Prédica: Norberto da Cunha Garin e Edgar Zanini Timm
Leituras: Lucas 16.19-31 e 1 Timóteo 6.6-19
Autoria: Norberto da Cunha Garin e Edgar Zanini Timm
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 29 de setembro de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Abismos insensíveis!
1 Introdução
Os textos previstos para este domingo conduzem à reflexão sobre desigualdades sociais que acompanham a humanidade desde há muito. A narrativa de Lucas se endereça aos fariseus, que entendiam a riqueza e o bem-estar como sinais das bênçãos divinas. Remete ao contraste entre os muito ricos, que ignoravam Deus, e os muito pobres, que colocavam sua confiança no Senhor. A morte do mendigo e a do rico manifestam o contraste que havia, no contexto de Israel do primeiro século, entre aqueles que se serviam das benesses dos ocupantes do poder, no caso, os romanos, e aqueles que sofriam toda sorte de espoliação, no caso, os moradores de rua. Lucas aponta para a inversão do contraste que se realiza após a morte. Evidentemente, o destino do rico e o do pobre, após suas respectivas mortes, não dependiam das suas condições econômicas, mas da fé que tinham ou não na misericórdia divina. Acrescente-se a isso a afirmação de que há um abismo intransponível entre vivos e mortos. O texto encerra-se apontando para o fato de que os vivos podem estudar a lei e ouvir os profetas e, assim, mudarem seu modo de vida se o desejarem.
O segundo texto, da Carta a Timóteo, aponta para a insanidade da busca da riqueza a qualquer custo. Condena, de toda forma, quem sai em busca do entesouramento pensando encontrar o paraíso. O texto encerra com um convite aos que já são ricos para que compartilhem seus bens e busquem o bem maior em Cristo.
O texto da prédica foca a mensagem profética de Amós, numa das ameaças e punições anunciadas pelo Senhor contra o povo de Israel e suas famílias. Proprietário e pastor de ovelhas de Tecoa, cidadezinha nas proximidades de Jerusalém, ele recebe o chamado para profetizar em Israel. Apesar de ser natural de Judá, sua profecia acontece no reino do Norte, quando lá reinava Jeroboão II (783-743 a.C.). No reino do Sul, Judá, reinava Uzias (781-740 a.C.).
Nesse tempo, Israel experimentava grande prosperidade com ampliação de fronteiras e aumento da arrecadação de tributos. Entretanto, a riqueza não era dividida entre todos, ocasionando enormes desigualdades. O desenvolvimento permitiu que os comerciantes, os principais beneficiados pelas rotas comerciais que atravessavam a Palestina, se deleitassem no luxo a ponto de construírem várias casas (Am 3.15). Da mesma forma, multiplicavam-se os castelos, no interior dos quais eram tramadas decisões com violência e opressão (Am 3.10). A atuação de Amós acontece ao redor de 760 a.C. e inaugura uma nova era mais radical no profetismo. A visão do profeta contrastava com a avaliação divulgada pela corte e pela religião. A maioria da população vivia no campo e sobrevivia do plantar e colher, mas sofria o controle dos centros urbanos nos quais viviam os funcionários da corte, os sacerdotes e outros religiosos que se impunham sobre os camponeses através da coerção das armas e do fascínio da religião.
A convivência entre moradores do campo e das cidades costumava ser conflituosa. Havia elementos de exploração que justificavam os conflitos. Um desses era o aumento da taxa de tributo cobrada dos campesinos para fazer frente às despesas crescentes do aparelho estatal. Além disso, Jeroboão II queria participar do comércio internacional, cujas rotas atravessavam a planície de Jezreel e/ou circulavam pela via transjordaniana. Como a balança do comércio internacional era desfavorável, as taxas tendiam a ser mais elevadas para cobrir a defasagem e manter o luxo da corte e de seus asseclas. Por outro lado, o aumento das taxas também se justificava pela política expansionista do rei, que chegou a levar as fronteiras do reino muito próximas daquelas alcançadas no período de Davi.
2. Exegese
V. 1 – Ai dos que andam à vontade – é provável que se trate aqui de uma releitura judaica; faz parte das ameaças e punições, iniciadas em 3.1, vaticinadas contra os filhos de Israel e famílias. Tratava-se de pessoas que foram escolhidas por Deus, mas que se corromperam; permitiram que as riquezas adquiridas egoisticamente se transformassem em segurança para a situação pessoal; eles se consideravam privilegiados por causa da eleição divina, que eles consideravam como status superior às demais nações; a situação econômica da Samaria era privilegiada, mas isso não se traduzia no bem-estar das classes mais pobres, que se distanciavam ainda mais dos benefícios do desenvolvimento econômico (2.6-7); a mensagem do profeta é em outra direção, apontando para o fato de que a eleição de Israel era para que formasse uma comunidade fraterna, fundada na justiça; o profeta inicia as ameaças pelo reino do Sul, Judá, mas inclui imediatamente o reino do Norte, Samaria.
