Prédica: 1 Tessalonicenses 4.13-18
Leituras: Daniel 12.1-3 e Marcos 5.21-24,35-43
Autoria: Wilhelm Sell
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Chamados e chamadas a confiar
1. Introdução
Finados é o dia em que relembramos aquelas pessoas que partiram antes de nós. Dia marcado por memórias. Rememoramos momentos alegres e tristes que tivemos com a pessoa amada que já não está mais presente. “Como seria bom poder voltar no tempo!”; “Faria isso ou aquilo diferente!”. São alguns pensamentos daquelas pessoas que sempre de novo suspiram de saudades. Por isso, neste dia, muitas pessoas vão ao cemitério para limpar, arrumar e enfeitar os túmulos daqueles e daquelas que nos precederam no descanso. É uma forma de expressar carinho e cuidado para com quem já partiu. Há também um contato com a própria história. Antepassados e pessoas que conhecemos são relembrados e evocam cenas em nossa memória. Tudo isso significa que lidamos de frente com o tema da morte e seu contínuo mistério.
No texto de Daniel 12.1-3, o mensageiro angelical promete ao profeta que o povo de Deus será protegido contra os poderes da escuridão. No entanto, isso não significa que estarão protegidos do tempo de angústia, mas serão, em momento oportuno, resgatados dele. Então a ressurreição é apontada como a reversão da maldição da morte. Esse novo “tempo” é marcado pelo resultado do compromisso ético diante de situações que a vida colocou: vergonha e horror eterno ou, para o sábio, a glória eterna.
Já no texto de Marcos 5.21-24,35-43 encontramos a história da ressurreição da filha de Jairo, um dos principais chefes da sinagoga. Desesperado, Jairo se lança aos pés de Jesus Cristo e pede para que ele imponha suas mãos sobre sua filha a fim de curá-la. No caminho, Jesus cura uma mulher que sofria de hemorragia e que simplesmente o havia tocado. Fato é que até chegar à casa de Jairo, sua filha já havia morrido. Diante do lamento e desespero de toda a família, Jesus pergunta: Por que estais em alvoroço e chorais? A criança não está morta, mas dorme. E, por meio da palavra, Jesus Cristo chama a menina para que se levante. Todas as pessoas presentes ficam admiradas pelo grande milagre.
Os dois textos, que servem de auxílio para o texto principal, evocam o tema do sofrimento e da morte. Mas para além de toda possibilidade de fatalismo, vislumbram aquilo que brota a partir da vontade e poder de Deus. Isso não significa a ausência de perguntas, sofrimentos e dúvidas. A morte continua sendo uma realidade indesejada e inconveniente. E isso não foi diferente nas primeiras comunidades cristãs. Nesse sentido, o texto de Paulo em 1 Tessalonicenses 4.13-18 pode nos ajudar ainda hoje e lançar luz sobre as recorrentes dúvidas sempre presentes em nossas comunidades.
2. Exegese
2.1 Contexto
Há consenso entre os pesquisadores de que a Primeira Carta aos Tessalonicenses é a mais antiga do apóstolo Paulo. A igreja se situava na cidade que atualmente é conhecida como Salônica, no nordeste da Grécia. Foi fundada cerca de 300 a.C. e chegou a ser uma das principais cidades da Macedônia e, posteriormente, uma importante cidade do Império Romano.
Como podemos ler em Atos 17, Tessalônica foi evangelizada por Paulo durante sua segunda grande viagem missionária. Junto com Silas e Timóteo, ele viajou pela Ásia Menor até Trôade. O primeiro lugar que visitaram foi Filipos e, passando por Anfípolis e Apolônia, chegaram à Tessalônica. Ali pregaram o evangelho na sinagoga, tentando convencer judeus de que Jesus era o Cristo. Muitas pessoas, judeus e gentios, aderiram ao evangelho. Os judeus, porém, movidos de inveja, trazendo consigo alguns homens maus dentre a malandragem, ajuntando a turba, alvoroçaram a cidade e, assaltando a casa de Jasom, procuravam trazê-los para o meio do povo. Porém, não os encontrando, arrastaram Jasom e alguns irmãos perante as autoridades, clamando: estes que têm transtornado o mundo chegaram também aqui, os quais Jasom hospedou. Todos estes procedem contra os decretos de César, afirmando ser Jesus outro rei. Tanto a multidão como as autoridades ficaram agitadas ao ouvirem estas palavras; contudo soltaram Jasom e os mais, após terem recebido deles a fiança estipulada (At 17.5-8 ARA).
