I — Introdução
O culto de Natal já adquiriu suas características próprias. Em primeiro lugar, caracteriza-se, bem mais que a maioria dos outros cultos, pela heterogeneidade dos participantes. Muitos comparecem movidos pela tradição religiosa da família, outros por julgarem que os filhos batizados pelo menos deveriam ser expostos a alguma experiência cristã, ainda outros porque o culto de Natal passou a fazer parte das festividades de fim de ano.
Por outro lado, o culto de Natal também é diferente em sua própria estrutura. Não é raro que, talvez já se adaptando a esta heterogeneidade dos participantes e de sua motivação, a prédica é substituída por um jogral, uma encenação da história de Natal, apresentação de cantos por grupos de crianças, jovens ou mesmo de adultos.
Tendo em vista esta realidade, bem como nossos campos de atividade, decidimos não fazer uma exegese acompanhada de meditação e de um roteiro para prédica. O que apresentamos são antes de tudo subsídios que visam facilitar a comunicação da mensagem. Nosso ponto de partida não é um texto, mas algumas imagens que consciente ou inconscientemente são transmitidas e cuja influência pode ser mais poderosa do que prédicas ou catequeses bem elaboradas. Ao final também apresentamos algumas sugestões para atividades. Mesmo sendo de natureza diferente, acreditamos que nem por isso os subsídios aqui apresentados sejam menos importantes para a proclamação do evangelho. Afinal, o fato de o verbo tornar-se carne, é antes de tudo um milagre de comunicação.
II — A contribuição da psicologia evolutiva
Estamos habituados a queixar-nos e ouvir queixas sobre a atitude de apatia em muitos membros. Poderíamos tentar justificar esta atitude como consequência natural numa sociedade de consumo. No entanto, tal explicação parece falha pelo menos por duas razões. Uma vez, por basear-se numa concepção mecanicista de homem e, em segundo lugar, por não levar em conta o poder transformador do evangelho. Uma outra forma de colocar-se diante desta atitude é permitir que ela nos desafie, tentando ouvir se ela nos diz algo em relação ao que nós fizemos ou estamos fazendo. É neste sentido que a seguinte observação de Gabriel Moran é importante. Para muitas pessoas, afirma ele, apatia não é indiferença; é uma resposta definida a perguntas que elas não consideram irrelevantes. Estas pessoas decidiram (embora algumas vezes conservando as práticas correias) não levar a fé cristã a sério. Esta convicção nem sempre é a culpa da pessoa que no momento está tentando pregar ou.ensinar. Apatia nasce de ouvir, durante anos e anos, a pregadores cansados pregando respostas insignificantes para perguntas ininteligíveis (Moran, p.87).
Fica evidente nesta citação a relação entre a atitude de apatia e uma estagnação neste setor. Também a frequente referência a conceitos como fé adulta, maturidade do cristão (veja a definição do Catecumenato Permanente) ou outros semelhantes revelam, pelo menos implicitamente, o reconhecimento de algo que poderia ser caracterizado como fé infantil ou imaturidade do cristão. Ao mesmo tempo, tal preocupação implica no reconhecimento de que existe a possibilidade de crescimento, de desenvolvimento.
É neste sentido que um diálogo com a psicologia evolutiva se torna importante. Pesquisas, principalmente a partir da teoria de Piaget, estão nos auxiliando a compreender melhor o que as pessoas são capazes de entender e assimilar em determinados estágios do desenvolvimento e o que poderá vir a prejudicar uma evolução sadia. É desta perspectiva que pretendemos focalizar alguns dos mitos de Natal.
III - As imagens de Natal
Na mensagem de Natal destaca-se a centralidade da encarnação: o verbo tornou-se carne. É a realidade de Deus que se faz presente em nossa realidade de aflições e de alegrias, de miséria e de fartura, de desespero e de esperança. Poderíamos supor, pois, que Natal é uma ocasião bem especial de levar a compreender a participação da realidade divina em nossa realidade.
No entanto, parece que isto nem sempre é o caso. Goldman, em sua pesquisa sobre o pensamento religioso, conclui que a ênfase em alguns mitos em torno do nascimento de Jesus parece enfatizar os elementos miraculosos e encorajar um sentido de irrealidade sobre o tipo de homem que Jesus realmente foi (Goldman, p.176). Certamente não é difícil reconhecer elementos presentes no Natal que ajudam a preservar uma fé cristã ao mesmo nível do Papai Noel, isto é, num mundo imaginário que pouco ou nada tem a ver com as realidades desta vida e que são responsáveis por distorções difíceis de apagar ou corrigir. Na impossibilidade de fazer uma análise completa neste contexto limitamo-nos a algumas exemplificações.