V. 4 – que dormis em camas de marfim – traça uma descrição da maneira como os ricos de Israel se deleitavam com os resultados da situação econômica favorável do seu tempo; tratava-se de incrustações de marfim no mobiliário, encontradas em escavações em Samaria; o marfim era uma mercadoria rara e cara, somente obtida em Israel através do mercado internacional; mesmo uma pequena peça de marfim era considerada um luxo extravagante; e vos espreguiçais sobre o vosso leito, e comeis – é a primeira vez, no Antigo Testamento, que aparece a menção à prática de se recostar à mesa para o banquete, retomada posteriormente no Novo Testamento em Marcos 14.3; o reclinar-se, na antiguidade, era uma posição de postar-se à mesa, permitida apenas para as pessoas livres; trata-se de uma postura assumida na celebração do pêssach nos rituais contemporâneos; e comeis os cordeiros do rebanho – remete à exploração efetivada através da cobrança das taxas aos camponeses que, em algumas vezes, pagavam através de animais do seu rebanho; esse versículo aponta para o distanciamento que aconteceu, nessa época, entre os mais ricos e os mais pobres (2.7).
V. 5 – que cantais à toa – remete ao tempo do expansionismo davídico; o rei Davi era tido como cantor e poeta por excelência (2Sm 23.1; 1Cr 23.5); esses cantos improvisados são característicos dos estados de embriaguez; de certa maneira, isso remete à alienação dessa classe que, mesmo diante de uma anunciada falência, bebe e canta celebrando como se estivesse no período áureo do Israel davídico.
V. 6 – que bebeis vinho em taças – além da referência à exploração do campo, remete ao comércio exterior simbolizado nas taças e nos finos olhos e especiarias; na verdade, a tradução mais aproximada seria “bebem vinhos em bacias”, o que salientava a quantidade consumida nesses banquetes; não vos afligis com a ruína de José – aponta para o egoísmo de uma classe alienada diante da degradação que acontece com o povo; o profeta prenunciava, a partir da exuberância dos ricos e da miserabilidade dos pobres, a ruína que haveria de se abater sobre o reino do Norte.
V. 7 – Portanto, agora, ireis em cativeiro entre os primeiros – referência ao exílio, retoma temas anteriores, como em 3.11, que se reporta a um inimigo que promoveria um cerco, a derrubada dos seus muros e o saque do castelo; como em 5.5, que menciona Gilgal que seria levada cativa e Betel que seria destruída; como em 5.27, quando o Senhor ameaça desterrar Israel para além de Damasco; como a prosperidade da Samaria era significativa, o profeta entende que seria um dos primeiros povos a ser exilado; entende-se que o profeta se refere ao exílio provocado pelos assírios de 721 a.C.
3. Meditação
Torna-se bastante difícil não traçar um paralelo entre a situação vivida pelo povo de Israel no período de Jeroboão II e o tempo atual. Se, por um lado, as nações não experimentam a prosperidade expansionista do século sétimo antes de Cristo, por outro, o abismo que separa ricos e pobres cresce assustadoramente. O esnobismo e o esbanjamento aparecem cotidianamente, seja nos meios de informação, seja nas novelas televisivas dos horários nobres de grandes redes de televisão. Enquanto uma classe diminuta de pessoas se deleita e desperdiça recursos num viver de extravagante luxo, a maioria da sociedade pena e amarga uma sobrevivência à custa de enormes sacrifícios.
Junte-se a isso a maneira de viver contemporânea que supervaloriza o personalismo, marcado pelo individualismo exacerbado. A classe abastada daquela época preocupava-se exclusivamente consigo mesma, com os luxos e com as extravagâncias que beiravam a inconsciência.
O profeta de agora sente-se no compromisso de denunciar esse abismo de recursos, em expansão entre os mais ricos e os mais pobres. Necessita apontar para a inconsciência de grupos corporativos, políticos e lideranças das nações que mergulham na defesa de interesses particulares em detrimento das necessidades fundamentais do povo. Precisa denunciar a embriaguez de poder de certas categorias públicas e empresariais que, virando as costas para o povo, defendem, através de leis e de portarias, privilégios escusos, danosos à vida cotidiana das classes mais pobres. Deve apontar para a iniquidade de legisladores e governantes, que se empenham em artimanhas para aumentar a arrecadação tributária, impondo taxas e impostos iguais para classes sociais diferentes. Necessita reportar a perversidade de determinados setores da economia que se beneficiam cruelmente do empobrecimento do povo impondo juros e taxas elevadíssimas, amealhando lucros exorbitantes, ampliando ainda mais a miséria de populações endividadas.
4. Imagens para a prédica
Reproduzir, através de um banner, ou no telão do templo, a foto de uma situação de flagrante disparidade socioeconômica, como, por exemplo, um condomínio de luxo erguido ao lado de uma vila/favela (
Bibliografia
ASURMENDI, J. Amós e Oséias. São Paulo: Paulinas, 1992.
CASTRO, C. P. O ministério dos profetas no Antigo Testamento. São Paulo: Metodista, 1993.
GREUEL, Sigolf. 19º Domingo após Pentecostes: Amós 6.1a,4-7. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2012. v. 37, p. 286-290.
SCHWANTES, M. Amós: meditações e estudos. São Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 1987.
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