Leitura Bíblica Básica: Deuteronômio 30.15-20
Outras Leituras: Lucas 14, 25-33 e Carta a Filemon
Autor: Hans Alfred Trein
Data da pregação: 05.09.2010
Data Litúrgica: 15º Domingo da Trindade
(Dia da Oferta Nacional para a Missão entre Indígenas da IECLB)
Texto:
Cara Comunidade:
“Vê que proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o mal” (v.15). Que proposta! Quem de nós aqui nesse domingo de culto não diria imediatamente: escolho a vida e o bem, é claro! Ninguém seria tão louco ou demente a ponto de dizer: eu prefiro a morte e o mal.
Só que as coisas não são assim tão evidentes. O bem e o mal não são assim tão claramente separáveis. Não é assim que um é luz e o outro é trevas. Classificar entre branco e preto não corresponde à nossa experiência no dia-a-dia. Muito antes, nós percebemos que bem e mal vêm entrelaçados, o joio e o trigo crescem juntos, mesmo que queiramos fazer o bem, acabamos fazendo o mal. Um bem exagerado pode resultar em mal. De boas intenções o inferno está cheio! Quem é pai e mãe tem muitas histórias para contar sobre isso quando se trata da educação dos filhos. Quem está diante de escolher uma profissão também terá dúvidas: há profissões que promovem o bem e outras que fazem crescer o mal? Em lugar de preto e branco a vida se nos apresenta em diferentes tons de cinza e ainda em grande diversidade de tons coloridos. São raras as oportunidades, onde bem e mal são claramente distintos. Essa escolha não é apenas uma escolha religiosa, é uma opção de vida ou morte.
O texto-base para a prédica de hoje nos transporta para mil e duzentos anos antes de Cristo. O povo de Israel encontra-se no final de uma etapa: libertara-se da escravidão no Egito e, liderado por Moisés, terminava uma peregrinação de 40 anos pelo deserto. Deus tinha escolhido esse povo pequeno e sofrido, para ser uma luz para as nações, para viver de um modo exemplar uma sociedade mais justa. Uma geração inteira foi necessária para que os israelitas esquecessem e desistissem da sociedade dividida entre senhores e escravos e estivessem abertos para organizar uma sociedade mais justa. Deus oportunizou conhecimento de seu projeto, dos seus mandamentos e juízos. Agora, o povo de Israel encontra-se diante de uma nova etapa, está por entrar na terra prometida, iniciar essa sociedade mais justa que deve servir de luz para as nações. A escolha é para a vida e o bem ou para a morte e o mal. E Deus fica torcendo para que o povo escolha a vida e ainda faz uma promessa: se o povo escolher o projeto de Deus, ele se tornará grande e receberá muitas bênçãos na terra que passará a possuir. Mais tarde, os profetas lembrarão várias vezes o povo e os seus reis de que é o próprio Deus que garante a permanência na terra, se eles obedecerem aos seus mandamentos e juízos: “... então Deus vos fará habitar na terra que deu a vossos pais...”. Caso contrário, a conseqüência será a morte e o mal.
Cara comunidade, isso foi há mais de três mil anos atrás. E o que nós, hoje, temos a ver com isso?
Eu quero pensar com vocês a proposta de Deus para o nosso tempo, como proposta não apenas para o povo de Israel, mas para toda a humanidade, tendo o planeta como a “terra em que Deus fará a humanidade habitar e viver, se nos integrarmos em seu projeto de vida”. A terra é a nossa casa, em grego, o nosso óikos. Dessa palavra grega vem a oikonomia/economia, a oikologia/ecologia, a oikumene/ecumene. Todas essas ciências e esses âmbitos estão relacionados à nossa casa, à terra que habitamos como humanidade.
Integrar-se no projeto de Deus não é uma decisão fácil. Implica em renúncia a muitas coisas e até a si mesmo. No evangelho lido, Jesus lembra que quem quiser seguí-lo, não pode ligar demais para os laços familiares, certamente vai enfrentar sofrimentos e tem que fazer cálculos como quem quer construir ou como quem vai pra guerra. Tem que saber em que está se metendo e avaliar se tem “café no bule” para ir até o fim. Na epístola a Filemon, Paulo apóstolo mostra o alcance que uma decisão pelo projeto de Deus pode ter: pode mexer fundo em estruturas e instituições que a gente supõe serem imutáveis. Naquela época era a escravidão, hoje, podem ser outros mecanismos que ainda promovem a exploração da terra e das pessoas implicando em violência e opressão, em mal e morte.
A humanidade, hoje, se encontra diante de novos desafios. De um lado continua a velha divisão em várias nações. Os países, em especial seus Estados e governos, continuam em disputas e guerras pelo poder e pela posição de mando no mundo. De outro lado, o planeta tornou-se comparável a uma vila. É possível locomover-se rapidamente de um lugar para outro e, sobretudo, as comunicações oportunizam uma quantidade e diversidade de informações quase em tempo real que a gente nem consegue mais acompanhar e absorver. É muito potencial, mas também é muito risco. Deus, hoje, nos propõe a vida e o bem, a morte e o mal.
Também nos encontramos no limiar de etapas. O desenvolvimento industrial colocou a humanidade numa etapa de produção e consumo de bens sem precedentes. A tecnologia facilitou a vida. Tudo tornou-se mais ágil, a locomoção é mais intensa, a comunicação mais rápida, o volume de informações imenso. A produção de massa tornou muitos bens de consumo mais acessíveis, os preços baixaram. O outro lado dessa moeda causa preocupação: o muito consumo resulta em devastação de florestas, em abuso de animais, em esgotamento das fontes de matéria prima e em muito lixo e poluição. A produção agrícola intensiva exaure e degrada os solos. A produção intensiva de carne, leite e ovos fere os direitos mais elementares dos animais. Estima-se que já passaram 60 bilhões de pessoas humanas pela terra dos quais 6.8 bilhões restam hoje. A pergunta fundamental é: será que a terra agüenta toda essa gente com essa nova demanda de consumo? Será que a terra consegue regenerar-se, de modo que sejam pelo menos mantidos os padrões atuais de vida para nossos filhos e netos?
Deus, hoje, nos propõe a vida e o bem, a morte e o mal. A degradação ambiental e climática no planeta nos confronta com o aquecimento global, tornados e enchentes, terremotos, deslizamentos, frio ou calor nunca dantes experimentados... Grandes são as polêmicas sobre o quanto disso é resultado da ação humana. Será que isso tudo são indícios de que o processo de morte e mal está em franco andamento? Muitos cientistas alertam que o ponto de reversão já foi ultrapassado, ou seja, que não tem mais volta. Afirmam também que assim como o planeta continuou sem os dinossauros ele também pode sobreviver sem a espécie humana. Essa também é a opinião do físico, Stephen Hawking que vê grandes perigos para a espécie humana: abandonar a terra nos próximos 100 anos ou tornar-se uma espécie extinta. Embora ninguém de nós tivesse escolhido isso, parece que somos herdeiros de uma escolha em andamento que não é o projeto de Deus.
O filósofo, Robert Junck, já nos anos 70 do século passado, comparou o planeta a um navio em alto mar. Nesse navio havia uma pequena primeira classe bem em cima, uma segunda classe um pouco maior no meio e uma populosa terceira classe nos porões do navio. Enquanto os da terceira classe lutavam para conseguir um lugar na segunda classe, e os da segunda classe brigavam para subir até a primeira classe, uma fenda no casco do navio ia aumentando consideravelmente, tornando o navio mais lento. O trágico é que os passageiros do navio estavam tão preocupados em subir de classe que ninguém queria ouvir falar daquela fenda aumentando e ameaçando levar o navio inteiro ao naufrágio. Quando a água já tomava os compartimentos de baixo do navio e as pessoas da terceira classe estavam se afogando, ainda havia gente lá de cima achando que bastaria trancar as escadarias da terceira classe com portas de ferro, não deixando os pobres subir e isso seria o suficiente para salvar o navio do naufrágio e mantê-lo navegando. Será que já chegamos nesse ponto hoje? Os pobres são os primeiros e mais atingidos pelos terremotos, enchentes, tornados, pela violência urbana e as drogas! Tanto no grande palco planetário como no palco da nossa cidade e vizinhança os sinais não são muito animadores.
