Prédica: 2 Coríntios 5.14-21
Autor: Lindolfo Weingärtner
Data Litúrgica: Sexta-Feira Santa
Proclamar Libertação - Volume: I
Tema: Sexta-Feira Santa
I - Exegese
14 Pois o amor de Cristo toma conta de nós — os que chegamos a conclusão de que um morreu por todos e que, por conseguinte, todos morreram.
15 E por todos morreu para que os que vivem, não ma is vivam para si próprios, mas para aquele que em seu favor morreu e foi ressuscitado.
16 Por conseguinte, daqui em diante já não conhecemos ninguém conforme os critérios da carne. Mesmo que tenhamos conhecido a Cristo conforme os critérios da carne, agora não mais o conhecemos assim.
17 Deste modo, se alguém existir em Cristo — tornou- se nova criatura (criação). O antigo passou - nova realidade se fez.
18 Mas tudo (é obra) de Deus, que nos reconciliou consigo em Cristo e que nos deu o ministério (a diaconia) da reconciliação.
19 Pois Deus estava em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo, não atribuindo aos homens as suas transgressões e erguendo entre nós a palavra da reconciliação.
20 Assim servimos de embaixadores por (hyper - em lugar de, em nome de) Cristo, sendo que Deus conclama por nós. Por Cristo, pois, rogamos: Reconciliai-vos com Deus!
21 Aquele que não conhecia pecado - (Deus) o fez pecado por nós, para que nele nos tornemos justiça de Deus.
A perícope
O recorte bem poderia iniciar com o vers. 11, mas entende-se o intuito de delimitar o texto ao máximo possível para facilitar o acesso ao seu conteúdo central.
O trecho não apresenta variantes de peso teológico, exceção feita, eventualmente, do versículo 17 - onde os manuscritos ocidentais, evidentemente numa interpolação secundária, acrescentam ta panta - tudo se tornou novo. Este ta panta poderia ser entendido como tendo dimensão cosmológica resp. ontológica neutra, enquanto Paulo tem em mente a nova realidade na qual passou a viver a pessoa que está em Cristo.
Observações exegéticas
14: O genitivo de Cristo deverá ser entendido em primeira linha como genitivo subjetivo (o amor de Cristo para nós) - base para o nosso amor a Cristo. Este “ser constrangido, ser encampado pelo amor de Cristo, identifica o apóstolo, qualifica o seu serviço - inclusive o seu esforço de defender o seu ministério perante aqueles que se gloriam de sua riqueza espiritual, e nos olhos dos quais ele parece fraco e desprezível. Em contraposição aos seus adversários, que se gloriam na aparência (v. 12), Paulo não tem nada pelo qual possa gloriar-se. Se antes tinha - agora não tem mais, pois ele sabe que morreu com Cristo. Agora é um encampado, um constrangido, que se desfez do amor-próprio pelo amor de Cristo.
A afirmação de que Cristo morreu por todos e que, por conseguinte, todos morreram, tem sua analogia em Romanos 5,12-21, onde Cristo, o representante da nova humanidade, é contraposto a Adão, representante da antiga (corporative personality).
15: Não ha transição nem continuidade natural entre a vida antiga e a existência nova do homem. A morte de Cristo implica em nossa própria morte. Esta é a antropologia radical do evangelho. Em verdade, a morte do Cristo implica na morte de todos os homens, pois tudo que os homens são e representam por si, acaba de ser condenado e desfeito pela morte de Cristo. Mas os que chegaram a ser impelidos pelo amor de Cristo aceitam este fato de bom grado e com gratidão. Os que ainda não se deixaram encampar por Cristo, ainda se agarram à existência antiga, tentando viver para si e esquecendo-se de que aquilo, que procuram segurar, já não é vida, mas sim mor te. A vida verdadeira deixou de girar em redor da existência antiga, mas tem seu centro em Cristo, que morreu e ressuscitou por nós. Morte e ressurreição aqui se acham inseparavelmente entrelaçadas, como em todos os escritos de Paulo, mesmo onde não o diz expressis verbis.
16: Já que todos morreram, Paulo pode ignorar os valores da carne, que para ele já não são valores. Ele não conhece mais ninguém conforme os critérios da carne - nem a si próprio. De igual forma, não tenta moldar a Cristo segundo os critérios da carne - mesmo que porventura o tenha feito antes (no tempo antes de sua conversão?). Deve ser excluído totalmente o evidente deslize exegético (Emil Brunner - Der Mittler), que identifica Jesus de Nazaré, o Cristo histórico, com um pretenso Cristo segundo a carne. Um Cristo segundo a carne não existe. Está fora de cogitação que Paulo queira esvaziar a pessoa histórica de Jesus de Nazaré. O segundo a carne é adjunto adverbial de conhecer - não é adjetivo de Cristo.
