Ernesto Theophilo Schlieper, um pai da IECLB

01/01/1999

No início da década de 60, o movimento jovem, que sempre faz parte das forças renovadoras da Igreja, tinha nas Escolas de Líderes, realizadas na Fundação Evangélica, em Hamburgo Velho, sob a liderança do Professor Ernest Sarlet, importante fonte de reflexão. Foi numa dessas escolas de líderes que tive a oportunidade de vê-lo e ouví-lo pela primeira vez. Estava com 55 anos, seu físico dava-nos a impressão de ser um tipo ascético. Quando nos foi apresentado, conhecemo-lo como Pastor-Presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e tambem como professor de Teologia Prática na então Faculdade de Teologia. Veio falar-nos sobre a responsabilidade do jovem em sua Igreja e, principalmente, como cristão na sociedade. O tema nos era muito caro e vital: fazíamos parte da geração de descendentes de luteranos imigrantes que após a 2ª. Guerra Mundial queriam mais do que nunca ser brasileiros e engajar-se (palavra muito importante na época) na vida político do país. Não tenho condições de reproduzir suas palavras. Sinto, porém, até hoje sua presença e a impressão de sua personalidade: falava de forma pausada, calma, num baixo prof undo. Enquanto falou, no auditório lotado, poder-se-ia ter ouvido o som do alfinete caindo. Cativou a todos. Do que falou, um detalhe se fixou: no centro de sua reflexão estava Jesus, Deus que desceu, se encarnou, se solidarizou com o ser humano e colocou a descoberto todas as situações injustas, nas quais espera que atuemos como seus colaboradores: Vocês não estão sozinhos; não estão entregues a si mesmos ou a poderes desconhecidos; são dele e pertencem ao reino daquele, ao qual foi dado todo o poder no céu e na terra, também o poder sobre vocês e sobre as vossas vidas. No que falava estava expressa experiência de vida.

Formação Teológica

Ernesto Theophilo Schlieper nasceu a 30 de maio de 1909, em Taquara, no Rio Grande do Sul. Era filho e neto de pastores. Devido à morte prematura do pai, não vislumbrava possibilidade de vir a estudar. For insistência do Pastor Hermann Dohms, porém, foi para Cachoeira do Sul, onde Dohms fundara, em 1921, o Proseminário Evangélico. As experiências feitas nesta escola mudaram o rumo de sua vida. Na autobiografia que escreveu, quando da conclusão de seus estudos teológicos, descreveu qual foi a mudança que experimentou: Para ele abria-se mundo novo, principalmente pelo estudo das línguas antigas. Sob a influência de Dohms, descobriu que estava ligado aos demais brasileiros pela pátria comum, mas que vinha de tradição cultural própria que deveria ser preservada. Aos poucos, foi amadurecendo a decisão de estudar teologia.

Diz ele mesmo a esse respeito: Eu estava disposto a me tornar pastor. Contudo, hoje os motivos para a decisão de então de modo algum me parecem ser consistentes. O que me motivou foi tao-somente o interesse pela germanidade. Eu queria tornar-me pastor porque cria que nessa profissão poderia vir a atuar da melhor maneira em favor da preservação da germanidade no Brasil. Parecia-me que a preservação da germanidade seria a tarefa principal da Igreja no Rio Grande do Sul.

Em 1927, Ernesto T. Schlieper partia para a Alemanha, onde estudaria Teologia. Não havia, então, a possibilidade de realizar tais estudos no Brasil. A Faculdade de Teologia da IECLB só iniciaria suas atividades após a 2ª. Guerra Mundial. Partiu, pensando em voltar pastor e que atuaria numa Igreja fechada sobre si mesma. Antes de ingressar nos es­tudos teológicos, teve que concluir seus estudos secundários em Gütersloh. Em 1929 foi para Marburgo, onde iniciou os estudos. Mas, como acontece com muitos estudantes de Teologia, distanciou-se da temática e pensou em largá-la. Fez, porém, mais uma tentativa, em 1931, quando se transferiu para a cidade de Bonn. Curioso, foi assistir às aulas do professor Karl Barth. Nelas verificou que ainda não descobrira o verdadeiro e específico objeto da teologia. Estava a estudar teologia para preservar a germanidade no Brasil; não estudava teologia por causa do objeto que, deixando de ser objeto, dirigia o individuo. Deus, que se revelara em Jesus Cristo, tinha que ser a razão do estudo teológico. A vocação foi levada a sério, mas também a missão da Igreja. O estudo em torno do Evangelho de Jesus Cristo não o abandonaria mais.

