunhado até nos confins da terra (At 1.8), portanto, que o anúncio do evangelho ultrapassasse as barreiras geográficas e culturais do judaísmo, parece que sua declaração em Mateus 15.24 permaneceu sendo referência. A decisão de testemunhar o evangelho também para os gentios só aparecerá de forma inequívoca em Atos 13.46, depois que Paulo e Barnabé pregaram numa sinagoga em Antioquia: “Cumpria que a vós outros em primeiro lugar fosse pregada a palavra de Deus; mas, posto que a rejeitais e a vós mesmos vos julgais indignos da vida eterna, eis aí que nos volvemos para os gentios”. Paulo, portanto, passa a ser reconhecido como o apóstolo dos gentios. Sobre isso escreve o autor de Efésios em 3.8: “Embora eu seja o menor dos menores dentre todos os santos, foi-me concedida esta graça de anunciar aos gentios as insondáveis riquezas de Cristo”.
O centro da perícope que estamos analisando é, portanto, a revelação de que os gentios são, a partir de Cristo, assim como os judeus, herdeiros de Deus, membros da família de Deus e participantes da promessa de salvação. O autor reflete sobre sua missão de ajudar os judeus e os gentios crentes a aceitar-se como parceiros na aliança de Deus, na igreja, na família. Judeus e gentios, por causa da fé em Jesus, são um só corpo, do qual Cristo é a cabeça. Judeus e gentios são parceiros no testemunho da “multiforme sabedoria de Deus” (v. 10). Judeus e gentios, por causa de Cristo, não mais se excluem, baseados em seu passado e suas tradições (circuncisos e incircuncisos), porque “dessarte, não pode haver judeu nem grego, nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3.28).
3. Meditação
Judeus e gentios foram chamados a ser parceiros e a conviver fraternalmente na igreja. Trata-se de um apelo difícil de atender. Judeus e gentios tinham tradições diferentes, tiveram um passado diferente, nasceram em lugares diferentes, seguiram deuses diferentes, viam o mundo de maneira diferente. Judeus e gentios eram diferentes. E desde sempre o ser humano teve grandes dificuldades em conviver com o diferente. O diferente sempre representou uma ameaça, um perigo. É porque o diferente nem sempre foi visto apenas como diferente, mas como um equivocado em suas concepções, preferências e costumes. Logo os grupos estabeleceriam paredes para proteger-se dos outros, dos diferentes.
E as mesmas dificuldades de relacionamento outrora enfrentadas por judeus e gentios são experimentadas ainda hoje. O diferente continua sendo um obstáculo para a igreja no século 21. Embora o discurso oficial seja viver uma unidade na diversidade, na prática as coisas não funcionam bem assim. Um exemplo: a “igreja dos alemães”, como as comunidades evangélicas luteranas eram conhecidas por muito tempo, continua tendo problemas, ainda que velados, com os nascidos fora do germanismo. Evidentemente, a questão étnica não é mais motivo para restringir o acesso de pessoas aos nossos templos, mas observações como a que ouvi há poucas semanas em minha comunidade (“Nossa igreja está escurecendo!”) mostram que a presença de pessoas de outras origens étnicas ainda causa estranhamento.
Ainda no contexto da IECLB, é flagrante a dificuldade de entrosamento e trabalho conjunto entre as diferentes correntes teológicas. No discurso, a coexistência das diversas linhas de pensamento é vista como uma vantagem, pois os segmentos se enriqueceriam mutuamente. Mas, na prática, sejamos francos, os grupos acabam se excluindo. Mesmo dentro de uma comunidade, pessoas com diferentes estilos de piedade ou diferentes modos de cultivar a espiritualidade se estranham. Ninguém admitirá isso, mas, no fundo, parece que o meu jeito de ser igreja é mais correto, mais bíblico, mais fiel à tradição, mais responsável que o de os outros. Tenho a impressão de que temos mais facilidade em criar e manter relações ecumênicas (com outras denominações) do que conviver com os diferentes dentro de nossa própria casa.
