Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação - significado e alcance

01/12/2000

Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação - significado e alcance

Huberto Kirchheim 

Que dizer dessa fusão da IECLB com a Igreja Católica...?

Perguntas semelhantes a essa foram levantadas quando a imprensa divulgou a assinatura da Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. O evento, que teve grande repercussão, aconteceu no dia 31 de outubro de 1999. Justamente no Dia da Reforma, representantes do Vaticano e da Federação Luterana Mundial assinaram este documento na cidade histórica de Augsburgo, Alemanha. Foi um dos acontecimentos ecumênicos mais importantes das últimas décadas do século XX e, por isso, com toda razão, celebrado no mais alto nível.

É justo que se pergunte pelo significado e pelas consequências práticas deste acontecimento. Pensar em fusão de igrejas seria superestimá-lo. Mas também não devemos menosprezar o potencial ecumênico nele contido. Vejamos algumas implicações.

1 — Na Declaração Conjunta, as igrejas afirmam que concordam sobre verdades básicas da doutrina da justificação. Oficialmente declaram que as condenações mútuas do tempo da Reforma já não se aplicam à doutrina das parceiras de hoje. Este consenso doutrinário foi alcançado após 30 anos de diálogos teológicos a respeito daquela questão que havia causado a ruptura, em 1530, em Augsburgo.

2 — Questões de fé e de igreja, no tempo da Reforma, estavam intimamente ligadas a questões sociais e políticas. Por isso, a divergência na questão bíblica essencial havia causado não só o rompimento entre a Igreja Católica e os adeptos da Reforma, mas também uma série de danos colaterais dolorosos na sociedade, no relacionamento das famílias e dos povos. Os danos foram tão profundos que somente agora, quase cinco séculos depois, começamos a reverter esse quadro.

3 — O diálogo ao longo dos anos e a conclusão na Declaração Conjunta certamente contribuem para a cura das memórias. Criou-se um novo clima, sem rancores, para uma caminhada mais fraterna, que valoriza o evangelho que temos em comum, deixando de lado a polêmica em torno de interpretações e tradições que nos separaram. A Declaração Conjunta está comprometida com a busca de maior unidade, sim, mas não prevê união de estruturas. O consenso é parcial, pois outras questões de doutrina, como a autoridade do Papa, a teologia dos ministérios, dos sacramentos, da mariologia e a vida eclesial com suas práticas de religiosidade popular continuam abertas. Mas foi muito importante esclarecer a questão básica.

4 —A justificação por graça e fé está no cerne do evangelho, e como tal é boa-nova sempre válida, também para hoje. O significado maior está no âmbito espiritual, na fé. Mas é do âmbito espiritual que provêm as motivações e a força para reformas concretas na vida prática, na igreja, na sociedade e na convivência em geral. A mensagem da graça é um recado muito importante para a sociedade tão competitiva em que hoje vivemos e somos obrigados a correr e concorrer. Essa sociedade que dá tanto valor ao ter em detrimento do ser e que, idolatrando os valores materiais, perde os referenciais morais e humanos. A mensagem da justificação somente pela fé na graça de Deus atende ao profundo anseio de ser acolhido, compreendido e amado, independe-mente das obras da lei, isto é, dos méritos, da capacidade de produção e da posse de valores materiais e morais. Por amor de Cristo, Deus nos aceita incondicionalmente. Assim o expressa a Declaração: Confessamos juntos que o ser humano, no concernente à sua salvação, depende completamente da graça salvadora de Deus (DC 19).

5 — Portanto, importa desarmar os espíritos e abandonar velhos preconceitos. A Igreja Católica não ensina que somos salvos por boas obras, indulgências, romarias, santos, etc. Mas concorda com a verdade básica do evangelho de que somente somos salvos pela graça, pelo amor e pela misericórdia de Deus, reveladas em Jesus Cristo. A Declaração Conjunta também não permite que continuemos com o preconceito de que para as igrejas luteranas as boas obras sejam irrelevantes. Verdade é que Lutero, ao condenar em sua época os esforços humanos para a auto-salvação, ensinou que com as mais nobres intenções estamos sujeitos ao pecado. Por isso, apontou tão enfaticamente para Cristo, para o Deus que realiza a obra de total salvação sem antes nos cobrar algo. Mas agora, com o destaque que os católicos dão às obras, a Declaração Conjunta nos pode ajudar a compreender que uma vida de fé amparada pela graça de Deus deve produzir frutos, isto é, sinais de gratidão pela justificação recebida.