Deus, hoje, nos propõe a vida e o bem, a morte e o mal. Deus continua torcendo para que escolhamos a vida e o bem. Como pessoas de fé cremos que Deus quer fazer a humanidade habitar esta terra. Para escolher o bem e a vida, hoje, é necessário um câmbio de mentalidade: não herdamos a terra de nossos antepassados, mas estamos tomando-a emprestada de nossos filhos e netos. É preciso renunciar à tendência de querer sempre mais, de voar cada vez mais alto, de ser sempre mais rápido em tudo. Os resultados dessa tendência começam a aparecer inequivocamente: o planeta e seus recursos limitados estão sendo consumidos rapidamente, as pessoas são acometidas de estresse, depressão, subnutrição e obesidade, as chamadas doenças da civilização (câncer, ataques cardíacos, diabetes). Numa oikonomia/economia que merece esse nome a gente tem que perguntar: vale a pena ter mais, estar mais alto, ser mais rápido, se a qualidade de vida é tão pior? Em algum momento da vida a gente chega naquele ponto de se perguntar: que sentido faz tudo isso?
“Bem viver” é o que uma assembléia de povos indígenas da Amazônia propõe como projeto de vida para o planeta. Nesse projeto “bem viver” não se persegue riquezas, mas apenas o necessário para bem viver. Quando o espírito é de suficiência, há na criação suficiente para todos. As diferenças entre êxitos e fracassos entre nós se pode administrar com o instrumento da reciprocidade e solidariedade. Se hoje não tive sorte na caça ou na pescaria e você teve, você reparte comigo. Numa outra vez, você terá falta e eu terei sorte e então repartirei contigo. Conhecemos esse espírito de suficiência e reciprocidade também dos nossos avós e bizavós no interior. No tempo em que ainda não havia geladeiras e freezers, a família que carneava um novilho ou porco, repartia os excedentes de carne com os vizinhos, recebendo o seu quinhão quando os outros vizinhos chegavam na vez de carnear. Um exemplo singelo de reciprocidade que promove a vida e a solidariedade comunitária. O advento do freezer não precisava ter acabado com esse bom costume promotor do bem e da vida.
O planeta todo é um ser vivo, é uma grande teia da vida. Se mexer numa ponta, mexe no todo. Se em nome de algum tipo de progresso a humanidade continuar matando animais e derrubando árvores para fazer a economia e o consumo crescerem, toda a teia da vida entrará em desequilíbrio. Sustentabilidade é uma condição para promover a vida e o bem. Em alternativa ao modo predatório, os povos indígenas propõem a reciprocidade com a natureza. É como diz o sacerdote Guarani, Félix Karaí: “Quase ninguém se apercebe que é necessário render respeito também às matas e às árvores... As árvores, que são seres dotados de alma, estão nos alertando com seus murmúrios de tristeza, que não devem ser cortadas”.
Jesus pregou esse projeto de Deus. Chamou-o de Reino de Deus. Nele não há espaço para senhores e escravos. O Reino de Deus não é para depois da morte, ele é o projeto de Deus para a humanidade e o mundo de agora. Jesus disse que esse Reino não está aqui ou ali, mas está no meio dos seus discípulos. Nós, na comunidade cristã, vivemos dessa promessa e queremos, hoje, escolher mais uma vez o bem e a vida. Vamos nos comprometer a revisar os valores de nossa vida e a buscar em comunidade formas de viver segundo os mandamentos e juízos desse projeto de vida de Deus.
Nós podemos fazer a nossa parte. Podemos resistir ao mais, mais alto, mais rápido. Podemos decidir conscientemente não acreditar na felicidade que a propaganda de consumo promete. Podemos nos decidir conscientemente por um estilo de vida mais simples. Contra a acumulação a gente aposta mais na solidariedade e reciprocidade, contra o muito ter, a gente aposta mais no ser, contra uma preocupação excessiva com o futuro, a gente aposta mais em viver com qualidade o momento, contra a escravização de quem quer que seja, a gente aposta na distribuição do trabalho de forma que ele não pese para ninguém, contra o viver para trabalhar, a gente aposta no trabalhar para viver, contra o individualismo, a gente aposta mais na comunidade. Um estilo de vida mais simples é consumir apenas o estritamente necessário em tempo, energia, alimentos, bens materiais, água.
Na oferta deste culto, temos a oportunidade de reforçar as culturas indígenas com sua proposta de reciprocidade e solidariedade. Sejamos generosos em investir nessa missão conjunta que temos em relação à vida e o bem.
Deus, hoje, nos propõe a vida e o bem, a morte e o mal. Deus está na torcida. Tenhamos vontade de escolher a vida e o bem. Que Deus nos ajude. Amém
Leia aqui a Motivação para a oferta.
Leia aqui a Carta às irmãs e aos irmãos não-índios, para todas as gerações, sobre a mudança climática