No início da década de 60, o movimento jovem, que sempre faz parte das forças renovadoras da Igreja, tinha nas Escolas de Líderes, realizadas na Fundação Evangélica, em Hamburgo Velho, sob a liderança do Professor Ernest Sarlet, importante fonte de reflexão. Foi numa dessas escolas de líderes que tive a oportunidade de vê-lo e ouví-lo pela primeira vez. Estava com 55 anos, seu físico dava-nos a impressão de ser um tipo ascético. Quando nos foi apresentado, conhecemo-lo como Pastor-Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e tambem como professor de Teologia Prática na então Faculdade de Teologia. Veio falar-nos sobre a responsabilidade do jovem em sua Igreja e, principalmente, como cristão na sociedade. O tema nos era muito caro e vital: fazíamos parte da geração de descendentes de luteranos imigrantes que após a 2ª. Guerra Mundial queriam mais do que nunca ser brasileiros e engajar-se (palavra muito importante na época) na vida político do país. Não tenho condições de reproduzir suas palavras. Sinto, porém, até hoje sua presença e a impressão de sua personalidade: falava de forma pausada, calma, num baixo prof undo. Enquanto falou, no auditório lotado, poder-se-ia ter ouvido o som do alfinete caindo. Cativou a todos. Do que falou, um detalhe se fixou: no centro de sua reflexão estava Jesus, Deus que desceu, se encarnou, se solidarizou com o ser humano e colocou a descoberto todas as situações injustas, nas quais espera que atuemos como seus colaboradores: Vocês não estão sozinhos; não estão entregues a si mesmos ou a poderes desconhecidos; são dele e pertencem ao reino daquele, ao qual foi dado todo o poder no céu e na terra, também o poder sobre vocês e sobre as vossas vidas. No que falava estava expressa experiência de vida.
Formação Teológica
Ernesto Theophilo Schlieper nasceu a 30 de maio de 1909, em Taquara, no Rio Grande do Sul. Era filho e neto de pastores. Devido à morte prematura do pai, não vislumbrava possibilidade de vir a estudar. For insistência do Pastor Hermann Dohms, porém, foi para Cachoeira do Sul, onde Dohms fundara, em 1921, o Proseminário Evangélico. As experiências feitas nesta escola mudaram o rumo de sua vida. Na autobiografia que escreveu, quando da conclusão de seus estudos teológicos, descreveu qual foi a mudança que experimentou: Para ele abria-se mundo novo, principalmente pelo estudo das línguas antigas. Sob a influência de Dohms, descobriu que estava ligado aos demais brasileiros pela pátria comum, mas que vinha de tradição cultural própria que deveria ser preservada. Aos poucos, foi amadurecendo a decisão de estudar teologia.
Diz ele mesmo a esse respeito: Eu estava disposto a me tornar pastor. Contudo, hoje os motivos para a decisão de então de modo algum me parecem ser consistentes. O que me motivou foi tao-somente o interesse pela germanidade. Eu queria tornar-me pastor porque cria que nessa profissão poderia vir a atuar da melhor maneira em favor da preservação da germanidade no Brasil. Parecia-me que a preservação da germanidade seria a tarefa principal da Igreja no Rio Grande do Sul.
Em 1927, Ernesto T. Schlieper partia para a Alemanha, onde estudaria Teologia. Não havia, então, a possibilidade de realizar tais estudos no Brasil. A Faculdade de Teologia da IECLB só iniciaria suas atividades após a 2ª. Guerra Mundial. Partiu, pensando em voltar pastor e que atuaria numa Igreja fechada sobre si mesma. Antes de ingressar nos estudos teológicos, teve que concluir seus estudos secundários em Gütersloh. Em 1929 foi para Marburgo, onde iniciou os estudos. Mas, como acontece com muitos estudantes de Teologia, distanciou-se da temática e pensou em largá-la. Fez, porém, mais uma tentativa, em 1931, quando se transferiu para a cidade de Bonn. Curioso, foi assistir às aulas do professor Karl Barth. Nelas verificou que ainda não descobrira o verdadeiro e específico objeto da teologia. Estava a estudar teologia para preservar a germanidade no Brasil; não estudava teologia por causa do objeto que, deixando de ser objeto, dirigia o individuo. Deus, que se revelara em Jesus Cristo, tinha que ser a razão do estudo teológico. A vocação foi levada a sério, mas também a missão da Igreja. O estudo em torno do Evangelho de Jesus Cristo não o abandonaria mais.