6 — O secretário-geral da Federação Luterana Mundial, Ishmael Noko, se referiu à Declaração Conjunta como a um documento de paz. Pois se católicos e luteranos dizem que concordam nos aspectos fundamentais do evangelho, não há mais motivo para discriminações e guerras que assolaram a Europa e de lá foram exportadas para todo o mundo. Este capítulo está encerrado. Como irmãs e irmãos em Cristo podemos conviver e trabalhar juntos em causas comuns. Esta base espiritual para uma cultura de paz é muito necessária e urgente para a humanidade. A Organização das Nações Unidas vai promover o período de 2001 a 2010 como a Década Internacional para a Cultura de Paz e Não-Violência para as Crianças no Mundo. O Conselho Mundial de Igrejas, por sua vez, proclama a Década Ecumênica para Superar a Violência. Vamos, todos juntos, empenhar-nos pela paz!

7 — Assim, a Declaração Conjunta tem uma mensagem muito importante para a sociedade moderna, construída sobre a competição, a concorrência e a guerra no mercado global, que deixam para trás os pequenos e fracos. Aos olhos de Deus cada pessoa é valiosa, acolhida por amor de Cristo. Essa doutrina tem consequências éticas e sociais ali onde a lei do mais forte está deixando cada vez mais pessoas e grupos marginalizados e excluídos do bem-estar.

8 — De modo geral, assim como no exterior, a assinatura da Declaração Conjunta foi celebrada em várias cidades e comunidades também aqui no Brasil. Percebeu-se um novo clima de fraternidade e cooperação. Ela deu novo impulso ao diálogo bilateral católico-luterano. A comissão responsável, composta por teólogos da IECLB e, representantes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, já organizou dois seminários de estudo. No primeiro seminário, realizado em novembro de 1996, a própria Declaração Conjunta foi debatida e avaliada positivamente. O segundo seminário (dezembro de 1998) tratou da Hospitalidade Eucarística, ou seja da participação mútua na Santa Ceia, respectivamente na Eucaristia, em ocasiões especiais. O resultado e as recomendações estão contidas na declaração Hospitalidade Eucarística, divulgada em ambas as igrejas, e as palestras do seminário também foram publicadas (EDIPUCRS 2000). Um terceiro seminário, sobre o tema O Ministério na Igreja, aconteceu em 7 e 8 de setembro de 2000, em São Leopoldo, RS.

9 — Portanto, as diferenças teológicas e eclesiais não são niveladas levianamente, mas já não são entendidas como motivo para condenações mútuas. Os assuntos mais críticos para o diálogo futuro estão contidos na própria Declaração. Uma comissão de diálogo da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica continua trabalhando nas questões teológicas, mas também indica áreas para a cooperação prática. Pois urge partir de declarações comuns para ações comuns, avançando passo a passo tanto em questões teológicas como práticas. Não podemos esperar por consensos em todas as questões, para então cooperar. Da cooperação prática, do ensaio da convivência comunitária e ecumênica nas bases, devem partir impulsos para os estudos teológicos.

10 — Os diálogos e os resultados alcançados na Declaração Conjunta ajudaram-nos a conhecer melhor nossa própria posição teológica e nossa identidade. Dessa maneira, a comunhão das igrejas luteranas no mundo foi fortalecida. Mas a Declaração Conjunta não interessa apenas a católicos e luteranos. Como doutrina bíblica, a justificação por graça e fé pertence a todas as igrejas. Ela, por isso, pode servir de base para outras igrejas e seus contatos ecumênicos. Pois neste documento está definido um núcleo central, comum e inalienável de toda fé cristã. Em torno desse núcleo podem acontecer outros diálogos ecumênicos e propostas de cooperação prática. Manter diálogo ecumênico não significa que um dos parceiros tenha que render-se ao outro. O bom ecumenismo converge para um só Senhor: Jesus Cristo. Perante o mundo, os cristãos de qualquer maneira são vistos como sendo da mesma família de fé. Espera-se que dessa comunhão de fé surjam sinais de unidade e de solidariedade das igrejas para com o mundo amado por Deus.

Como um dos vice-presidentes da Federação Luterana Mundial tive a incumbência e o privilégio de também assinar a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação. A participação nas celebrações em Augsburgo sempre será um ponto alto, inesquecível, na minha biografia. E espero que cada vez mais pessoas possam confirmar comigo o que assinei: Damos graças ao Senhor por este passo decisivo rumo à superação da divisão da Igreja. Rogamos ao Espírito Santo que nos conduza adiante para aquela unidade visível que é a vontade de Cristo (DC 44).


O autor é Pastor Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e Vice-Presidente da Federação Luterana Mundial, e reside em Porto Alegre, RS


LEIA MAIS:

Doutrina da Justificação Por graça e fé Declaração Conjunta Católica Romana—Evangélica Luterana CEBI / EDIPUCRS — Porto Alegre — 1998

Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação Declaração Conjunta Católica Romana e Federação Luterana Mundial. 2ª. edição CONIC / PAULINAS / EDITORA SINODAL São Paulo — 1999


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Autor(a): Huberto Kirchheim
Âmbito: IECLB
Área: Ecumene / Organismo: Igreja Católica Apostólica Romana - ICAR
Título da publicação: Anuário Evangélico - 2001 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 2000
Natureza do Texto: Artigo
ID: 32972
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