Após Tessalônica, Paulo, Silas e Timóteo seguiram viagem para Bereia. Essas são as informações que temos sobre essa comunidade no livro de Atos. É bem possível que a primeira carta de Paulo a essa comunidade não demorou para ser enviada. Paulo mostra-se preocupado com as pessoas que haviam acolhido com tanta seriedade o Evangelho de Jesus Cristo. Mesmo impedido de ir visitar a comunidade, envia Timóteo para que os crentes fossem fortalecidos na fé por meio da palavra de Deus. As notícias que Timóteo envia a Paulo são surpreendentes. São basicamente três temas que compõem as recomendações e exortações para a comunidade: a) a prática da vida de fé, evitando a impureza, aperfeiçoando-se nos trilhos da graça; b) a contínua progressão do belíssimo exemplo que davam quanto ao amor fraternal, que fez a comunidade ser reconhecida por toda a região da Macedônia; c) e sobre a situação daquelas pessoas que morreram antes da volta de Jesus Cristo.
O texto de 1 Tessalonicenses 4.13-18 está justamente no contexto das recomendações e exortações de Paulo. Há uma angústia bem pontual por parte de irmãos e irmãs da comunidade quanto às pessoas que já morreram. Disso se deflagra a compreensão presente nessa comunidade de que a volta de Jesus Cristo era iminente. Não imaginavam que seria possível perder membros antes desse esperado momento. Haveria alguma desvantagem para as pessoas que já haviam partido, em comparação àquelas que sobreviverão até a parúsia?
É importante notar que Paulo não desmerece o tema. Considera-o uma preocupação válida na vida da pessoa que crê. O tema da morte e da esperança latente em busca de um sim para além da morte acompanha o ser humano desde a primeira humanidade. E isso faz com que o ensino de Paulo, nesse contexto, ultrapasse seu tempo, nos encontrando nos dias de hoje.
2.2 O texto
V. 13 – Não queremos, porém, irmãos, que sejais ignorantes com respeito aos que dormem, para não vos entristecerdes, como os demais, que não têm esperança.
(ARA)
É impossível negar que os apóstolos se preocupavam com uma doutrina isenta de equívocos e que transmitisse o mais perto possível daquilo que entendiam como o evangelho. Por isso também um tema “marginal”, ou seja, que lida com uma questão de preocupação última da vida, como a morte, tem sua legitimidade e importância. Por isso, no tocante a esse assunto, Paulo quer sanar as dúvidas existentes para não haver ignorância. É fato que esse assunto se faz presente na vida daqueles e daquelas que perdem pessoas amadas ou que estão diante da possibilidade de perder a vida, por exemplo, quando constatada uma doença grave. A conjugação do verbo entristecer (lypēsthe – pres. subj. pass.) dá a ideia de uma tristeza contínua. Assim, clarear o entendimento a partir do evangelho evita que se dê ouvidos e atenção para discursos limitadores e opressores, ou seja, que não se fundamentam em uma esperança concreta, real e verdadeira, como a que é dada em Jesus Cristo por meio da sua morte e ressurreição.
