Terra – a matéria prima dos humanos

05/09/2007

Terra – a matéria prima dos humanos


Leio o desenvolvimento humano como uma história de distanciamento, de alienação dos humanos de sua matéria prima – a terra. Nessa história, homens e mulheres alcançaram conquistas tecnológicas impressionantes. No entanto, a terra e o seu ciclo e ritmo natural de vida perderam em importância”, avaliou o coordenador adjunto do Conselho de Missão entre Índios (Comin), Hans Trein, durante a realização do seminário Terra, um tema candente/urgente na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), em agosto de 2007. Trein lembrou que o solo foi reduzido a um meio de produção, um recurso material comercializável, deixando de ter uma conotação de ser vivo.

“Se compararmos a nossa visão de mundo ocidental com as visões de mundo indígenas, vamos constatar concepções opostas: nós ocidentais falamos em natureza, os indígenas falam de mãe-terra; nós ocidentais consideramos o domínio da natureza como marco de desenvolvimento ao passo que povos indígenas consideram sua integração no todo da criação como marco de desenvolvimento”, avaliou o coordenador adjunto do Comin.

Parece que quanto mais as sociedades se desenvolveram de suas origens tribais na direção de modernas sociedades de estado, tanto mais elas se distanciaram de sua ligação com a terra. “Um exemplo disso é que nos países desenvolvidos há cada vez menos agricultores – fator quase alçado ao status de critério para medir desenvolvimento”, lembrou Trein. Na política de desenvolvimento, por muitos anos, falou-se da contraposição de países agrários a países industrializados, para distinguir entre países subdesenvolvidos e países desenvolvidos. Na Alemanha, com 81 milhões de habitantes, menos de 400 mil lutam para sobreviver na agricultura. No Brasil, com 190 milhões, entrementes ainda se considera menos de 12% de população rural como índice de subdesenvolvimento, enquanto na costa brasileira vão se multiplicando as grandes metrópoles.

Trein lembrou que em nossa Bíblia conservamos dois relatos da criação. Um deles espelha de muitos povos indígenas. Por exemplo, para os aborígenes australianos a terra consiste no pó dos antepassados. Para eles não existe morte, apenas transformação. O corpo humano se torna novamente terra, para servir de nutrição para as plantas que, por sua vez, possibilitam a respiração a outros seres vivos ou vira porco do mato para servir de alimento para netos e bisnetos. À semelhança de povos indígenas de outros continentes, eles se auto-denominam “os verdadeiros humanos” para distinguir-se de nós outros ocidentais a quem denominam de “os humanos modificados”.

O que todos eles crêem coincide conceitualmente com o segundo relato bíblico da criação, no qual Deus forma um boneco de terra, para em seguida insuflar-lhe o sopro da vida. A terra do boneco não é qualquer tipo de solo. É adamah, terra agricultável, terra de plantio. Adão é o terráqueo, feito de adamah, aqueles 12 a 15 cm de solo fértil e vivo. Os humanos, portanto, são partes dessa camada de humus animadas pelo sopro de Deus.

Assim, Adam tem uma relação imediata com a adamah. Para permanecer humano, essa relação não pode ser perturbada e muito menos interrompida. O vínculo com o sopro de Deus lhe atribui a função de elo de ligação entre Deus e terra. Aliás, em geral, esquecemos que também os animais são formados da mesma adamah (Gênesis 2,19). Isso explica, porque nas cosmovisões indígenas há trocas muito naturais entre humanos e animais, e que eles entendem os animais apenas como corporificações diversas da essência humana.

O vínculo de terra e sopro divino constitui a humanidade. Quando Deus busca de volta o sopro de vida concedido, o boneco de barro volta a ser terra. “Terra à terra, cinza a cinza, pó ao pó. Da terra foste formado, à terra tornarás”... Tanto me parece belo quanto consolador, estar integrado no ciclo da vida dessa forma, estando animado pelo sopro divino.

Esse vínculo inseparável também ficou conservado em algumas línguas: os humanos são feitos de humus. A pessoa humana é um pedaço de humus contendo o sopro divino. Quando os humanos se distanciam e alienam da terra, esse vínculo sagrado é destruído. Matar uma pessoa humana significa machucar a terra. Ferir a terra significa matar pessoas humanas. O humus grita por causa da morte de Abel e abre sua boca para absorver o seu sangue (Gn 4.10s). O humus é tão sagrado como a vida humana. Somente nesse vínculo sagrado é pensável haver um futuro sustentável.

O outro relato da criação é atribuído a autores sacerdotais. Originou-se nos círculos favoráveis à monarquia na área urbana. Nela falta completamente a ligação entre a pessoa humana e a terra. São sublinhados a imagem e semelhança a Deus e o domínio sobre animais e plantas. Nenhuma palavra sobre Adão ou adamah. Enquanto o relato tribal encerra, encarregando os humanos de cultivar e guardar a criação na qual foram integrados, esse relato estatal fala de dominar e sujeitar. Trata a pessoa humana como um ser destacado da criação restante, trata-o exclusivamente como sujeito e agente, trata o restante da criação como objeto, caracteriza a relação entre humanos e restante da criação como uma relação assimétrica, desigual.

Os verbos hebraicos que descrevem o domínio dos humanos sobre o restante da criação têm significados de graves conseqüências. No original significam “pisotear, pisar com os pés (como quando se pisa uvas para o vinho), subjugar um país através de guerra, violentar sexualmente, submeter à escravidão”. Será que toda a cultura e ciência ocidental deixaram guiar-se por esse relato da criação, deixando o outro para trás, como um romantismo agrícola anacrônico? Seguramente isso não teria sido possível, sem a correspondente legitimação teológica e eclesiástica.

“Penso que não é acaso termos conservado a tradição de dois relatos da criação. Num podemos ver o nosso domínio sobre a terra como que num espelho. No outro somos lembrados de nossa ligação com a terra”, confirmou Trein. “O conceito de domínio foi amplamente aplicado e resultou no que estamos vendo e vivenciando. Trouxe progresso tecnológico e o sentimento de que os humanos na verdade são os verdadeiros deuses e criadores (Salmo 8 “... fizeste o ser humano inferior somente a ti mesmo e lhe deste a glória e a honra de um rei...” v. 5 na BLH)). Não é um acaso isolado que Deus foi declarado morto no auge do modernismo europeu.”

“Diante de todas as mazelas ambientais e da violência na terra, é hora de nos inspirarmos e de nos dedicarmos ao relato da criação que fala dos humanos criados a partir do humus, emprestando os olhos dos povos indígenas e buscando analogias em seus mitos para compreendê-lo ainda melhor”, enfatizou Trein. A terra é herança da humanidade, como o é a luz do sol, o ar e a água. Se não trabalharmos contra a longa mercantilização da terra, daqui a pouco teremos que pagar pela água, pelo ar e pela luz do sol.” Estaria em boa hora de a IECLB voltar a dedicar-se intensivamente ao tema da terra.

Todo o pedaço de terra é sagrado para o nosso Deus. Juntos com os animais, nós somos pedaços de humus animados pelo sopro divino. Será utopia almejar que se possa tirar a terra do conjunto de bens que o deus-mercado quer manter como mercadoria?
9/2007
 

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