Prédica: Mateus 24.36-44
Leituras: Isaias 2.1-5 e Romanos 13.11-14
Autor: Werner Wiese
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação: 01/12/2013
Proclamar Libertação - Volume: XXXVIII
1. Introdução
O domingo passado foi o Domingo da Eternidade, por vezes também chamado de Domingo Cristo Rei. Hoje é o 1º Domingo de Advento. Com esse começa o novo ano eclesiástico, conhecido também como ano litúrgico. Advento deriva do latim adventus. Corresponde ao termo grego no Novo Testamento parusia e significa presença ou vinda. Ele pode referir-se a seres humanos, a Cristo e uma vez no Novo Testamento refere-se ao iníquo (anticristo [2Ts 2.9]). O texto bíblico previsto para a pregação deste domingo é Mateus 24.36-44. Nesse texto, o termo grego para adventus (parusia) ocorre duas vezes (v. 37 e 39) e refere-se ao Filho do Homem, por quem os discípulos e a comunidade de fé esperavam ansiosamente.
Houve uma época na igreja em que o tempo de Advento era tempo de jejuar como preparação para o Natal, semelhantemente ao período da Quaresma, que antecede a Páscoa. Na igreja grega, até hoje isso é assim. De qualquer forma, os quatro domingos de Advento querem ser preparação para o Natal – a data de celebração do nascimento de Jesus como Salvador da humanidade. Mas seria um equívoco ver no tempo de Advento apenas uma ocasião para relembrar o longínquo passado. O texto para a pregação de hoje vem carregado de expectativas em relação ao futuro. Que expectativas são essas? Não quaisquer expectativas, mas principalmente a expectativa em torno da vinda/presença do Filho do Homem para trazer à tona o reino de Deus de forma visível e definitiva.
Essa expectativa não era nova na época em que nosso texto foi redigido, mas remonta a uma longa história do povo de Deus, marcada por altos e baixos desde tempos remotos no Antigo Testamento, perpassando também os primeiros decênios da igreja cristã primitiva. Tanto no Antigo como no Novo Testamentos, o povo de Deus é carregado pela esperança no agir renovado de Deus num futuro próximo. Hoje não é diferente. Dentro dessa realidade e lógica, os textos de Isaías 2.1-5 e Romanos 13.11-14 podem ser mencionados e utilizados na pregação deste domingo.
2. Exegese
2.1 – O texto no seu contexto
A perícope para a pregação faz parte do assim chamado “discurso apocalíptico de Jesus”, registrado nos evangelhos sinóticos com algumas variações entre eles. No Evangelho segundo Mateus, esse discurso abrange os capítulos 24 e 25. Dificilmente ele foi pronunciado de uma só vez. O mais provável é que a atual versão do discurso seja uma composição ulterior, cuja razão e detalhes não se podem mais decifrar satisfatoriamente. Especialmente no capítulo 24, vários lugares vivenciais originais mesclam-se de tal maneira, que nem sempre é simples distingui-los e delimitá-los claramente. Por exemplo: os v. 1-2 mencionam que Jesus se havia retirado do templo, e as palavras que seguem referem-se à destruição de Jerusalém, fato que vai ocorrer no contexto da guerra judaica contra Roma de 66 até 70 d.C. Já no v. 3, a destruição de Jerusalém, a parusia de Jesus e o desfecho final da história da humanidade são mencionados, talvez pensados juntos como acontecimentos que se sucedem imediatamente. Em todos os casos, do v. 4 em diante, esses acontecimentos são comentados não de forma cronológico-sistemática, mas de forma ascendente, que conflui para a parusia do Filho do Homem (v. 27, 30, 37, 39, 44; veja também Mt 25.31). Vendo a composição final de Mateus 24 no horizonte da parusia do Filho do Homem, é possível estruturar o capítulo de forma simplificada e elementar da seguinte maneira: v. 1-2 – palavras sobre a destruição de Jerusalém; v. 3-14 – prelúdio da parusia; v. 15-25 – tribulação especialmente na Judeia; v. 26-31 – aspectos da parusia que excedem a esperança da libertação terrena de Israel ou do povo de Deus; v. 32-44 – a natureza imprevisível da parusia; v. 45-51 – postura condizente e não condizente com a natureza da parusia, ilustrada a partir da parábola do servo fiel e do servo mau. Aliás, no capítulo 25, seguem mais duas parábolas, que têm a mesma finalidade.