V. 14 – Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que dormem. (ARA)
Diante da realidade da morte, Paulo fala com toda convicção sobre a ressurreição de todas as pessoas. Assim, a fé cristã está intrinsicamente conectada a uma clara esperança. Isso demonstra que o evangelho atinge todos os assuntos relacionados à vida e à morte. A fé cristã está alicerçada na certeza da morte e ressurrreição de Jesus Cristo. Em 1 Coríntios 15.12-14, o apóstolo faz uma grande defesa sobre a relação entre fé e a certeza da ressurreição. Para ele, se essa não fosse uma realidade concreta e certa, vã seria a própria fé cristã. Portanto a ressurreição é um dos temas centrais do evangelho e sobre o qual não pode haver dúvidas. Isso significa que também a crença sobre a imortalidade da alma, proveniente das influências da filosofia grega, que, aliás, Paulo conhece muito bem, está completamente afastada. Aqueles e aquelas que “dormem” repousam na lembrança do Criador, aquele que trará cada um e cada uma de volta na parúsia. Assim como Deus não abandonou Jesus Cristo, mas o ressuscitou pelo agir do Espírito Santo, toda pessoa será ressuscitada, pois se vivemos, para o Senhor vivemos, e, se morremos, para o Senhor morremos. Quer, pois, vivamos ou morramos, somos do Senhor (Rm 14.8 – ARA). Ou seja, é no próprio Deus e em sua promessa que está a garantia da ressurreição e isso deve sustentar a pessoa crente. Aliás, não há nada no mundo mais certo do que a palavra de Deus, aquela por meio da qual todas as coisas foram criadas do nada. Para a comunidade de Tessalônica Paulo afirma, portanto, que as pessoas que precedem outras antes da parúsia estão abrigadas em Jesus Cristo e de nenhuma forma estarão em desvantagem no dia derradeiro.
V. 15-17 – Ora, ainda vos declaramos, por palavra do Senhor, isto: nós, os vivos, os que ficarmos até a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem. Porquanto o Senhor mesmo, dada a sua palavra de ordem, ouvida a voz do arcanjo, e ressoada a trombeta de Deus, descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro; depois nós, os vivos, os que ficarmos, seremos arrebatados juntamente com eles, entre nuvens, para o encontro do Senhor nos ares, e assim, estaremos para sempre com o Senhor.
O apóstolo Paulo consola quem está preocupado com as pessoas que já partiram e traça uma ordem para quando chegar o dia derradeiro. Primeiramente as pessoas que já faleceram serão ressuscitadas, e então os vivos serão arrebatados juntamente com eles para que juntos encontrem o Senhor com quem se ficará para sempre. Isso não acontecerá de qualquer maneira, mas pela palavra de ordem que ecoa por todos os espaços do mundo e penetra nas sepulturas dos mortos, evocando a ressurreição daqueles e daquelas que já partiram. E assim acontece porque o próprio Deus é quem desce dos céus para buscar os seus. Significa que somos dependentes do agir de Deus. Nenhuma garantia temos em nossas mãos além da promessa de Deus de que ele, em momento oportuno, agirá por meio de sua palavra, trazendo os seus novamente à vida. E assim, todas as pessoas crentes estarão com Jesus Cristo.
Chama a atenção ainda sobre a referência a “nuvens” e um encontro com o Senhor nos “ares”. A palavra encontro (apantēsis) “tem um sentido técnico no mundo helenístico em relação à visita de dignatários às cidades, onde o visitante seria formalmente encontrado pelos cidadãos, ou uma delegação deles, que teriam saído da cidade para este propósito e, então, seriam cerimonialmente escoltados de volta para a cidade” (RIENECKER; ROGERS, 1995, p. 444). Portanto “nuvens” e nos “ares” simbolizam o lugar de encontro antes da volta à terra e não uma fuga ou desmerecimento da mesma.
V. 18 – Consolai-vos, pois, uns aos outros com estas palavras.
O apóstolo nada menciona sobre o destino das pessoas não cristãs. Sua preocupação é simplesmente responder as perguntas dos membros daquela comunidade cristã exemplar. Assim, ele também não quer dar a esses uma instrução dogmática sobre os eventos apocalípticos, mas quer lhes oferecer ajuda pastoral nesse tema que lhes gerava grande angústia. Por fim, ele pede para que se confortem mutuamente com essa esperança alicerçada na segurança da palavra de Deus.
3. Imagens para a prédica
O apóstolo Paulo nos ensina ainda hoje a lidar com a morte. Sendo uma realidade pós-lapsária, ela continua a ser uma indesejada presença na vida de todos e todas nós. É certo e inevitável o sofrimento por aqueles e aquelas que partem antes de nós e faz parte do ciclo da vida passarmos pelo luto. Mas o texto remete a nós, atuais leitores e leitoras, não ao desespero diante da morte, mas à vivência da nossa realidade como aquela que é penúltima e temporária. A realidade última deve nos acompanhar, fazendo com que vislumbremos as promessas de Deus e não eternizemos aquilo que é temporário. Assim, aqueles e aquelas que nos precederam na morte e aguardam o dia derradeiro podem nos ajudar a lembrar de nossa própria finitude.