Dentre estes fatores destaca-se primeiramente a representação de Jesus como um bebé manso, indefeso. Um bebê que está na fase de só receber. É acima de tudo um enfeite aos olhos de quem o mira. Não se sabe até que ponto é um bebê humano (se chora, se suja as fraldas, etc.) ou se é um ser angelical. Como diz um dos hinos de Natal: Em fraldas bem limpas o filho de Deus, mais belo e afável que os anjos nos céus (Hino ng 20). É certo que a imagem do bebé quer tocar corações endurecidos, mas ela representa o Cristo que queremos conhecer e tornar conhecido? Em termos de nossa realidade, parece provável que o Jesus de hoje séria mais parecido com a criança descrita por João Cabral de Melo Neto em ¨Morte e Vida Severina¨. Quanto à sua formosura, é um menino magro, uma criança pálida, uma criança pequena, enclenque (doentia) e setemesinha. Ainda assim, é belo porque com o novo todo velho contagia. Belo porque corrompe com sangue novo a anemia. Infecciona a miséria com vida nova e sadia. Com oásis o deserto, com ventos, a calmaria (p. 38).
Em segundo lugar devem ser mencionados alguns elementos com os quais mesmo teólogos encontram certa dificuldade, como a presença de anjos e o nascimento da virgem. Mesmo que na pregação e no ensino se tente evitar estes elementos, deliberadamente ou por insegurança, eles muito cedo começam a fazer parte da religiosidade da maioria dos cristãos. Além disso, a apresentação tradicional de Maria não reforça a submissão da mulher? Ela geralmente nos é apresentada como uma mulher dócil, submissa, protetora, capaz de sofrer dor e humilhação sem sequer se manifestar. Não há uma relação entre esta imagem e os padrões culturais que conhecemos como machismo e marianismo?
Nem precisaríamos falar de Papai Noel, uma figura que obviamente não tem sua origem na tradição bíblica, mas que também nem sempre é dissociada da mensagem de Natal. Sua figura é um misto de bom e ruim. É um ser amado porque traz presentes e odiado porque reprime e castiga. Muitas vezes é um socorro para pais que fracassaram na educação dos filhos e recorrem a esta Imagem como último recurso para reparar a falha. Não é difícil imaginar o tipo de imagem de Deus associada com esta figura. Não é difícil ver também como pode contribuir para reforçar o sentido de irrealidade com relação à pessoa de Cristo.
IV — Algumas consequências
Mencionamos acima alguns fatores que podem levar a sérias distorções e assim tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento da fé. Julgamos importante destacar alguns elementos que constituem ingredientes da fé de muitos cristãos e que à luz da teoria de Piaget seriam indícios de pensamento que deixou de evoluir:
1. Verbalismos: não será difícil fazer a criança repetir mecanicamente uma série de conceitos bíblicos ou teológicos. Isto, no entanto, ainda não significa que os mesmos foram compreendidos, isto é, assimilados pela estrutura mental da criança. Com relação ao material bíblico e teológico pode acontecer o mesmo que muitas vezes acontece com relação a números. Também nesta área a criança pode adquirir um vocabulário relativamente grande, habilidade de contar e facilidade de computar sem o devido quadro conceitual para entender o que faz ou diz. Sabe-se hoje que isto não representa apenas perda de tempo, mas que inclusive prolonga o pensamento infantil com relação a número (Goldman, p.222).
2. Dualismo: a maioria das áreas de conhecimento ou campos de atividade profissional requerem do indivíduo uma evolução no sentido de sair do mundo da fantasia. Isto nem sempre acontece no campo da fé, onde a distinção entre realidade e fantasia às vezes não é feita e onde não é raro as pessoas esconderem-se atrás duma afetividade vazia. Nestas circunstâncias a fé passa a ser algo para ocasiões especiais, algo que pouco tem a ver com as atividades e os problemas do dia-a-dia.
3. A passividade da inteligência: a criança percebe o adulto como despenseiro da verdade. Enquanto que nos outros domínios a autoridade do adulto começa a ser vista com mais objetividade com o passar do tempo, o mesmo não acontece sempre com relação à fé. Os adultos (pais, professores, pastores) não raro sufocam o despertar do juízo autônomo, principalmente valendo-se do argumento da verdade revelada. Como tal, ela simplesmente está acima de qualquer questionamento e discussão.
4. Sincretismo: a pesquisa de Piaget mostrou que a criança liga os diversos fatos por simples justaposição. Não há preocupação com o nexo causal ou com a eliminação de contradições. Daí a frequência de palavras como e, então, depois, etc. O pensamento religioso, quando dispensar explicações lógicas, pode fixar-se neste nível de pensamento. Aliás, este é um fenómeno bastante conhecido em nossas comunidades. Para muitas pessoas não existe conflito algum entre professar a fé cristã e recorrer a benzedeiras ou participar de movimentos religiosos cuja relação com o cristianismo é muito vaga ou inexistente.
5. Absolutização de seu ponto de vista: para a criança, seu ponto de vista é absoluto. Não é capaz de admitir uma hipótese como tal. Discussão, como afirma Pohier, é um simples choque de opiniões contrárias (Pohier, p.91). Nas discussões sobre assuntos de religião ou teologia frequentemente notamos algo muito semelhante. Conforme o acima citado autor, os interlocutores podem fechar-se dentro dos quadros de sua própria experiência, convertida em absoluto. Tudo que se afirma é tido por evidente, em si mesmo e para o outro, como o é para aquele que afirma (Idem, p.92).
V — Implicações para a programação de atividades
O que foi dito não significa que se deva abandonar tudo o que tradicionalmente se faz no Natal. O que se deveria fazer, no entanto, é enfatizar conscientemente aquilo que mais contribui paia o crescimento. Salientamos alguns destes aspectos:
1. Ênfase no Jesus adulto: a preocupação deveria centrar-se em Jesus como homem (adulto) e no significado concreto de sua missão libertadora no contexto em que se encontra a comunidade. Com esta ênfase na concreticidade de Jesus e na realidade de sua tarefa poderíamos ajudar a dispersar ao invés de reforçar elementos do pensamento religioso que são ou podem tornar-se um obstáculo ao desenvolvimento da fé.
2. Participação: outra implicação do que vimos é que o crescimento na fé não pode ser realizado por uma pessoa para outra. Como ocorre em outras áreas, também em termos de fé cada qual deve assumir responsabilidade pela sua própria aprendizagem e consequente crescimento. Ora, isto não é possível sem participação, sem experienciar o que a mensagem significa. Se a mensagem de Natal é uma mensagem de paz e de justiça, de alegria e de amor então deveria haver o esforço de expressar isto na programação e no próprio planejamento.
3. O papel do pastor: para o pastor ou outros obreiros isto significa em ser antes de tudo um facilitador ou orientador neste processo de crescimento auto-assumido. Em outras palavras, sua função é ajudar as pessoas a descobrir o significado da mensagem para suas vidas e para sua realidade, bem como ajudar a assumir as consequências desta descoberta.
VI — Sugestões para atividades
1. A partir de grupos de reflexão (ou ação-reflexão)
- Formar grupos para discutir os preparativos para o Natal. Estes grupos podem ser formados a partir dos existentes (JE, OASE, ensino confirmatório, etc.) ou ser constituídos por núcleos de 4 a 5 famílias.
- Refletir sobre as festas natalinas que foram mais significativas em termos de vivência do evangelho.
- Estudar a mensagem de Natal (veja as exegeses de Proclamar Libertação l e III), principalmente analisando suas implicações para a nossa realidade.
- Ler e/ou ouvir (em disco) a peça teatral ¨Morte e Vida Severina¨, um auto de Natal pernambucano de João Cabral de Melo Neto e música de Chico Buarque de Holanda. Outro texto significativo é a crônica ¨Organiza o Natal¨ de Carlos Drummond de Andrade (em Cadeira de balanço, 4» ed., Rio de Janeiro, 1970).
- Discutir modalidades de viver e comemorar o Natal mais significativamente na comunidade.
- A partir dos grupos, organizar uma comissão para elaborar e dirigir o programa.
- Se possível, encontrar-se novamente depois do Natal para avaliação e talvez para o engajamento em tarefas específicas.
Uma variação consistiria em convidar os diversos grupos da comunidade (OASE, JE, coral, escola dominical, etc.) a assumir partes do culto de Natal. O conteúdo das contribuições deveria partir do envolvimento concreto destes grupos ou então daquilo que os caracteriza como grupo. Para isso podem ser usadas dramatizações, montagens com diapositivos e música, jograis, cartazes, cantos, etc. Os diversos grupos trabalham separadamente e repre-sentantes de cada grupo podem encontrar-se uma ou outra vez para coordenar as iniciativas.
2. Prédica elaborada em conjunto
Convidar um grupo de membros leigos (preferivelmente de diferentes classes sociais, níveis culturais e idades) para a elaboração da prédica de Natal. Eis alguns possíveis passos para um trabalho desta natureza:
- estudo e reflexão sobre o texto (veja exegeses em Proclamar libertação l e III);
- com base nos problemas apresentados e discutidos o pastor (poderia também ser um outro membro ou grupo) elabora a prédica, utilizando o mais possível do material das discussões;
- o grupo reúne-se para avaliar e revisar a prédica;
- após o culto deveria haver novo encontro para avaliação em termos da resposta da comunidade.
VII – Bibliografia
- CHARLES, C. M. Piaget ao alcance dos professores. Rio de Janeiro. 1977.
- GOLDMAN, R. Religious thinking from childhood to adolescense. New York, Í964.
- MELO NETO, J. C. Morte e Vida Severina. Rio de Janeiro, 1967.
- MORAN, G. Vision and tactics. New York. 1968.
- POHIER, J. M. Psicologia da inteligência e psicologia da fé. São Paulo, 1971.