Quando concluiu seus estudos teológicos e prestou seu primeiro exame teológico já era outono na Alemanha, outono de 1933. O ano de 1933 teve conseqüências terríveis não só para a Alemanha, mas para todo o mundo. Preparou a morte e o assassinato de milhões de pessoas. Ele também trouxe conseqüências para a vida da Igreja como um todo. A Igreja, principalmente a evangélica, viu-se invadida por elementos que eram estranhos a sua doutrina. Jesus Cristo foi transformado em um ser ariano, negando-se suas origens judáicas. Muitos buscavam uma Igreja ariana. Judeus foram excluídos da Igreja. A Igreja não tinha missão divina, mas cultural em relação ao mundo. Deus passava a ser deus da raça ariana. Houve resistências e mediações. Schlieper colocou-se ao lado dos que resistiam e afirmavam: Jesus Cristo é a única palavra de Deus. Muitos cristãos nesta época perderam sua vida por causa deste testemunho (cf. Anuário Evangélico 1994,105-109).
Em meio às discussões, Schlieper foi enviado, em 1934, para atuar no Seminário da localidade de Ilsenburg, onde eram formados pastores especialmente para o Brasil e onde também estudavam jovens brasileiros. Sua atuação neste Seminário foi de curta duração, mas este Seminário seria fonte de renovação para a IECLB. Egressos deste Seminário trariam as discussões para o Brasil e auxiliariam na busca por reorientação para a Igreja em nosso país. O Estado nazista fecharia o Seminário, que continuaria suas atividades na ilegalidade. Um de seus estudantes, Edwin Wilm, nascido em Ibirubá/RS, amargaria na prisão, em Berlim. Schlieper, porém, afastou-se de Ilsenburg por razões de saúde. Manifestara-se tuberculose em seus olhos, levando-o a procurar por tratamento em Tübingen. Seu colega de estudos Pastor Wilhelm Hahn, mais tarde primeiro ministro de Baden-Würtemberg, descreveu-me este período como muito difícil, mas que pode ser superado com o auxilio de Deus. Ao terminar o tratamento, pediu que a direção paralela da Igreja Evangélica na Alemanha Ihe designasse campo de atuação, passando a ser pastor na Westfalia. Ali prestou seu segundo exame teológico. Estávamos no ano de 1936 e o segundo exame teológico punha fim ao período de formação na Alemanha.
Regresso ao Brasil
O retorno ao Brasil não foi fácil. Os posicionamentos assumidos na Alemanha haviam significado oposição ao poder dominante também na Igreja. Foi só após longas negociações e devido ao empenho de Hermann Dohms que Ernesto Schlieper pode retornar, não sem antes assumir o compromisso de não transferir para o Brasil as discussões que aconteciam na Alemanha. O compromisso foi assumido e cumprido, mas mantidas as posições teológicas assumidas. Com elas, teria papel importante no futuro de sua Igreja.
De volta ao Brasil, atuou como pastor em Montenegro e Candelária e, por algum tempo, no Instituto Pré-Teológico, em São Leopoldo. Em 1938, além de atuar em São Leopoldo, substituía o pároco do centro de Porto Alegre. Em janeiro do ano seguinte, 1939, passou a atuar como pastor da Igreja da Paz, no Bairro Navegantes em Porto Alegre, onde também Ihe foi confiada a administração da Escola da Paz. Em 1939 também aconteceria seu casamento com Irene Schumann. Do matrimonio nasceriam dois filhos. Em Porto Alegre, o casal experimentou os anos da 2ª. Guerra Mundial. O esposo elaborava principalmente sermões que, impressos, eram enviados aos pastores do Sínodo Riograndense e também para outros estados brasileiros. Professora de língua portuguesa, Irene retrabalhava os textos. Mais tarde corrigiria dicção e redação dos jovens pastores que colaboravam com seu esposo. Estes sermões mantiveram viva a Igreja de descendentes de imigrantes alemães que durante os anos da Guerra foi proibida de usar o idioma dos antepassados. Impressos em caderninhos pelo Centro de Impressos, hoje Editora Sinodal, os sermões apontam para o centro da fé cristã e o que realmente importa: Jesus Cristo.