2.2 – Aspectos exegético-teológicos
Apesar dos indícios de vários lugares vivenciais originais que se mesclam em Mateus 24, o capítulo quer ser entendido como um todo. Por isso também aqui se deve aplicar a regra de não isolar um texto de seu contexto para entendê-lo da melhor maneira possível. Contudo o texto escolhido para a pregação de hoje tem um papel fundamental para compreender o capítulo 24 como um todo, pois textos de natureza apocalíptica, como é o caso de Mateus 24, facilmente atiçam a fantasia humana para especulações inúteis. Nosso texto destaca os limites do saber diante da realidade última da parusia e conclama à vigilância.
V. 36 – “... daquele dia e hora ninguém sabe... nem o Filho, senão o Pai.” Os v. 32 a 35 poderiam dar a impressão de que a parusia é previsível e calculável. Querer saber ou prever o futuro de Deus e, se possível, antecipá-lo e apropriar-se dele era uma “tentação” que rodeava inclusive o círculo dos discípulos – as pessoas mais próximas de Jesus (veja At 1.6). Aqui se coloca uma divisa clara entre o que cabe ao ser humano saber e o que é autoridade (exusia) exclusiva de Deus para fazer irromper o seu reino de forma incontestável e definitiva. Ser algum participa da “elaboração da agenda” de Deus, nem o próprio Filho. Aliás, esse também está sob o signo do não saber. Isso desde tempos muito remotos foi motivo de tropeço, a ponto de uma série de manuscritos gregos omitirem a expressão “nem o Filho”. Fato é que “o reino de Deus não vem com visível aparência” (Lc 17.20), de modo que fosse possível prevê-lo e se “programar” sem compromisso com o reino.
V. 37-39 – Nesses versículos, duas vezes é mencionada a “vinda do Filho do Homem”. A expressão Filho do Homem ocorre tanto no Antigo Testamento como no Novo Testamento, principalmente no livro do profeta Ezequiel e nos evangelhos sinóticos. Na maioria das vezes, a expressão simplesmente significa o “ser humano” – esse acima de tudo é o caso em Ezequiel. No Novo Testamento, Jesus é denominado e ele mesmo se autodenomina de Filho do Homem. Aqui a expressão ultrapassa o simples significado de “ser humano” e passa a ser personagem messiânico, assumido de Daniel 7.13: “... e eis que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem...” Esse Filho do Homem é esperado para o fim dos tempos – época em que Deus instaura definitivamente seu reino (veja também Dn 7.14). É isso que está por trás da expectativa da vinda do Filho do Homem em Mateus 24. Novo em relação a Daniel 7.13 e à tradição judaico-apocalíptica é a associação do Filho do Homem com a futura parusia de Jesus Cristo. Há quem diga que Jesus não se identificava com o Filho do Homem, mas, ao se referir ao Filho do Homem, estaria falando de alguém outro. Contudo isso dificilmente era o caso, pois, se existia um título messiânico que Jesus assumiu para si, então era exatamente o de Filho do Homem (veja Lc 9.57-62, principalmente o v. 58).
Dito isso, chama a atenção que se traça um paralelo entre os “dias de Noé” e a “vinda do Filho do Homem”. Como o dilúvio foi um evento marcante para as pessoas que viviam naquela época (veja especialmente os capítulos 6 e 7 de Gênesis), assim a vinda do Filho do Homem será um evento marcante para quem viver por ocasião da parusia de Jesus. Tanto um evento como o outro contêm dois traços semelhantes: graça para uns e juízo para outros. Especialmente o aspecto do juízo no dilúvio é fortemente destacado também na transmissão da tradição da vinda do Filho do Homem (veja v. 39). Apesar dos traços semelhantes, o que mais chama a atenção é que em Mateus 24 a geração do dilúvio não é caracterizada e censurada por causa de suas aberrações éticas ou maldade grotesca, como era o caso em Gênesis 6 e 7, mas ela é caracterizada como uma geração que vive sua rotina diária: comer e beber, casar e dar-se em casamento (v. 38). Nisso não há nada de errado. Pelo contrário, essa é a necessidade e ordem da vida desde o princípio. Tanto mais soa o alarme nas palavras do v. 39a: “e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos”. O termo para “os levou” é êren/airô, que aqui significa: tirar à força, arrebatar ou arrastar. Não resta dúvida: houve e haverá grave engano em meio à boa ordem da vida. Em que consiste o engano? “No sossego que não pensa num juízo vindouro” (E. Schweizer). Dito com outras palavras: a vida é programada sem levar a realidade de Deus em conta.