Além das questões étnicas ou teológicas, é preciso olhar também para o chamado pluralismo de nossa sociedade: as mais diversas “tribos”, com as mais distintas preferências e gostos, que compõem nosso povo. E talvez em razão das muitas mudanças culturais que a sociedade vem experimentando nas últimas décadas, o que inevitavelmente gera desconforto, ao menos inicialmente, nossas comunidades parecem ficar cada vez mais conservadoras, fechando-se cada vez mais para aqueles que não se enquadram nos padrões estabelecidos pela tradição.
Como podemos ver, a dificuldade de relacionamento que existia entre judeus e gentios perpetua-se entre nós, ainda que com nova roupagem. Perguntamos então se há solução para esse impasse. Creio que sim. Uma palavra deveria tornar-se atitude entre nós: “tolerância”. Tolerante é aquele que admite opiniões contrárias à sua, que aceita sentar-se ao lado de quem é e pensa diferente. No contexto da igreja, toleramos as diferenças, porque estamos unidos por uma mesma fé num mesmo Senhor, Jesus Cristo. Por causa desse Jesus, que foi radicalmente tolerante com o diferente, nós precisamos aprender a tolerar-nos mutuamente.
É possível discordar do diferente? Claro que sim. Às vezes, discordar será até mesmo necessário. Tolerância não significa acatar como corretas todas as formas de pensamento. Mas a discordância não justifica alienar pessoas do nosso convívio. Jesus nem sempre concordou com as pessoas com quem interagiu, mas nunca lemos que Jesus tivesse rejeitado alguma delas. Aquelas que precisavam mudar de vida foram encorajadas a isso justamente porque experimentaram um amoroso acolhimento.
4. Imagens para a prédica
Minha sugestão é que a prédica trabalhe o tema da tolerância. E a história da visita dos magos ao menino Jesus pode ser de grande ajuda para isso, pois os magos eram representantes de outros povos, outras raças, outras culturas e outras tradições. Deus guiou, por meio de sua estrela, esses homens diferentes até Belém para salientar que Jesus é Salvador de todos indistintamente.
A pregação poderia seguir a seguinte estrutura:
– Iniciar falando da intolerância em todas as suas formas, que tem estado presente também na igreja.
– Ler e comentar o texto de Efésios 3.1-12.
– Falar de Jesus e de sua postura tolerante, inclusive para conosco.
– Comentar o texto de Mateus 2.1-12, cuja leitura já terá sido feita durante a Liturgia da Palavra.
5. Subsídios litúrgicos
Oração da Ecumene Abraâmica (Hans Küng)
Deus oculto, eterno, insondável, misericordioso, fora de ti não há outro Deus.
És grande e digno de todo louvor;
teu poder e graça sustentam o universo.
Tu, que és Deus de fidelidade, verdadeiro e justo, escolheste Abraão, teu fiel servidor,
para ser o pai de muitas nações e falaste por meio dos profetas.
Bendito e abençoado seja o teu nome em todo o mundo. Seja feita a tua vontade onde quer que haja um povo.
Deus vivo e misericordioso, escuta a nossa prece: nossa culpa agora é grande.
Perdoa-nos, descendência de Abraão, por nossas guerras, nossas inimizades mútuas e maldades.
Resgata-nos do infortúnio e dá-nos a paz.
Tu que conduzes a história
e és guardião de nosso destino,
abençoa os líderes e governantes das nações, para que eles não cobicem o poder e a glória, mas ajam com responsabilidade
para o bem-estar e a paz da humanidade.
Guia nossas comunidades religiosas e suas lideranças para que não apenas proclamem a mensagem da paz, mas também a revelem em sua vida.
A todos nós, e a quantos não compartem a nossa fé, dá-nos tua graça, misericórdia e bondade,
e guia-nos, Deus dos vivos,
pela via reta que conduz à glória eterna. Amém.
Bibliografia
RADMACHER, Earl D. O Novo Comentário Bíblico – Novo Testamento. Rio de Janeiro: Central Gospel, 2009.
VAN DEN BORN, A. Dicionário Enciclopédico da Bíblia. Petrópolis: Vozes, 1977.
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