Mas, além disso, é importante que nos lembremos daquelas pessoas que já partiram. Importa não esquecer os momentos da história em que nos encontramos com pessoas que marcaram nossas vidas. Na experiência pastoral é comum ouvir histórias de pessoas que gostariam de eternizar seus amados e suas amadas. Se tivéssemos a possibilidade de postergar a vida de quem amamos, dificilmente estaríamos dispostos a, em algum dia, dar o nosso “ok”, a não ser em casos de insuportável sofrimento. No entanto, essa expectativa pela eternidade livre de sofrimento é justamente aquilo que Jesus Cristo torna possível e promete por meio de sua própria morte e ressurreição.
Em nossas comunidades, encontramos disseminada a ideia de uma alma que sai do corpo no momento da morte. A força dessa crença muito se dá pela tentativa de uma “garantia” da eternidade. A antropologia teológica judaico-cristã não admite esse tipo de interpretação. Onde estaria então nossa segurança de que a vida não termina na morte? Nesse contexto podemos lembrar as palavras do próprio Jesus Cristo quando disse: Passará o céu e a terra, porém as minhas palavras não passarão (Mt 24.35). Ou seja, tudo pode passar, podemos até nos esquecer de muitas coisas, mas aquilo que Deus tem preparado para cada um de nós, vivos ou mortos, jamais cairá em seu esquecimento. Podemos ser tomados por incertezas com relação ao que acontecerá de fato no dia derradeiro, mas a fé nos convida a permanecer confiantes. Assim como Paulo encoraja todas as pessoas que creem, também nós hoje, para que permaneçamos firmes na promessa de Deus sobre a ressurreição.
4. Subsídios litúrgicos
Sugiro a leitura do poema de Dietrich Bonhoeffer “Quem sou eu?”, que destaca a firmeza da sua fé diante das dúvidas, do sofrimento e da possibilidade de sua própria morte. Esse poema surge durante seu tempo como preso político de Adolf Hitler, durante a Segunda Guerra Mundial.
Quem sou eu?
Seguidamente me dizem
que saio da minha cela
tão sereno, alegre e firme
qual dono de um castelo.
Quem sou eu?
Seguidamente me dizem
que da maneira como falo
aos guardas, tão livremente,
como amigo e com clareza
parece que esteja mandando.
Quem sou eu?
Também me dizem
que suporto os dias do infortúnio
impassível, sorridente e com orgulho
como alguém que se acostumou a vencer.
Sou mesmo o que os outros dizem de mim?
Ou apenas sou o que sei de mim mesmo?
Inquieto, saudoso, doente,
como um passarinho na gaiola,
sempre lutando por ar, como se me sufocassem,
faminto de cores, de flores, às vezes de pássaros.
Sedento de palavras boas, de proximidade humana,
tremendo de ira a respeito da arbitrariedade
e ofensa mesquinha,
nervoso na espera de grandes coisas,
em angústia impotente pela sorte de amigos distantes,
cansado e vazio até para orar, para pensar, para produzir,
desanimado e pronto para me despedir de tudo?
Quem sou eu?
Este ou aquele?
Sou hoje este e amanhã um outro?
Sou porventura tudo ao mesmo tempo?
Perante as pessoas um hipócrita?
E um covarde, miserável diante de mim mesmo?
Ou será que aquilo que ainda em mim perdura,
seja como um exército em derradeira fuga,
à vista da vitória já ganha?
Quem sou eu?
A própria pergunta nesta solidão
de mim parece pretender zombar.
Quem quer que sempre eu seja,
tu me conheces, ó meu Deus,
sou teu.
Bibliografia
BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e submissão: cartas e anotações escritas na prisão. São Leopoldo: Sinodal, 2003. p. 468-469.
DUNN, James D. G. A teologia do Apóstolo Paulo. São Paulo: Paulus, 2003.
FRIEDRICH, Gerhard. Der Erste Brief an die Thessalonicher. In: Das Neue Testament Deutsch. Göttingen; Zürich: Vandenhoeck & Ruprecht, 1990. Band 8.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon. Chave linguística do Novo Testamento grego. São Paulo: Vida Nova, 1995.
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