De Luder a Lutero - Uma biografia

22/08/2014

Elaborar a biografia do reformador Martim Lutero, sendo brasileiro e residindo no hemisfério sul do planeta, pode parecer um empreendimento um tanto temerário. Você está longe das grandes bibliotecas e dos grandes centros de pesquisa da história do século XVI. É verdade que, no século XXI, há a possibilidade de conectar-se via rede mundial de computadores e em poucos instantes ter acesso a bibliotecas e a centros de pesquisa. Por outro lado, faltam o contato direto, o cheiro dos arquivos, a proximidade geográfica com locais e localidades, sentir geografia, relevos, depressões, vale de rios, lagos. Por isso o que vai descrito e escrito nas páginas que seguem é uma tentativa de introduzir o leitor não europeu em contextos, cheiros, seres humanos distantes dos surenhos.

Quem escreve, e principalmente o historiador que escreve e que não pode negar que também é teólogo e, mais especificamente, luterano, deve confessar que se aproxima da tarefa com preconceitos, com conceitos prévios, com os quais estará lutando ao longo de todo o seu texto. Nasci e cresci em família luterana, descendendo de teólogos luteranos, de professores, de artesãos, de camponeses, sempre luteranos. Fui formado em seminário menor luterano e em faculdade de teologia luterana, fiz pós-graduação, orientado por luterano, lecionei em centro de formação luterano. Cedo ouvi falar de Lutero, pois dele recebera o primeiro de meus prenomes, pois nascera em 10 de novembro, data do nascimento do reformador. Ter e reconhecer preconceitos, porém, auxilia o historiador a buscar imparcialidade na parcialidade. É o que pretendemos.

Quando li a biografia escrita por Heiko A. Oberman, Luther: Mensch zwischen Gott und Teufel (Lutero: Pessoa entre Deus e o Diabo), tomei conhecimento da grafia “Luder” para o sobrenome do estudante que se matriculara para estudo na Universidade de Erfurt. Em meu dialeto legado por imigrantes alemães que se estabeleceram no Rio Grande do Sul a partir de 1824, “Luder” podia designar, em sua forma mais amena, o “vagabundo”, mas também a pessoa de conduta altamente reprovável. Foi a partir desse meu pano de fundo linguístico que comecei a ler Lutero de forma mais intensa e a procurar entender existencialmente o que significara para ele a descoberta do Deus crucificado, principalmente depois de encontrar em Bartolomé de las Casas a afirmação de que aquilo que os espanhóis estavam fazendo em relação aos indígenas era pior do que a heresia dos luteranos, pois esses não negariam o Deus crucificado. De fato, na busca por um Deus misericordioso, Lutero percebeu no Cristo crucificado o rosto de Deus voltado para o ser humano e para a criação. Não há outra forma de reconhecermos quem e como é Deus a não ser naquilo que Deus nos mostrou, revelou a seu respeito, ao contrário do que ele é na ignomínia, no escândalo, na morte dolorosa e injusta do Cristo crucificado. Deus tem o rosto do crucificado. O Cristo crucificado é o rosto de Deus voltado para o ser humano e para a criação, que clamam e gemem por redenção. Não reconhecer Deus na cruz e no sofrimento é não saber nada do evangelho. Saber desse Deus é poder olhar para onde ele olha, para baixo, e ver o que ele vê: sofrimento, morte, ignomínia, cruz e libertar quem se encontra nessa situação através de sua solidariedade, demonstrada e evidenciada na manhã da Páscoa. Páscoa é o não de Deus a sofrimento, morte, ignomínia, expressos no Cristo crucificado, e seu sim incondicional à vida como ela se manifesta em vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré. Essa descoberta significou para Lutero liberdade, libertação de seus temores e angústias. Na Epístola de São Paulo aos Gálatas, verificou que liberdade, libertação é ELEUTHERIA, no grego utilizado por Paulo. No final do Debate de Heidelberg, onde expôs sua Theologia Crucis, o falar do Deus crucificado, escreveu carta a amigo e assinou-a como Martinus Eleutherius, Martim Liberto pelo evangelho do Deus crucificado. Daí em diante, o “th” da Eleutheria passou a substituir o “d” de seu sobrenome, que paulatinamente foi se transformando em programa. A descoberta da diferença do “d” e do “th” foi para nós de profunda importância nos conturbados anos da década de 1970 na América Latina. Contextos determinam nossa leitura da história.

“D” e “th” acompanham nossa exposição da vida e da obra de Lutero. Por causa dessas letras não podíamos ficar na exposição da vida do jovem Lutero, como fizeram muitas biografias a ele dedicadas. Em muitos sentidos, o “velho” Lutero volta a ser “Luder”, perdendo o ímpeto contido no “th” de “Luther”. O “velho” Lutero é paradigmático para quem está vivo, pois nos ensina a verificar que, enquanto seres humanos, somos contraditórios. Um de seus contemporâneos, Martin Bucer, expressou essa contraditoriedade em Lutero ao afirmar que foi assim que Deus no-lo concedeu. Ao expressá-lo, Bucer compreendeu o que Lutero percebera ao redescobrir a centralidade do Deus crucificado: só conseguimos viver de fato quando descobrimos que Deus nos aceita assim como somos, gratuitamente por causa, propter, de Cristo. Também ele, no fundo, não passou de um pecador agraciado.

Em nosso texto, optamos por não trabalhar com notas de rodapé repletas de referências. Sempre que possível, as citações seguem a tradução de obras de Lutero, como publicadas nos 12 volumes de Martinho Lutero, Obras Selecionadas, editados até aqui pelas Editoras Concórdia e Sinodal. Quando isso não foi possível, traduzimos as passagens como reproduzidas na Edição de Weimar das obras completas de Lutero. Outras fontes utilizadas estão listadas no final do texto, onde o leitor também encontrará referências bibliográficas complementares. Sabemos que o texto a seguir não traz novidades para especialistas. Que eles nos perdoem. Aos demais desejamos que possam mergulhar na História.

Martin N. Dreher


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