Em meio à guerra começaram também as reflexões teológicas, com as quais se buscava a reorientação para a Igreja no Brasil. Não seria mais possível continuar a ser Igreja por causa da germanidade. Ernesto Schlieper teve aqui papel de destaque. Em 1946, aos 36 anos, foi eleito vice-presidente do Sínodo Riograndense e ocupou o cargo ate 1956. A influência que passou a exercer sobre seu professor Hermann Dohms se manifestaria em 1948, quando, em Ijuí, em retiro teológico, Schlieper e Dohms apresentaram as principais palestras. Dois anos mais tarde a convicção de ambos se expressou no Primeiro Concílio da Federação Sinodal no qual se reuniam sínodos luteranos para formar a IECLB: A Federação Sinodal é Igreja de Jesus Cristo no Brasil com todas as conseqüências que daí resultarem para a pregação do Evangelho neste país e a responsabilidade para a formação da vida política,, cultural e econômica de seu povo.
De Vice-presidente a Pastor-Presidente
Na Igreja que se formara em 1949, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foi eleito, em 1950, Vice-Presidente, cargo para o qual foi reeleito em 1954. Em meio a todas estas tarefas, lecionou, ainda, de 1946 a 1956, Novo Testamento na Faculdade de Teologia. Entrementes, a importância de sua reflexão teológica era reconhecida internacionalmente. Em 1º. de agosto de 1955, a Universidade de Heidelberg conferiu-lhe o grau de Doutor em Teologia, honoris causa. A situação do pós-guerra e a fome pela qual passava a Europa levaram-no a um profundo envolvimento ecumênico. Ao lado do padre jesuíta Balduíno Rambo, participou ativamente do SEF (Socorro a Europa Faminta).
No mês de outubro de 1956, Ernesto Schlieper e família deixavam Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, onde assumiria o pastorado. Nem dois meses depois Hermann Dohms falecia em São Leopoldo. Do Rio de Janeiro, sendo pastor da comunidade local, Schlieper teve que assumir a Presidência da IECLB. No Concílio Geral de 1958 foi confirmado no cargo, sendo reeleito em 1962 e 1968. Como presidente da IECLB deu destaque a comunhão entre os Sínodos. Os Sínodos que haviam formado a IECLB em 1949, deixaram de existir em 1968, dando origem a nova divisão territorial na Igreja: as Regiões Eclesiásticas. Quando esta nova divisão, que era expressão do crescimento de quatro igrejas, originalmente independentes, em direção a uma Igreja se concretizou, no Concílio de 1968, Ernesto Schlieper não pôde mais estar presente: o câncer minava seu corpo e suas fonas. Mesmo assim, foi reeleito Pastor-Presidente.
Em 1960, a família Schlieper veio residir em São Leopoldo. Além de ser Pastor-Presidente da IECLB, Ernesto Schlieper assumia as funções de Reitor da Faculdade de Teologia e de catedrático de Teologia Prática. Permaneceu nestas funções até 28 de fevereiro de 1966. Seus alunos têm gratas recordações do professor que Ihes servia de modelo de vida e de pregação. Quando encerrou suas atividades na Faculdade de
Teologia, uma Kombi VW azul transportou para prédio que havia sido construído na Rua Senhor dos Passos 202, em Porto Alegre, todo o acervo da Secretaria Geral da IECLB. Em Porto Alegre, Ernesto Schlieper poderia dedicar-se em tempo integral a Presidência da IECLB. Dali, e já anteriormente, atuou em inúmeras organizações cristãs no país e fora dele.
Data difícil de esquecer
Vi-o pela última vez em Nova Petrópolis/ RS. Já muito doente, estava sentado ao lado do esquife de um colega de ministério e orava. O dia de sua morte é difícil de ser esquecido: 31 de outubro de 1969, comemoravam-se os 452 anos da Reforma luterana. Não fui seu aluno e só pude ingressar no ministério público da IECLB em 1971. Nos poucos encontros, foi pai na fé. Vejo-o como pessoa que lutou por fé luterana, sem exclusivismo confessional, ecumênica, obediente ao Evangelho, que deve ser anunciado publicamente, tendo assim profundas implicações para a conformação da vida política, social e cultural de um povo, pois coloca-o sob a Palavra de Deus. Por causa desse coração de sua fé é pai na IECLB.
Martin Norberto Dreher
O autor e pastor da IECLB e professor
no Programa de Pós-Graduação em História
da UNISINOS, em São Leopoldo, RS
(Fonte: Anuário Evangélico 1999. Editora Sinodal, São Leopoldo/RS, p. 76-80