Prédica: 2 Coríntios 5. (14-18) 19-21
Leituras: Isaías 50.4-7 e Mateus 27.33-50
Autoria: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: Sexta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 14/04/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
A diaconia da reconciliação e a justiça de Deus
1. Introdução
O texto previsto para a pregação nesta data central da fé cristã e da liturgia da igreja – Sexta-Feira da Paixão – é da Segunda Carta de Paulo aos Coríntios 5.(14-18)19-21. Trata-se de um texto central da teologia de Paulo e, por isso mesmo, fundamental para a teologia cristã, que serve de base à mensagem que a comunidade de Cristo é chamada a anunciar ao mundo, às pessoas de todos os tempos e lugares. Por isso mesmo é um desafio encontrar a maneira apropriada de relacionar esse texto de Paulo com a narrativa da crucificação de Jesus, o justo, o Filho de Deus, segundo Mateus.
Lendo e relendo o texto muitas vezes, fiquei convencido de que é necessário ler todo o conjunto de 5.14-21. Só assim se poderá anunciar sua mensagem com fidelidade. Minha impressão é que a perícope é tão densa, que mereceria várias pregações, tão rico se apresenta seu conteúdo, como quem conhece Paulo já se acostumou a considerar. Na impossibilidade de estender a pregação por algumas semanas, inevitavelmente a pregadora ou o pregador deverão fazer escolhas, ênfases que, em sua avaliação, devem ser consideradas em vista da situação da comunidade de fé e das pessoas que nela congregam e a partir da qual elas procuram viver sua fé nos dias de hoje.
Paulo expõe um argumento teológico da mais alta importância e que diz respeito à vida ou à morte das pessoas, de todas as pessoas. Aqui Paulo elabora uma reflexão que tem a pretensão de explicar a caducidade deste mundo mau e injusto. Sem Cristo, não temos como nos libertar da morte, que nos persegue diariamente e contra a qual todas as nossas ações são fadadas ao fracasso. Há algum caminho que nos conduza a uma “nova vida”? Se este mundo caducou, há chance de uma “nova criação”? O velho Saulo pensava que sim, mas não conhecia Cristo, o Messias. Só depois de ser abalado pelo amor de Cristo, julgou tudo o que sabia como lixo, refugo, sem valor, “excremento” (Fp 3.8). O encontro com o Cristo de Deus mudou radicalmente sua visão do mundo e da vida. A experiência que ele denomina “o amor de Cristo” colocou toda a sua existência, sua compreensão de Deus e sua fé sob uma nova luz. É isso que está em questão aqui. Digo de forma polêmica: não se trata de “religião”, mas de “fé”, quer dizer, da confiança que liberta para uma vida de amor, misericórdia e justiça. E essa luz não brilha sem mais: ela tem preço, implica o confronto de forças terríveis que levam à morte ou à vida. E a vida a que Paulo se refere não é apenas uma experiência intimista e descontextualizada. Ela tem a ver com as outras pessoas, tem a ver com o mundo, para recorrer a um termo central no texto.
2. Exegese
Para a finalidade deste auxílio homilético, precisamos ser concisos e escolher algumas informações que possam ser úteis para a compreensão do texto e ajudem a realçar o desafio que ele guarda para a vida de fé da comunidade. Assim vamos destacar o seguinte:
• A Segunda Carta de Paulo aos Coríntios suscitou muita discussão porque ela reúne fragmentos de pelo menos três cartas de Paulo, posteriormente reunidas e colocadas num esquema mais ou menos coerente. É bem fácil conferir essa reconstrução, que em nada compromete seu rico conteúdo. Uma estrutura possível seria a seguinte: 1.1-11: introdução; 1.12-2.11: relato de viagem; 2.14-7.4: 1ª apologia de Paulo (defesa de seu ministério contra acusadores judaizantes); 7.5-16: continuação do relato de viagem; 8.1-9.15: duas vezes o tema é a coleta para a comunidade de Jerusalém; 10.1-12.13: 2ª apologia de Paulo; 12.14-13.1: parênese final. 13.12s: pós-escrito.