V. 40-41 – O mais tardar aqui se percebe que a palavra de exortação de nossa perícope não se destina a pessoas que vivem “desregradamente”, mas se dirige a “cidadãos exemplares” que “esqueceram a realidade de Deus” (E. Schweizer). Mais precisamente, o texto não visa (em primeiro lugar) pessoas estranhas ao evangelho, mas os próprios ouvintes ou leitores do mesmo. O juízo não passa de largo do próprio povo de Deus, mas passa no meio dele. É isso que as figuras dos dois homens que trabalham juntos no campo e das duas mulheres no moinho ilustram. A linha divisória entre ser aceito e deixado para trás passa entre o que é o mais comum: os mesmos afazeres, as mesmas aparências. O texto não diz porque uma pessoa é aceita e outra não. Fato é que a palavra decisória e última sobre o povo de Deus, sobre cada pessoa e sobre toda a humanidade será proferida pelo próprio Deus. Ao ser humano não compete antecipar o veredito final sobre ninguém.
V. 42-44 – Do conteúdo dos versículos anteriores (36-41) com facilidade poderiam surgir duas posturas desastrosas em relação ao futuro: uma seria a indiferença ou negligência – simplesmente se deixar levar pela vida. A outra seria uma preocupação doentia – quase uma convulsão espiritual. Os v. 42-44 destacam a postura adequada ao fato da incógnita da parusia de Jesus Cristo: vigiar (veja também 1Ts 5.2-5; Rm 13.11-14). Assessoras dessa postura são outras expressões no capítulo 24, como: “Vede que ninguém vos engane” (v. 4); “Não acrediteis” (v. 23); “Ficai... apercebidos”. A ilustração concreta para o vigiar encontramos nas parábolas do servo fiel e prudente e do servo mau (24.45-51), das dez moças de um casamento (Mt 25.1-13) e dos talentos (Mt 25.14-30).
Considerando, mais uma vez, o contexto maior em que o texto para a pregação está inserido, pode-se sintetizar o seguinte: Teologicamente falando, a destruição de Jerusalém e do templo foi juízo interino de Deus sobre Israel por esse ter rejeitado Jesus – o enviado de Deus a seu povo da época (veja v. 1-2 e compare-os com Mt 23.3-37). A parusia do Filho do Homem por ocasião do desfecho da história será simultaneamente juízo e graça derradeira sobre toda a humanidade. A partir da primeira parusia, a igreja cristã vive à vista da parusia final, que a conclama à vigilância sóbria e responsável.
3. Meditação e imagens para a prédica
Pregar no 1º Domingo de Advento deveria ser algo especial por vários motivos. Primeiro, porque é o início do novo ano eclesiástico. Convém lembrar brevemente na pregação o último domingo, que foi o Domingo da Eternidade ou Domingo Cristo Rei. A lógica que marca o ritmo da igreja cristã não é a canção que se ouve todos os anos já dias antes da virada do último dia do calendário civil para o primeiro dia do ano seguinte: “Adeus ano velho, feliz ano novo...” ou algo do gênero. A igreja cristã não vive da despedida daquilo que ela não consegue reter e por isso se lança numa nova aventura. Segundo, Advento liga a eternidade ao tempo e ao espaço da vida humana e vice-versa. Isso é motivo que preenche pregador e pregadora com alegria e expectativa, que toma forma no anúncio da Palavra de tal modo que chegue às demais pessoas presentes no culto.
Partindo dessa realidade teológica e lido o texto para a pregação, não é difícil fazer o link com a realidade concreta da comunidade cristã na qual estamos inseridos. A coroa de Advento não é mera decoração no interior do templo; fosse isso, ela bem poderia faltar. Mas esse não é o caso. Pelo contrário, ela serve como imagem ilustrativa para a própria pregação. Pregador ou pregadora deveriam explicar a razão teológica de ter a coroa no templo para as próximas semanas. As velas apontam para o auge na comunidade cristã – a vinda do Salvador ao mundo. Mas, como já foi mencionado na introdução, seria um equívoco ver tanto no tempo de Advento como no Natal somente uma ocasião para lembrar o passado. A partir do texto da pregação, a realidade da vinda do Salvador no passado está ligada à esperança do povo de Deus – a vinda futura de Cristo como consumador da história. A pregação há de destacar isso.
Surge a pergunta: Como falar dessa realidade de maneira relevante e adequada no tempo de Advento hoje? Sem dúvida, as semanas que antecedem o Natal são marcadas por um corre-corre cada vez maior. Enfeites natalinos e luzes nas vitrines do comércio, em departamentos públicos, nas ruas das cidades, compromissos cotidianos acelerados são ditames que perigam nos sequestrar e cegar para a realidade. Também no interior da comunidade cristã, as atividades aumentam significativamente no tempo de Advento, mas isso não é garantia de que o recado de Deus vinculado à pessoa de Jesus de Nazaré – o Cristo de Deus esteja claro e seja relevante na vida para o presente e para o futuro. Na própria comunidade cristã, corremos o risco de nos perder, não num ateísmo teórico, mas prático, isto é, não negamos a existência de Deus, mas vivemos como se ele não existisse.
As tônicas no texto para a pregação querem e podem ajudar-nos para que a rotina diária acelerada nesses dias não nos faça cegos em relação à realidade última da vida. Em que sentido? Literalmente, o futuro a Deus pertence. Não conhecemos o dia de amanhã, muito menos o futuro mais distante, mas isso não nos libera para viver ao léu ou à toa. Pelo contrário, isso nos chama à responsabilidade, cientes de que a última palavra sobre nossa vida será proferida por Deus. A pregação precisa precaver-se contra dois extremos: um é incutir medo ou pânico na comunidade e em cada ouvinte. Quem faz isso não prega evangelho. O outro é vender ilusões e consolar superficialmente, dizendo apenas que Deus é gracioso. Repetimos: É necessário dizer que a parusia do Filho do homem por ocasião do desfecho da história será juízo e graça simultaneamente. Isso conclama a comunidade cristã e cada pessoa à vigilância sóbria e responsável.
4. Subsídios litúrgicos
Não apenas na pregação se deveria aludir expressamente à época do ano litúrgico, ou seja, ao período de Advento e seu significado, mas toda ordem de culto deveria ser conscientemente elaborada visando essa época. É claro que não se precisa reinventar a roda, mas se pode recorrer a material de apoio já existente na IECLB para o tempo do Advento. A coroa de Advento com as quatro velas e uma delas acesa é uma excelente linguagem simbólica a ser “explorada” teologicamente na pregação e didaticamente utilizada para tornar o culto um momento festivo. Na verdade, cada culto é um momento festivo, mas ocasiões especiais como o tempo de Advento deveriam sobressair na maneira como o culto é preparado e vivenciado.
Numa época em que a familiaridade com os valores cristãos mais óbvios está em franca decadência, há de se cuidar para que o culto de Advento não seja artificial ou mecânico, mas o mais natural e relevante para a vida das pessoas hoje.
Assim como as semanas que antecedem o Natal estão marcadas por correrias excessivas, que quase não permitem mais parar para pensar sobre o sentido da vida, na oração de confissão de pecados poderia ser feito um momento de silêncio para refletir sobre isso e orar em silêncio antes da confissão pública “representativa” dos pecados.
Bibliografia
DREHER, Martin N. 1º Domingo de Advento. Mt 24.37-44. In: Proclamar Libertação 21. São Leopoldo: IEPG & Editora Sinodal, 1995. p. 21-24.
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch 2. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976.
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