17: O conteúdo da pregação de Paulo e a nova vida em Cristo. Por isto mesmo ele tem de afirmar a morte do homem antigo - para que não se qualifique de vida o que já é superado e condenado. A nossa pregação jamais poderá fugir a essa premissa fundamental.
18: A iniciativa de Deus na obra da reconciliação é de importância básica. Os pagãos reconciliam, eles próprios, os seus deuses por meio de suas ofertas (pacificare deos). Deus age em Cristo como se o homem fosse o ofendido - pedindo, convidando, reconciliando mesmo o que não o procurara. A palavra grega correspondente a reconciliar (katallagein) contém a raiz allos - diferente. Reconciliar tem, pois, o sentido de criar uma situação diferente - de fazer a paz - que antes não existia. É como a aliança estabelecida com Israel. Ela é criada por Deus; não é produto de um convênio entre dois parceiros.
19: Deus não deixou Cristo pagar os pecados do mundo como um inocente terceiro. Ele estava - subsistia - em Cristo - totalmente identificado com a obra da reconciliação. Esta não é o resultado de uma política de concessões mútuas, que por fim devem levar ao estabelecimento de um acordo (Cristo não é um super - Kissinger, que advogue a reconciliação a passos pequenos...). Deus reconciliou os homens - de uma vez por todas. Neste fato o homem não pode mexer mais. É a base de qualquer palavra de reconciliação - também a que proclamamos hoje.
20: O português não permite a tradução congenial de presbeuomen (servir de embaixador). Convém lembrar que é uma forma verbal que não permite pensar em embaixadores institucionalizados que falem em nome ou em lugar de um Cristo imaginado ausente. O termo parakalein tem o duplo sentido de admoestar e de pedir. Neste pedir de Deus, sua kenosis chega a culminar: O Deus onipotente pede a sua criatura, que o ofendeu, que com ele se reconcilie. No serviço de embaixador, que nós prestamos, Deus permanece com a iniciativa. Neste serviço deveremos ter a certeza absoluta de que é Deus que está falando (Lutero: Haec Deus dixit!). Nosso pedir se enquadra no pedir de Deus, insofismavelmente identificado com o morrer humilde de seu Filho. Não nos resta alternativa, a não ser pedirmos dentro da mesma humildade de Deus, O pregador, que pede junto à cruz de Cristo, perderá o apetite por truques retóricos ou psicológicos para motivar a fé de seus ouvintes. E não terá necessidade deles.
21: Que Deus tenha feito o seu Cristo pecado por nós, representa a afirmação cristológica mais afoita que se encontra no Novo Testamento. É mais radical do que o testemunho do Batista - do Cordeiro de Deus que carrega os pecados do mundo. Talvez Paulo tenha formulado este conceito radical em vista de uma teologia da glória existente em Corinto, na qual Cristo era visto como theios aner - o homem divino, o espírito elucidado, o taumaturgo bem-aventurado, de cuja vida os espirituais participavam como por analogia natural, enlevados pela mesma realidade pneumática. Com sua formulação, Paulo bota água na fervura do entusiasmo. Nossa justiça não é nossa. Ela não cresceu qual centelha incentivada por uma chama ainda mais clara. Nós fomos feitos justiça, porque Cristo foi feito pecado! Esta bendita troca (Lutero) significa quebra de continuidade - exclui qualquer possibilidade de autoglorificação - mas justamente por isto representa a base para a reconciliação do pecador.
II - Meditação
O texto, o pregador e os ouvintes
Fazendo uso de uma formulação de Bonhoeffer, que ele quer ver aplicada na escolha de textos para prédicas (Finkenwalder Homiletik), poderemos afirmar que nosso texto é um barco carregado até as bordas, que vem, a navegar - é, portanto, um texto para pregação, por excelência. O barco está tão carregado que o pregador deverá ter cuidado para não fazê-lo soçobrar nas águas profundas da cristologia sistemática (com seus muitos recifes submersos), antes que o consiga levar ao porto. Seu único propósito deverá ser o de fazer o barco tocar a terra - conforme os dizeres do profundo hino medieval - e descarregar o seu conteúdo para os ouvintes de hoje e de agora.