• Por essa estrutura percebe-se que Paulo está envolto num debate muito forte com a comunidade de Corinto, possivelmente influenciada, na ausência do apóstolo, por outros “apóstolos” que questionam a fraqueza de Paulo, sua inconsistência, chegando a espalhar calúnias sobre ele. Esse embate de diferentes práticas evangelizadoras dá origem a uma carta (possivelmente perdida), chamada de “carta das lágrimas” (2.4). Paulo, porém, não recua. Ele desafia seus adversários e defende a justeza de seu ministério. A linguagem lembra a Primeira Carta aos Coríntios, mas tem diferenças que mostram sua capacidade de reelaborar sua mensagem em vista de problemas concretos e desafios novos. Ele questiona os “superapóstolos” (11.5; 12.11), polêmica que fica mais evidente nos capítulos 10-13.
• Qual o critério para Paulo? Sua defesa tem como fundamento a cruz de Cristo. É a partir desse evento que se pode estabelecer o critério para avaliar o evangelho anunciado. O evangelho de Deus foi claramente anunciado na Primeira Carta aos Coríntios (1.18ss). Se ele parece encoberto, se Paulo parece não ter força e não apresenta “cartas de recomendação”, isso é assim para os que se per- dem (4.3). O apóstolo reafirma: “Nós não pregamos a nós mesmos, mas a Cristo Jesus como Senhor e a nós mesmos como vossos servos por amor de Jesus” (4.4). Aqui temos uma informação importante: Paulo geralmente atuava em equipe, tinha muitos colaboradores e colaboradoras. Estudiosos dos seus escritos contam mais de 60 pessoas com quem Paulo trabalhou no anúncio do evangelho de Cristo e na formação de comunidades na Ásia Menor e na Europa. Destacar esse tipo de ministério compartilhado hoje é muito importante para reforçar a necessidade de trabalharmos de forma mais colaborativa e descentralizada, evitar personalismos e aproveitar melhor a diversidade de carismas e qualificações que sempre encontramos na comunidade de fé.
• Paulo reage com firmeza, a tal ponto que o acusam de ser duro nas cartas quando está longe, mas fraco quando presente em pessoa (10.10). Mas também é suficientemente humilde para dizer que a comunidade é sua alegria, ela é sua carta de recomendação, principalmente quando as diferenças e mal-entendidos são explicados e superados (2.1ss). Além disso, ele escreve: “o tesouro nós o temos em vasos de barro”, e isso é assim “para que a excelência do poder seja de Deus e não de nós”. Em toda a carta e, de certo modo, nas comunidades cristãs dessa segunda parte do século 1, a questão do “poder” gradativamente vai se tornando central na formação da igreja de Deus, a ekklesia tou Theou. Paulo não se esquivou do tema, mas o colocou sob a luz da cruz e do amor de Cristo. Se existe algum poder no ministério, é o poder de Deus para que as pessoas sejam salvas. Não há qualquer possibilidade de um poder autocrático que poderia tornar-se fonte de privilégios eclesiásticos. No entanto, foi o que gradativamente aconteceu e se fortaleceu, a ponto de já no segundo século iniciar a separação entre ministério da igreja e laicato ou povo de Deus.
• Nem mesmo a experiência carismática que Paulo conheceu muito bem (12.1ss) serve para justificar sua autoridade. É nessa carta que Paulo estabelece numa frase genial o que significa exercer o ministério cristão: ao ser acossado por uma doença que o debilita, sem, porém, impedi-lo de viajar e anunciar o evangelho, e mesmo quando perseguido, preso, padecendo sofrimentos de toda forma, ele descobre: “A minha graça te basta, diz Jesus, pois o poder se aperfeiçoa na fraqueza”. É esse apóstolo que, num texto antológico, apresenta o ministério da reconciliação, seu fundamento e tarefa.
Quanto ao texto da pregação, gostaria de destacar o seguinte:
• Sugiro a quem pregar sobre esse texto ler diversas traduções que tenha em casa. Faça uma comparação. Qual das traduções você sente pulsar mais forte? Use essa tradução para preparar sua meditação. É que Paulo escrevia com a mente e o coração. Era visceral, e isso transparece no texto, mesmo traduzido para o português. A melhor maneira de compreender a mensagem paulina é ir à veia do apóstolo, é chegar ao espírito que o fez formular frases que chegam até nós de forma novidadeira ou desgastada. A nós compete escolher qual o tom que vamos dar ao conhecimento de que ele fala e pelo qual aposta a vida.