Quando concluiu seus estudos teológicos e prestou seu primeiro exame teológico já era outono na Alemanha, outono de 1933. O ano de 1933 teve conseqüências terríveis não só para a Alemanha, mas para todo o mundo. Preparou a morte e o assassinato de milhões de pessoas. Ele também trouxe conseqüências para a vida da Igreja como um todo. A Igreja, principalmente a evangélica, viu-se invadida por elementos que eram estranhos a sua doutrina. Jesus Cristo foi transformado em um ser ariano, negando-se suas origens judáicas. Muitos buscavam uma Igreja ariana. Judeus foram excluídos da Igreja. A Igreja não tinha missão divina, mas cultural em relação ao mundo. Deus passava a ser deus da raça ariana. Houve resistências e mediações. Schlieper colocou-se ao lado dos que resistiam e afirmavam: Jesus Cristo é a única palavra de Deus. Muitos cristãos nesta época perderam sua vida por causa deste testemunho (cf. Anuário Evangélico 1994,105-109).

Em meio às discussões, Schlieper foi enviado, em 1934, para atuar no Seminário da localidade de Ilsenburg, onde eram formados pastores especialmente para o Brasil e onde também estudavam jovens brasileiros. Sua atuação neste Seminário foi de curta duração, mas este Seminário seria fonte de renovação para a IECLB. Egressos deste Seminário trariam as discussões para o Brasil e auxiliariam na busca por reorientação para a Igreja em nosso país. O Estado nazista fecharia o Seminário, que continuaria suas atividades na ilegalidade. Um de seus estudantes, Edwin Wilm, nascido em Ibirubá/RS, amargaria na prisão, em Berlim. Schlieper, porém, afastou-se de Ilsenburg por razões de saúde. Manifestara-se tuberculose em seus olhos, levando-o a procurar por tratamento em Tübingen. Seu colega de estudos Pastor Wilhelm Hahn, mais tarde primeiro ministro de Baden-Würtemberg, descreveu-me este período como muito difícil, mas que pode ser superado com o auxilio de Deus. Ao terminar o tratamento, pediu que a direção paralela da Igreja Evangélica na Alemanha Ihe designasse campo de atuação, passando a ser pastor na Westfalia. Ali prestou seu segundo exame teológico. Estávamos no ano de 1936 e o segundo exame teológico punha fim ao período de formação na Alemanha.

Regresso ao Brasil

O retorno ao Brasil não foi fácil. Os posicionamentos assumidos na Alemanha haviam significado oposição ao poder dominante também na Igreja. Foi só após longas negociações e devido ao empenho de Hermann Dohms que Ernesto Schlieper pode retornar, não sem antes assumir o compromisso de não transferir para o Brasil as discussões que aconteciam na Alemanha. O compromisso foi assumido e cumprido, mas mantidas as posições teológicas assumidas. Com elas, teria papel importante no futuro de sua Igreja.

De volta ao Brasil, atuou como pastor em Montenegro e Candelária e, por algum tempo, no Instituto Pré-Teológico, em São Leopoldo. Em 1938, além de atuar em São Leopoldo, substituía o pároco do centro de Porto Alegre. Em janeiro do ano seguinte, 1939, passou a atuar como pastor da Igreja da Paz, no Bairro Navegantes em Porto Alegre, onde também Ihe foi confiada a administração da Escola da Paz. Em 1939 também aconteceria seu casamento com Irene Schumann. Do matrimonio nasceriam dois filhos. Em Porto Alegre, o casal experimentou os anos da 2ª. Guerra Mundial. O esposo elaborava principalmente sermões que, impressos, eram enviados aos pastores do Sínodo Riograndense e também para outros estados brasileiros. Professora de língua portuguesa, Irene retrabalhava os textos. Mais tarde corrigiria dicção e redação dos jovens pastores que colaboravam com seu esposo. Estes sermões mantiveram viva a Igreja de descendentes de imigrantes alemães que durante os anos da Guerra foi proibida de usar o idioma dos antepassados. Impressos em caderninhos pelo Centro de Impressos, hoje Editora Sinodal, os sermões apontam para o centro da fé cristã e o que realmente importa: Jesus Cristo.

Em meio à guerra começaram também as reflexões teológicas, com as quais se buscava a reorientação para a Igreja no Brasil. Não seria mais possível continuar a ser Igreja por causa da germanidade. Ernesto Schlieper teve aqui papel de destaque. Em 1946, aos 36 anos, foi eleito vice-presidente do Sínodo Riograndense e ocupou o cargo ate 1956. A influência que passou a exercer sobre seu professor Hermann Dohms se manifestaria em 1948, quando, em Ijuí, em retiro teológico, Schlieper e Dohms apresentaram as principais palestras. Dois anos mais tarde a convicção de ambos se expressou no Primeiro Concílio da Federação Sinodal no qual se reuniam sínodos luteranos para formar a IECLB: A Federação Sinodal é Igreja de Jesus Cristo no Brasil com todas as conseqüências que daí resultarem para a pregação do Evangelho neste país e a responsabilidade para a formação da vida política,, cultural e econômica de seu povo.

De Vice-presidente a Pastor-Presidente

Na Igreja que se formara em 1949, Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foi eleito, em 1950, Vice-Presidente, cargo para o qual foi reeleito em 1954. Em meio a todas estas tarefas, lecionou, ainda, de 1946 a 1956, Novo Testamento na Faculdade de Teologia. Entrementes, a importância de sua reflexão teológica era reconhecida internacionalmente. Em 1º. de agosto de 1955, a Universidade de Heidelberg conferiu-lhe o grau de Doutor em Teologia, honoris causa. A situação do pós-guerra e a fome pela qual passava a Europa levaram-no a um profundo envolvimento ecumênico. Ao lado do padre jesuíta Balduíno Rambo, participou ativamente do SEF (Socorro a Europa Faminta).

No mês de outubro de 1956, Ernesto Schlieper e família deixavam Porto Alegre rumo ao Rio de Janeiro, onde assumiria o pastorado. Nem dois meses depois Hermann Dohms falecia em São Leopoldo. Do Rio de Janeiro, sendo pastor da comunidade local, Schlieper teve que assumir a Presidência da IECLB. No Concílio Geral de 1958 foi confirmado no cargo, sendo reeleito em 1962 e 1968. Como presidente da IECLB deu destaque a comunhão entre os Sínodos. Os Sínodos que haviam formado a IECLB em 1949, deixaram de existir em 1968, dando origem a nova divisão territorial na Igreja: as Regiões Eclesiásticas. Quando esta nova divisão, que era expressão do crescimento de quatro igrejas, originalmente independentes, em direção a uma Igreja se concretizou, no Concílio de 1968, Ernesto Schlieper não pôde mais estar presente: o câncer minava seu corpo e suas fonas. Mesmo assim, foi reeleito Pastor-Presidente.

Em 1960, a família Schlieper veio residir em São Leopoldo. Além de ser Pastor-Presidente da IECLB, Ernesto Schlieper assumia as funções de Reitor da Faculdade de Teologia e de catedrático de Teologia Prática. Permaneceu nestas funções até 28 de fevereiro de 1966. Seus alunos têm gratas recordações do professor que Ihes servia de modelo de vida e de pregação. Quando encerrou suas atividades na Faculdade de

Teologia, uma Kombi VW azul transportou para prédio que havia sido construído na Rua Senhor dos Passos 202, em Porto Alegre, todo o acervo da Secretaria Geral da IECLB. Em Porto Alegre, Ernesto Schlieper poderia dedicar-se em tempo integral a Presidência da IECLB. Dali, e já anteriormente, atuou em inúmeras organizações cristãs no país e fora dele.

Data difícil de esquecer

Vi-o pela última vez em Nova Petrópolis/ RS. Já muito doente, estava sentado ao lado do esquife de um colega de ministério e orava. O dia de sua morte é difícil de ser esquecido: 31 de outubro de 1969, comemoravam-se os 452 anos da Reforma luterana. Não fui seu aluno e só pude ingressar no ministério público da IECLB em 1971. Nos poucos encontros, foi pai na fé. Vejo-o como pessoa que lutou por fé luterana, sem exclusivismo confessional, ecumênica, obediente ao Evangelho, que deve ser anunciado publicamente, tendo assim profundas implicações para a conformação da vida política, social e cultural de um povo, pois coloca-o sob a Palavra de Deus. Por causa desse coração de sua fé é pai na IECLB.

Martin Norberto Dreher

O autor e pastor da IECLB e professor

no Programa de Pós-Graduação em História
da UNISINOS, em São Leopoldo, RS
(Fonte: Anuário Evangélico 1999. Editora Sinodal, São Leopoldo/RS, p. 76-80


Autor(a): Martin Norberto Dreher
Âmbito: IECLB
Área: História
Área: História / Nível: 200 Anos de Presença Luterana no Brasil / Organismo: Arquivo histórico da IECLB
Natureza da memória: Testemunhas - pessoas
Natureza do Texto: Artigo
Século: 20
ID: 11573
HISTÓRIA
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ECUMENE
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Um cristão é um ser alegre, mesmo que passe pelo maior desgosto, pois o seu coração se alegra em Deus.
Martim Lutero
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