Por ser um texto para a Sexta-Feira Santa, o pregador deverá levar em conta que entre seus ouvintes haverá muitos que não frequentam a igreja em outras oportunidades. A tradição luterana - em continuidade histórica com a católica, faz com que neste dia também os membros que vivem na periferia da comunidade venham à igreja e participem da Santa Ceia - seja por um sentimento vago de que neste dia lhes é permitido participar de um evento central (perdão de pecados anual - uma ideia de reconciliação, mesmo que deturpada), ou seja por pura tradição, talvez com forte componente mágico. - Levar o barco a esta praia - rasa ou pedregosa - não será tarefa fácil. Muitos dos ouvintes já terão o seu Cristo - adaptado a suas condições e preferências. Poucos estarão dispostos a morrer, como pede o texto. Só por um milagre - que não terá características retóricas - as praias serão livradas do entulho acumulado pelas ondas de um ambiente religioso sincrético, permitindo descarregar o barco e levar a carga preciosa à terra. Mas – a situação de Paulo não foi outra. Também ele teve de dar o recado a cristãos que haviam moldado uma imagem de Cristo (e em consequência disto, uma doutrina de salvação e de reconciliação) deturpada - que não só precisava de correção, mas que necessitava ser desalojada.
O escopo do texto? Não nos preocupemos com um escopo formal - um filtrado abstrato, que sintetize este trecho tão saturado de eventos concretos e de linguagem não menos concreta.
A queda do texto está propensa a levar o pregador a identificar-se com a exclamação de arauto do vers. 20:
Por Cristo, pois, rogamos: Reconciliai-vos com Deus. Este versículo serve bem como frase querigmática, na qual se alinha a prédica. Mas os vasos comunicantes existentes para com os demais versículos centrais impedirão uma prédica simplesmente coercitiva (Convertei-vos! Entrai agora! A porta está aberta!). O convite evangelístico permeará o todo da prédica. Mas, para evitar uma predica monótona, sem contornos específicos, recomendamos proceder como Paulo, isto é, usar a forma de homilia - com alguma liberdade quanto à colocação das ênfases e da sequência (colocaríamos o vers. 21 antes do vers. 20, de modo que a prédica termine e culmine com este).
Eventualmente o vers. 16 (conhecer Cristo segundo a carne) poderá ser preterido, ou tocado só à margem, para não sobrecarregar os ouvintes. Mas haverá muitas maneiras de abordagem.
Aproveitemos também a oportunidade que nos dá o vers. 15 de sublinhar a ligação entre a morte e a ressurreição de Cristo. O fato de que na Páscoa nossas igrejas costumam ser frequentadas só por uma fração dos membros que enchem as suas bancadas na Quinta- e na Sexta-feira Santas, deveria deixar-nos pensativos. Apesar dos argumentos válidos de Kaesemann - no combate a uma teologia de ressurreição que se esquece da cruz - também existe a tentação inversa - de pregarmos a morte de Cristo, excluindo a sua ressurreição. Os ouvintes devem notar que a Sexta-feira Santa é o início da Páscoa - não só no calendário eclesiástico, mas também na existência cristã.
A caminho da prédica
Um homem morre - entre dores e suplícios. Abandonado pelas pessoas que ama, condenado pelos representantes do poder e da religião - morre morte solitária, pregado numa cruz. Cruz, que não representava nenhum símbolo santo, mas que era o instrumento de tortura comum para castigar rebeldes e criminosos. - Alguma novidade? Aparentemente, não. Milhares já haviam morrido na cruz, antes de Jesus. Milhares morreram morte violenta e injusta depois dele. É a velha história, que se prolonga até os nossos dias: Aquele animal, chamado homem, odeia, tortura, mata. Por quê? Sabe ele, por quê? Para fazer justiça? Dentro dele mesmo há justiça? Ou ele simplesmente põe para fora o que há dentro dele: ódio a si mesmo - ódio de Caim que odeia tudo: a Deus, a si mesmo e ao seu irmão Abel... Homem que vive na revolta, na inimizade, na inquietude interna - assim como o peixe vive dentro da água? Mesmo que ele não se dê conta disso?
A mensagem de hoje é que na cruz de Cristo houve novidade - e há novidade. A bem dizer a única novidade real neste velho mundo.
1. Cristo não morreu como simples vítima, apagada pelo ódio. Ele morreu morte ativa - morreu por amor. Não morreu para si - por um alvo, um ideal seu. Morreu pelos homens. E aqui a novidade chega a ficar quente para ti e para mim: Ele morreu por ti e por mim - morreu por seu irmão Caim. Pelo rebelde, que virara as costas para Deus, em revolta e desprezo. E a novidade é que os que se deixam vencer por este amor, aceitando a morte de Cristo por eles, recebem a graça de poderem e de quererem - morrer com Cristo - junto com sua rebelião, seu desespero, seu medo, seu ódio, sua injustiça. O velho Adão não consegue morrer por si. Ele o consegue quando experimenta a maior graça de Deus - que em Cristo lhe é dado o golpe de misericórdia. Aceitamos a graça de podermos morrer com Cristo - tu e eu?