• Qual o tema da perícope? Sem dúvida é a dignidade do ministério que nos foi dado por Deus. Destaco aqui que a palavra “ministério” vem do latim ministerium, que traduz o grego diakonia. Pois é, nós transformamos essa palavra num ministério ao lado de outro. Precisamos dizer ao nosso povo que pastor ou pastora é, sim, diácono ou diácona da reconciliação, para ficarmos com Paulo (v. 18). Isso quer dizer que somos servidores de Deus para a reconciliação das pessoas com Deus. Esse é o nosso serviço. Claro que nos dedicamos a muitas outras tarefas na comunidade, mas essa é a principal.
• O ponto de partida não é nossa formação teológica ou intelectual, ainda que essas ajudem muito. É antes “o amor de Cristo” (v. 14). Somos diáconos da reconciliação por causa do amor de Cristo. É ele que nos constrange, impulsiona, incentiva. É o amor que nos habilita em última instância. Temos de voltar sempre e cada vez a esse amor primeiro. E o povo percebe isso, não tem como nos iludir a esse respeito. Creio que, em meio às brigas comunitárias e debates ferrenhos, também os coríntios perceberam isso em Paulo.
• Paulo então retoma um argumento conhecido e desdobra-o aqui. Cristo morreu na cruz, e a comunidade dos discípulos e discípulas entendeu: um morreu por todos, logo todos morreram com ele (v. 14). Esse argumento volta ao longo da perícope. Morte vicária. Alguns comentários enfatizam que Deus cobrou o preço do pecado entregando seu Filho à morte por nós. Penso que podemos interpretar diferentemente. Jesus tornou-se Cristo na morte injusta, e Deus o fez Senhor e Cristo ressuscitando-o da morte injusta. Ele fez de um caminho torto uma estrada nova, estrada da vida (cf. Gn 50.20). E nessa ação redentora ele nos tornou justos, aceitáveis, não levando em conta nossas transgressões (v. 19), nosso pecado, que nos faz morrer no absurdo.
• Já vou incluindo a nós na história de Cristo. Paulo fá-lo igualmente. Não se trata apenas de um evento histórico do passado, embora ele seja datado sim. É que no drama de Jesus e do povo de Israel fomos incluídos numa obra misteriosa que nos permitiu redescobrir a “vida”, o sentido da vida. Cristo morreu por todos, para que as pessoas que vivem não vivam mais para si mesmas, mas para quem por elas morreu e ressuscitou (v. 15). É essa a troca feliz de que falou Lutero e que nos permitiu conhecer o Cristo/Messias escondido naquele Jesus justo e crucificado. Conhecer é verbo da maior importância para o povo hebreu. Quem ama uma mulher conhece-a profundamente, corpo, alma e espírito. Também conhecer Cristo é mais do que saber de sua história e da bondade e mansidão que o caracterizou. É estabelecer relação com ele, profunda, de coração, de vida verdadeira, de confiança mútua e entrega.
• Tal conhecimento é por demais maravilhoso. É conhecimento que ultrapassa a erudição, é a experiência de tornar-se “nova criatura” (v. 17). A experiên- cia da fé em Cristo é ser jogado na “nova criação”. O Deus criador oferece nova chance de vida, de modo que vencemos o egoísmo e a mesquinhez. Não vivemos mais para nós mesmos, mas para Cristo e – em Cristo – para as demais pessoas. O evangelho é força excêntrica, ele nos tira de nós mesmos. “Já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. E esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no (!) Filho de Deus, que me amou [...]” (Gl 2.20). As velhas coisas passaram. Tudo é novo, faz-se novo, rejuvenesce! Eis o evangelho, notícia boa e redentora. Nova de grande alegria, como canta Lucas.
• Mais ainda. Tudo que diz respeito a essa troca feliz vem de Deus (v. 18). Isso Deus realizou em Cristo, por meio de Cristo, seu Filho amado. Mas Deus não olhou apenas para o nosso grupo, para gente piedosa. Sua obra vale para o mundo. É o mundo que Deus quis reconciliar consigo (Jo 3.16). Nada menos do que isso. A reconciliação é sua obra exclusiva, que nos livra do peso das transgressões, das contradições, das traições que praticamos dia a dia. Essa obra libertadora faz de nós nova criatura, a quem Deus, então, confia uma tarefa também grandiosa: a palavra da reconciliação. A Nova Tradução na Linguagem de Hoje (SBB, 2000) traduz reconciliação por tornar-nos de inimigos em amigos de Deus. Deus não quer inimigos, mas amigos. E por isso vem a nós. Outros textos do NT também usam essa palavra (Jo 15.13; Tg 1.8; Jesus em algumas parábolas; Ef 2.16 fala que a inimizade foi destruída na cruz). Ela pode servir como sinônimo para falarmos da diaconia da reconciliação: a tarefa de recriar laços de verdadeira e confiada amizade com Deus. Essa é a tarefa. Mas ela não para por aí. A nova relação com Deus abre nossos olhos, ouvidos, mãos e coração.
• Paulo tira as consequências dessa ação de Deus em nosso favor. Ele diz que dessa forma Deus nos fez seus embaixadores. Será que algum dia já nos demos conta da força dessa palavra? Embaixador no sistema político é cargo de alto escalão. Poucas pessoas chegam lá. Na caminhada da fé cristã, porém, este é o chamamento: Deus quer fazer de cada pessoa cristã embaixadora da reconciliação, de modo que ela se torne mediadora para outras pessoas da nova relação com Deus. Por isso Paulo pede, implora, exorta seus amigos e amigas da comunidade de Corinto: “reconciliem-se com Deus”. Essa é a resposta. Uma vez que Deus veio a nós, também nós nos achegamos a ele como gente renovada e reconciliada (v. 20). E então saímos pelo mundo como gente que reconcilia, que cria novas amizades para Deus. Ênio R. Mueller escreveu que, ao nos fazer seus embaixadores em nossa realidade terrena, é como se ele mesmo estivesse agindo por nosso intermédio. Ao nos perdoar o pecado, reconciliou-nos com ele em Cristo, revestindo-nos com sua justiça. Por isso mesmo a cruz se torna parte de nós, como também a ressurreição.
• Por fim, a frase mais carregada teologicamente: Cristo foi feito pecado por nós. É daí que vem o pro nobis da Reforma ou a troca feliz de Lutero. Houve uma inversão de papéis. Cristo assumiu nosso papel de gente pecadora, separada de Deus, ele que foi justo, para que nós nos voltássemos a Deus, fôssemos novamente gente de Deus. Mas o que significa isso? Vida piedosa, separada do mundo, avessa às responsabilidades que nossa vida terrena nos coloca diariamente? De jeito nenhum! Quem assim interpreta Paulo não o entendeu. Paulo sabe muito bem que o amor só se completa com a justiça transformadora que muda este mundo ao nos tornar novas criaturas. Por isso escreve: Deus fez de Cristo o nosso pecado para que nós fôssemos feitos justiça de Deus. Nada menos do que isso. É algo radical. Se não levarmos isso em conta, reduziremos o “amor de Cristo” a um exercício espiritual sem consequências. Ora, o amor de Cristo por nós teve um alto preço: a cruz. Seus seguidores e seguidoras não podem esperar menos do que isso se, de fato, cremos que fomos tornados justos em Cristo, se cremos que somos – hoje e aqui neste país injusto – justiça de Deus. Elsa Tamez fez a crítica de interpretações que reduziram a compreensão da justiça de Deus a uma experiência fora da história. Ela faz referência ao documento Kairós da África do Sul, no qual teólogos e teólogas daquele país afirmaram que seria “totalmente anticristão convidar à reconciliação e à paz antes de terem sido removidas as injustiças”. Não podemos separar a justiça de Deus da justiça entre os seres humanos, ainda que não sejam a mesma coisa. Distinguir, sim; separar, jamais.
3. Auxílios litúrgicos
O texto começa com o amor de Cristo e termina afirmando que Deus nos fez – em Cristo – sua justiça. Um símbolo poderia ser o arco-íris. Numa ponta temos o amor de Cristo (e não o pote de ouro, como na lenda popular) e na outra a justiça de Deus. No meio, a diaconia da reconciliação, da nova amizade com Deus. Na pregação, poderíamos desenvolver a troca feliz, aproveitando esse arco em cujo centro está a obra amorosa de Cristo. Deus fê-lo pecado por nós para que nós fôssemos feitos justiça de Deus. Por isso lutamos pela justiça neste mundo como um exemplo da justiça que nos salva, redime, liberta, numa palavra, que faz de nós “novas criaturas”.
3. 1 – Sobre as leituras
Isaías 50.4-7: O profeta descreve aquele que será conhecido como servo de Javé. Ele fala com uma língua que diz boa palavra, evangelho, às pessoas cansadas. Ele, de fato, ouve seu Deus, atende sua palavra libertadora e não a rejeita. Ainda que isso o coloque em perigo e diante de situação vergonhosa, ele não vacila. Levanta o rosto como se fosse de pedra e resiste aos adversários soberbos. Aliás, para enfrentar essa gente, ele convida a comunidade a assumir em conjunto esse enfrentamento: “apresentemo-nos juntos!” E Javé ajuda, sustenta, dá força. Por isso quem poderá condenar o servo de Javé? Contudo, quando o Messias vem, ele sofre, é condenado, torturado e, finalmente, morto na cruz. O justo toma o lugar dos injustos. O profeta anuncia o fim dos adversários: “a traça os comerá” (v. 9), mas antes é o servo de Deus que é sacrificado. O Segundo Testamento completa o Primeiro, convida e chama para uma nova vida, uma nova criação.
Mateus 27.33-50: É o evangelho da Sexta-Feira da Paixão. O justo, o Filho de Deus, como depois reconhecem os soldados romanos, esse Jesus é condenado e crucificado num lugar maldito, o Gólgota, lugar da Caveira. A acusação é afixada na cruz: “Este Jesus, o Rei dos judeus”. Que rei fraco, sem qualquer poder visível, sem exército, sem defensores, um homem solitário e cercado por malfeitores, por escarnecedores, gozadores, gente sem qualquer sinal de piedade por um sofredor. Pior: invertem as palavras de Jesus ao cobrar dele que se salve: “salvou outros, a si mesmo não pode salvar-se” (v. 42). Vexame total. “Confiou em Deus; pois que este venha livrá-lo agora” (v. 43). O crucificado só consegue gritar as palavras conhecidas do Salmo 22: “Eli, Eli, lemá sabactâni. Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” Terrível solidão. Aquele que confiou radicalmente em Deus e chamava-o de “Abba, Pai” está irremediavelmente só. Pode haver desgraça maior? O grito confunde os observadores obscenos que pensam estar o crucificado clamando por Eli. Mas Jesus continua a gritar e, por fim, entrega o espírito. Acabou. Não há mais o que fazer. Além dos soldados e seu chefe, só um pequeno grupo de mulheres fiéis, seguidoras de Jesus, fica por ali observando tudo, chorando muito, imagino eu, vendo o que fizeram com seu amado mestre. Os discípulos homens fogem nem são mencionados na cena do crime. A cruz é a crise maior naquele momento e ainda hoje. A cruz é o espelho que condena a comunidade que diz crer, mas foge, busca segurança, tem vergonha de seguir e servir a um profeta tão fraco. Entre a cruz e o que virá há uma lacuna, um vazio difícil de ser preenchido. Ontem e hoje. Prestemos atenção a esse vazio. Porque a terra treme quando Deus morre completamente só. O véu do templo rasga. A lei chega a seu limite. Só um ato de Deus pode reverter esse beco sem saída. Como Deus age? Isso a sexta-feira não explica. Ela só nos coloca o espelho para que tentemos caminhar com Jesus até a cruz e sintamos com ele e as mulheres fiéis o sem-sentido da morte de um justo. Só quem permanece com Jesus sob a cruz compreenderá o que vem por trás dela ou depois dela. Não é prudente ocultar o que aconteceu com Jesus, o justo, nessa sexta-feira de trevas e extrema crueldade.
Bibliografia
BOOR, Werner de. Cartas aos Coríntios. Tradução Werner Fuchs. Curitiba: Esperança, 2004. (Comentário Esperança).
BULL, Klaus-Michael. Panorama do Novo Testamento. História – Contexto – Teologia. Tradução Uwe Wegner. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2009.
MUELLER, Ênio R. Caminhos de reconciliação. A mensagem da Bíblia. Joinville: Grafar, 2010.
TAMEZ, Elsa. Contra toda condenação. A justificação pela fé, partindo dos excluídos. Tradução Georges I. Maissiat. São Paulo: Paulus, 1995.
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