Uma epístola sobre Diaconia

25/02/2003

Uma epístola sobre Diaconia

Federação Luterana Mundial
Johannesburg, África do Sul, 2002

Irmãs e irmãos na fé – em especial Igrejas-membro da Federação Luterana Mundial e seus ministérios diaconais: saudamos a todos/as em nome de Jesus Cristo, o diácono por excelência, que veio para servir e não para ser servido!

Sob os auspícios de três departamentos da Federação Luterana Mundial, mais de 80 representantes de Igrejas Luteranas de todo o mundo nos reunimos em Johannesburg, África do Sul, de 3 a 7 de novembro de 2002, para uma Consulta Global sobre Diaconia. Ao refletirmos sobre o tema “Diaconia Profética: Para a Cura do Mundo”, nos antecipamos à próxima Assembléia da FLM, a ser realizada em 2003, em Winnipeg, Canadá, onde esperamos que algumas das preocupações expressas abaixo tenham espaço, assim como também em nossas próprias igrejas e ministérios diaconais.

Os participantes desta consulta estão envolvidos numa ampla e diversificada gama de trabalho diaconal: socorro internacional e trabalhos de desenvolvimento, projetos sociais e de diaconia locais, instituições diaconais, diáconas e diáconos, pastores e leigos de comunidades locais, pessoas e grupos ligados às Igrejas promovendo a defesa de causas públicas, e aqueles que ensinam em instituições educacionais.

Reconhecemos com gratidão as diversas formas de trabalho diaconal que a Igreja tem desenvolvido através dos séculos, e que necessariamente continuam também em nossos dias. Agora este trabalho vem sendo desafiado a adquirir formas mais proféticas de diaconia. Inspirados por Jesus e os profetas, que confrontaram os donos do poder e clamaram por mudanças de estruturas e práticas injustas, oramos para que Deus nos fortaleça na tarefa de ajudar a transformar tudo aquilo que leva à ganância humana, à violência, à injustiça e à exclusão. Queremos compartilhar com vocês nossas descobertas e lhes convidar a refletir sobre as conseqüências delas para o seu próprio contexto.


Diaconia e seu chamado profético: perspectivas teológicas

Diaconia é central quando se trata do que significa ser Igreja. Como elemento central do Evangelho, diaconia não é opção, mas parte essencial do discipulado. A diaconia alcança todas as pessoas criadas à imagem de Deus. E quando a diaconia presta serviço incondicional ao próximo em necessidade, inevitavelmente leva à mudança social, que restaura, reforma e transforma.

Somos formados/as para servir os/as outros/as através do culto, onde celebramos as dádivas da graça de Deus na Palavra, na água, no pão e no vinho, e com isso vislumbramos o cumprimento da promessa de Deus. Neste mundo quebrado, onde abundam pecado e injustiça, Deus, em Cristo e através do poder do Espírito Santo, nos reúne em comunidade. Por isso, nos tornamos agentes da graça, pés e mãos de Cristo para a cura do mundo.

Todos/as os/as cristãos/ãs sao chamados/as através do batismo a viverem diaconia naquilo que fazem e na maneira como vivem o seu dia-a-dia no mundo. Esta é a primeira e mais importante expressão de diaconia. Outras expressões mais organizadas de diaconia acontecem em nível comunitário, assim como através daqueles/as que são especificamente selecionados para o ministério diaconal. Formas mais especializadas de trabalho diaconal são organizadas para levar a cabo aquilo que indivíduos ou comunidades não conseguem fazer sozinhos.

Por causa da missão integral de Deus, a diaconia está profundamente inter-relacionada com querigma (proclamação da palavra) e koinonia (partilhar à mesa). A diaconia é o testemunho através da ação. Está enraizada na partilha do corpo e do sangue de Cristo na Santa Comunhão. A partilha mútua inerente à comunhão da igreja pode transformar as relações de poder injustas que freqüentemente estão presentes no trabalho diaconal, tais como “os ricos doadores” e “os pobres receptores”. Na diaconia, tanto os/as que são servidos/as como os/as que servem são transformados. E, ao mesmo tempo, insistimos que o propósito da diaconia não é praticar proselitismo.

Diaconia é mais do que fortes servindo fracos, o que pode levar a pretensões e práticas paternalistas, e infere que algumas igrejas não estão aptas a engajarem-se em diaconia devido à sua carência de recursos ou habilidade. Queremos desafiar esta pretensão. A diaconia é parte inerente ao chamado de todas as igrejas e de todos/as os/as cristãos/ãs no mundo.

Precisamos desafiar toda interpretação teológica que não leve seriamente em conta o sofrimento no mundo – um mundo afligido pela pobreza, violência e HIV/Aids. Como Igrejas Luteranas, somos forjados pela Teologia da Cruz, que nos impulsiona a nos identificar mais com os que sofrem do que com os bem-sucedidos. A Teologia da Cruz chama as coisas pelo que elas realmente são, rompendo a polidez e o fingimento, quebrando o silêncio e correndo riscos ao falar a verdade ao poder, mesmo quando isso ameaça a ordem estabelecida e resulta em privação ou perseguição. Isto está no cerne do chamado profético diaconal.

Pobreza, violência e HIV/Aids provocam a igreja

Pobreza, violência e HIV/AIDS são três das maiores questões da atualidade que as Igrejas não podem ignorar. Elas nos provocam a nos mover rumo a expressões mais proféticas da diaconia. Existem muitas maneiras através das quais a FLM, suas Igrejas-membro e organizações relacionadas, assim como o movimento ecumênico como um todo, têm analisado e enfrentado estes desafios. Mais do que repetir análises e compromissos já assumidos nestes documentos, mencionamos aqui alguns dos principais pontos que discernimos nestas áreas.

Pobreza -
A extrema e vasta pobreza em nosso mundo é um escândalo. Reconhecendo que a estrutura global divide as pessoas e os países entre ricos e pobres, devemos voltar nossos olhos às raízes da pobreza onde quer que estas estejam. As Igrejas são chamadas a participar das lutas dos pobres por superação da pobreza e por busca de alternativas que levem à justiça. Os que lucram às custas dos pobres devem ser identificados, confrontados e levados à justiça.

O atual paradigma de desenvolvimento, que procura “reduzir a pobreza”, deve ser reconsiderado e tornar-se mais orientado na justiça. A pobreza é um sintoma dos problemas mais profundos relativos à injustiça, ganância e ao acúmulo de riquezas em massa, encorajado pelo paradigma neoliberal e implementado através de corporações e instituições multilaterais.

Reconhecemos que tanto os pobres como os ricos estão entre nós e em nosso meio como igreja. A comunhão luterana também é composta de pobres, doentes e marginalizados/as. Somos convidados/as a mencionar e requerer os dons e possibilidades que temos para o trabalho diaconal, não importando quão materialmente pobres possamos ser. As igrejas em situações de pobreza têm uma verdade a partilhar com as igrejas em situação economicamente mais afluente. Como igrejas, somos todos/as chamados/as a renovar a esperança dos pobres, a ouvir e trabalhar em parceria uns/umas com os/as outros/as, de modo que o potencial máximo dos seres humanos possa ser percebido e praticado.

Aqueles/as entre nós que são materialmente ricos precisam aprender a ceder o poder e a perceber como a graça de Deus é radical. Os/as que vivem na pobreza são mais do que recipientes de “nossa” ajuda ou serviço, especialmente se isto é feito a fim de amenizar nossa culpa ou mesmo perpetuar paternalisticamente – se não implicitamente – as relações violentas. Os pobres dentre nós, por sua vez, devem reclamar seus direitos à vida e ao sustento, direitos estes concedidos pelo próprio Deus.


Violência -
Confessamos que a igreja tem muito freqüentemente negligenciado, tolerado ou legitimado situações e práticas de violência – tais como a violência doméstica – inclusive através de alguns aspectos de sua teologia e de como o poder está estruturado nas igrejas. Alguns líderes eclesiais têm sido perpetradores de violência dentro das igrejas, ou têm se alinhado com os perpetradores ao invés de com as vítimas.

A cultura de silêncio acerca da violência, e as injustiças que lhe são implícitas, desafia a voz profética das igrejas e precisa ser desafiada. O papel apropriado das igrejas é o de confrontar os perpetradores da violência, procurando traze-los ao arrependimento, a fim de transformar e acompanhar o processo de reconciliação e cura.

Em situações de violência e no trabalho com as vítimas da violência, as igrejas devem planejar, implementar e acompanhar os processos de gerenciamento de conflito, e promover métodos não-violentos de resolução de conflitos. Os esforços empreendedores das igrejas para construir a paz envolvem trabalho em conjunto com outras crenças, organizações e movimentos da sociedade civil.

Valores e práticas culturais que propagam ou encorajam a violência devem ser rejeitados, e aqueles que podem contribuir na construção de pontes e da paz devem ser encorajados. A tolerância e as atitudes que honram as diferenças culturais num espírito de respeito mútuo devem ser cultivadas.

Conclamamos todos/as a encontrar maneiras de resistir à cultura imperial que invade nosso mundo através da mídia, propagando consumismo, individualismo, culto aos que são jovens, ricos e fortes, e tolera a violência como meio de resolver problemas. Esta cultura está em franca contradição com os valores cristãos de amor, inclusão, comunidade e construção da paz.


HIV/Aids -
A igreja vive com HIV/Aids; há muita gente vivendo com HIV/Aids em nosso meio. Precisamos romper a cultura do silêncio que negligencia esta dolorosa realidade no corpo de Cristo. Crenças culturais, práticas e tradições devem ser desafiadas sempre que levarem à propagação do HIV/Aids. Existe uma interatividade dinâmica entre HIV/AIDS, pobreza e violência. Isto inclui a violência estrutural e a desigualdade de gênero.

Ao invés de praticar abordagens moralistas ou aterradoras, a igreja precisa agir pastoralmente, com aceitação irrestrita daqueles/as afetados/as pelo HIV/Aids. Precisamos sair de nossas “zonas de segurança” para acompanhar os/as afligidos/as, através de iniciativas que constantemente assegurem e promovam seus direitos e sua auto-estima.

A defesa de políticas públicas desempenha um papel importante na luta contra o HIV/Aids quando, por exemplo, desafia o custo e o acesso aos medicamentos produzidos por grandes companhias. Ao fazer isso, devemos trabalhar em parceria com outras igrejas e organizações, tais como a Aliança Ecumênica de Advocacia.

Há que se prestar especial atenção e sensibilidade à maneira como as mulheres, os jovens e as crianças são afetados pelo HIV/Aids, e a todos os meios de transmissão, à promoção de modos efetivos de prevenção (abstinência, fidelidade, uso de preservativos, agulhas esterilizadas, provisão de sangue não-infectado) e a como se discutir sexualidade e ética sexual em todas as faixas etárias.


Algumas implicações para o modo de exercermos Diaconia

Como agente de transformação, cura e reconciliação, a igreja precisa engajar-se junto a pessoas marginalizadas, como os que vivem com HIV/AIDS, na pobreza ou são vítimas da violência. A nossa abordagem deve caracterizar-se pela compaixão, reciprocidade e um profundo desejo de entender e dar continuidade às lutas daqueles/as que buscam justiça. Cristo é a fonte da esperança da igreja por vida abundante para todos/as, mas as estruturas e as práticas podem às vezes impedir que esta esperança se realize. Casos assim clamam por mudança.

Estruturas -
A fim de nos tornarmos agentes da diaconia profética efetivos e dignos de crédito, todos os níveis da igreja precisam avaliar regularmente suas estruturas internas e os modelos governamentais em nome da transparência e da responsabilidade. As Igrejas-membro e seus ministérios diaconais devem estruturar diaconia de maneira que esta seja efetiva, visível e digna de credibilidade. A mútua prestação de contas é absolutamente necessária entre as sedes das igrejas e as organizações diaconais. As igrejas devem reforçar a capacidade dos ministérios diaconais especializados para trabalhar em áreas onde não exista uma Igreja-membro. Alianças diaconais internacionais devem criar fóruns onde as organizações de diferentes expressões da diaconia possam partilhar opiniões, melhores práticas e prioridades, criando uma sinergia para o ministério diaconal.

Líderes -
Liderança em todos os níveis é essencial. E sobretudo líderes que proporcionem a capacitação de todos/as os/as cristãos/ãs para assumirem o seu chamado ao serviço. Os/as profissionais não deveriam usar seus conhecimentos especializados para tratar os/as que estão servindo como recipientes passivos ou clientes. As igrejas devem iniciar e reforçar a educação para a diaconia. Como um ministério, diaconia deve estar totalmente integrada na respectiva igreja e os seus ministros ordenados, consagrados e remunerados. É uma forma de refletir o significado essencial da diaconia na Igreja.

Na maioria das comunidades locais, são muito mais as mulheres do que os homens que têm respondido ao chamado por engajamento no trabalho diaconal. É necessário prestar atenção para como a diaconia está sendo apropriada pelas mulheres, e para como mais homens e mulheres juntos podem ser encorajados a ser mais participantes na diaconia.

Parcerias -
Ainda que a diaconia tenha fundamentos explicitamente cristãos, também temos que reconhecer que Deus está agindo em toda a criação e não somente através da igreja. Construir alianças estratégicas é crucial. Temos que trabalhar ecumenicamente com outros parceiros, pessoas de outras crenças, organizações governamentais e intergovernamentais (como a ONU), e com outras organizações da sociedade civil, visando especialmente apoio, encorajamento e defesa dos mais fracos. Entre os parceiros significativos da sociedade civil estão as organizações de base na comunidade, as organizações confessionais e outros movimentos populares. As igrejas devem reconhecer esses parceiros em potencial e, sempre que for apropriado e exeqüível, trabalhar com estes por resultados mais efetivos.

O estabelecimento de relações de cooperação mais complexas das igrejas com governos, especialmente no que se refere ao trabalho diaconal, requer um exame criterioso. Em alguns países, muito trabalho diaconal da igreja é financiado com fundos governamentais. Em outros países, os governos ou não são capazes ou não estão aptos a prover as necessidades e direitos básicos de seu povo, e acabam esperando que as igrejas e outras organizações preencham esta lacuna. Além disso, em alguns contextos seculares ou de diversidade de crenças, o governo pode acabar discriminando ou mesmo opondo-se abertamente ao trabalho diaconal das igrejas. Há que se dar atenção ainda à diminuição dos recursos e do poder dos governos, especialmente aqueles influenciados pela globalização econômica neoliberal.
No que se refere aos governos, as igrejas precisam funcionar como consciência, desafiando os corruptos e insistindo para que os governos levem a cabo a responsabilidade que lhes foi dada por Deus para que provenham as necessidades básicas assim como os direitos políticos, econômicos, sociais e culturais de seus povos. As igrejas precisam tornar-se mais ativamente envolvidas no desafio, mudança e elaboração de políticas públicas dirigidas a estes fins. Ao mesmo tempo, as igrejas devem manter uma distância crítica do governo, para que não acabe sendo cooptada.

Em parceria com as suas organizações diaconais nacionais e internacionais, as igrejas devem se tornar melhores defensoras daqueles/as que vivem na pobreza, miséria e opressão. O futuro depende da formação de redes de apoio com e entre aqueles/as afetados/as pela pobreza, violência e HIV/AIDS, e de se organizar a defesa de causas em níveis nacionais e internacionais, inclusive através de nossas conexões como comunhão de igrejas. As igrejas devem levantar a sua voz pública com mais bravura pela defesa de mecanismos globais capazes de proteger os direitos sociais, econômicos, culturais e políticos das pessoas vulneráveis em todas as sociedades. Ao mesmo tempo, as igrejas precisam continuar apoiando as comunidades pobres e as pessoas marginalizadas com todos os seus recursos disponíveis e habilidade profissional apropriada.

Convidamos vocês a unirem-se a nós nestes compromissos e esforços!

Federação Luterana Mundial

Fonte - FLD

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