2. Mas a cruz de Cristo não é só morte. É vida. Deus é o Deus da vida e o Deus dos que vivem. Com a Sexta-feira Santa começa a Páscoa. Nova vida brota do sangue de Cristo - vida libertada da revolta do homem antigo - do homem que quis viver para si e que achou que isso era vida: O homem que aceita a morte de Cristo - que morre com ele - chega a viver de verdade. A experiência do amor de Cristo é tão poderosa que não nos deixa outra alternativa - a não ser de vivermos para ele. Sincronizados com seu amor.
3. Paulo chama esta vida VIDA EM CRISTO. Como antes o homem vivera em si mesmo (ensimesmado), preso na prisão do EU, na qual ele mesmo se escondera e se entrincheirara para não precisar olhar a face de Deus, para não precisar enfrentar a verdade sobre si mesmo e a sus vida falhada - ele agora passa a viver em uma nova realidade: EM CRISTO. Lembramos: Como o peixe vive na água - seu elemento de vida. Ele precisa de água para poder sobreviver. E ele não quer outra coisa. O homem se entrega a esta nova realidade EM CRISTO, na qual os demônios do desespero, do ódio, do medo, da solidão não governam mais. A antiga realidade passou! ... Passou mesmo? Mas eu ainda a sinto - ela me sobressalta, me tenta... Sim - fora de Cristo ela ainda existe, e todos nós a experimentamos. Mas EM CRISTO ela foi superada. Em Cristo o homem pode viver para Cristo - e isto significa: no amor de Cristo - para seus irmãos.
4. Pois Deus estava - e está - em Cristo, e com o seu poder e com o seu amor desfaz a antiga realidade escravizadora. O milagre: O mundo se tinha levantado em revolta contra Deus - e Deus não espera, sentado em seu trono de justiça, até que o mundo venha para ele - para pedir paz. Ele vai ao seu encontro para reconciliar o homem rebelde. Isso é mais do que oferecer paz. É dar paz. Deus vai até o ponto da maior perdição do homem - onde o ódio parece triunfar. E no momento em que toda a realidade humana parecia provar: Deus voltou as costas ao mundo - ele abandonou o homem definitivamente, entregando-o a seu destino merecido - neste momento Deus diz: Eu estou aqui, contigo. Quero reconciliar-me contigo. Vê que eu falo sério - vê o preço que pago: Meu Filho, que morre em teu lugar. Não segures mais a tua vida antiga. Solta as barras de tua prisão. Solta a ti mesmo. Segura a minha mão. São os braços estendidos de Cristo. São meus braços estendidos para receber a ti, o rebelde. Vê - eu fui ao teu lugar - identifiquei-me contigo em teu maior desespero. Tomei sobre mim o que é teu. Tiro de ti o teu fardo todo - para dar-te o que é meu: minha justiça, minha paz, meu amor. Recebe-o para ti e passa-o adiante. Vê que eu te peço. Nas palavras de meus mensageiros eu te solicito: Reconcilia-te comigo.
5. Uma canção de cristãos negros, dos Estados Unidos:
Estavas presente, quando o pregaram a cruz?
Estavas presente, quando lhe trespassaram as mãos?
Estavas presente, quando ele gritou: Meu Deus, por
que me abandonaste ?
As vezes acontece que eu estou presente -
e então tremo, tremo, tremo...
A morte de Cristo é realidade para tremer mesmo. Porque nela se revelam o juízo e a graça de Deus. E na presença de Deus é muito natural que tremamos. - Estás presente onde o Cristo morre, onde o juízo de Deus se manifesta? O teu coração treme? Tua consciência te acusa? Tua vida egocêntrica, tua falta de amor te condenam? Bem-aventurado és, se assim for e se agora não te esconderes de Deus. Pois ele está voltado para ti, não levando em conta a tua culpa, não exigindo prestação de contas de tua vida antiga - só levando em conta o seu amor - que não quer destruir, mas salvar. - E escuta: Deus pede. Ele pede a ti, o culpado, para que te reconcilies com ele. De uma vez para sempre. E eu estou aqui para dar-te o recado. Só para isso. Estou aqui como embaixador de Deus para em humildade oferecer a ti o que foi oferecido também a mim. Reconciliação incondicional com Deus, meu e teu Pai e Criador. - E não só eu recebi a tarefa. Todos os cristãos a receberam. E tudo o que falarem, tudo o que fizerem, deverá e poderá traduzir aquele pedido de Deus: Reconciliai-vos comigo. A reconciliação entre os homens? Entre ti e teu esposo ou tua esposa, teu vizinho, teu colega de trabalho? Esta reconciliação está feita, consumada, no momento em que aceitares a reconciliação que Deus te oferece. Porque ela é que permite que vivamos uma vida em comunhão onde o seu amor é a fonte de nossas ações - de nossa nova existência.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia