A doutrina da justificação por graça e fé em Martim Lutero

Declaração conjunta Católica Romana-Evangélica Luterana - Porto Alegre - 1998

14/11/1996

A doutrina da justificação por graça e fé em Martim Lutero

Pastor Dr. ilfredo B. Dalferth* 

O artigo da Justificação por Graça e Fé é, segundo Lutero, o artigo pelo qual a Igreja fica de pé ou cai: (...) guia isto articulo stante stat Ecclesia, ruente ruit Ecclesia1. Se este artigo está de pé, a Igreja está de pé; se este artigo cai, cai a Igreja. Este artigo é o centro da Cristologia e, como tal, a summa da Teologia Cristã. 

Sem o artigo da Justificação por Graça e Fé, segundo Lutero, continuamos sendo uma sociedade religiosa com símbolos e elementos da religiosidade cristã, mas a rigor não se trata mais da Igreja de Cristo, porque perdeu o centro do Evangelho e da correta compreensão da ação de Deus em nós e da fé em Jesus Cristo2

Percebemos igualmente que em Lutero a Justificação por Graça e Fé é o artigo central da Teologia e, como tal, é o critério que perpassa toda a Teologia e julga todos os outros artigos: 

Articulus iustificationis est magister et princeps, dominus, rector et iudex super omnia genera doctrinarunn, qui conservat et gubeimat omnem doctrinam ecclesiasticam et erigit conscientiam nostram coram Deo.3 

Lutero desenvolveu a Teologia a partir deste único centro. Neste artigo Lutero afirma a graça do nosso Deus misericordioso que vem ao nosso encontro. É um artigo teológico que fala de Deus e de como este Deus nos justifica e nos presenteia com a fé. Não se trata, pois, de um entre outros artigos, mas do artigo central que perpassa todos os outros4

Lutero usa o termo iustificare como o-ser-declarado-justo do ser humano por Deus. Não que a pessoa seja justa, mas está no movimento e no processo em direção à justiça, para então ser justificada plenamente. Na Ressurreição a justificação alcança a perfeição5

Para definirmos a Justificação por Graça e Fé é preciso partir da visão de Deus em Lutero. É um só Deus, que ao mesmo tempo se revelou (deus revelatus) e permanece um mistério (deus absconditus). Lutero fala de Deus no binômio graça e ira. Quando Lutero fala da Justificação por Graça, fala do deus revelatus. Deus em sua graça nos dá a fé. Da graça de Deus vem a fé! Lutero fala da fé como um donum, uma dádiva, um presente. A este nível Lutero não contrapõe fé e boas obras, mas fé e incredulidade (Glaube und Unglaube)6

A fé vem da graça de Deus e é fundamentalmente a confiança nesta graça divina que nos justifica, apesar da situação do pecado (radical).

A mudança fundamental no relacionamento do ser humano com relação a Deus, que Lutero chama de justificação, não acontece no sentido de que o ser humano se torne algo que ele não é, mas somente no sentido de que ele reconheça como verdade o que é (pecador) e o que não é (justo) e assim dê a honra a Deus.7 

Lutero contrapõe a uma compreensão radical de pecado uma com-preensão radical de justificação. O NT e Lutero têm plena consciência de que o conceito justificação se situa na terminologia judicial. Só que, ao contrário da justificação no direito civil como processo de livrar-se da culpa comprovando a inocência e a conseqüente não-penalização, trata-se justamente do reconhecimento da culpa8

O pecado tem um caráter universal e absoluto, caso contrário Cristo, assim Lutero, teria morrido desnecessariamente. A humanidade não está mais livre como no estado original, mas sob o domínio do pecado. A liberdade depois da Queda não é mais liberdade. Como diz de forma contundente na tese 13 da Disputação de Heidelberg, os seres humanos somente têm liberdade para pecar: Liberum arbitrium post peccatum res est de solo titulo, et dum facit quod in se est, peccat mortaliter.9

Todo o mal é consequência da incredulidade na Palavra de Deus. A fé e a incredulidade definem o que é e o que não é pecado. Na fé não existe pecado. Na incredulidade existe pecado. Quem tem fé, no entanto, não pode agir diferente do que fazer o bem.

Não podemos dizer que Lutero tinha uma antropologia e uma conseqüente sociologia negativas a partir do seu conceito de pecado. Não podemos perder de vista a distinção que Lutero faz entre o relacionamento com Deus (coram deo) e o relacionamento com a sociedade (coram mundo). Com a Queda, a humanidade perdeu a similitudo (ou imago) privata. Com a Queda, porém, a humanidade conservou ainda a similitudo publica que se manifesta principalmente através da consciência na creaturalidade. Por isto o ser humano é capaz de ter grandes virtudes e, como pessoa, agir com benevolência, mesmo que não tenha fé. Trata-se aqui do bem a partir da perspectiva da sociedade. Não se trata, porém, ainda do relacionamento com Deus. 

A partir da sociedade o bem e mal são o critério de atuação. A partir da pessoa, porém, não é o bem e o mal que são o critério, mas a fé. As boas obras podem ser realizadas tanto por cristãos como por não-cristãos. Por isto as obras têm o seu lugar no relacionamento com o próximo, na sociedade e nas suas instituições políticas. 

Resumindo, da perspectiva do relacionamento com Deus, a fé é o critério. Da perspectiva do relacionamento com o próximo, a eficiência das obras é o critério. O bem-estar do próximo se torna critério para minha ação eficiente. A partir deste ponto de vista cristãos e não-cristãos devem agir do mesmo modo, isto é, em benefício do próximo. Por um lado, a justificação já aconteceu a partir da obra redentora de Cristo. 

Por outro lado, ela é um processo de divinização dos cristãos, pela graça de Deus, na dádiva da fé, da qual fluem o amor e as boas obras. A obra redentora de Deus em Cristo nos justifica radicalmente. Toda vivência de fé dos justificados por graça e fé é a atualização desta certeza dada por Deus para a nossa vida. Neste sentido, para Lutero, a Justificação por Graça e Fé é o início e o fim da vida cristã. 

Finalizando, a Justificação por Graça e Fé alcança a perfeição na ressurreição. A partir da Justificação por Graça e Fé estamos, segundo Lutero, em um processo de divinização, isto é, a graça de Deus e a dádiva da fé nos justificam e nos tornam, por fim, semelhantes a Deus. Lutero fala que seremos gleychformig (semelhantes) com Deus ou homo deiformis' .

Notas:

* Pastor da IECLB em Santa Cruz do Sul/RS. 

1 WA 40/III, 352,3. 

2 Cf. Paul ALTHAUS, Die Theologie Martin Luthers, Gütersloh, 1983, p. 196. 

3 WA 39/1, 205,2-5. 

4 Cf. Bemhard LOHSE, Luthers Teologie in ihrer historischen Entwicklung und in ihrem systematischen Zusammenhang, Göttingen, p. 275.

5 Bernhard LOHSE, op. cit., p. 276 (notas 303 e 304). 

6 Silfredo B. DALFERTH, Die Zweireichelehre Martin Luthers im Dialog mit der Befreiunstheologie Leonardo Boffs, Frankfurt am Main, 1996, p. 134. 

7 Mathies KOEGER, Rechtfertigung und Gesetz, p. 49. 

8 Cf. WA 41, 324,13ss. 

9 WA 1,354,5s. Cf. Silfredo B. DALFERTH, op. cit., p. 120ss. 

10 Cf. Simo PEURA, Mehr als ein Mensch?: Die Vergöttlichung als Thema der Theologie Martin Luthers von 1513 bis 1519, Heilsinki, 1990, p. 137ss,

Veja:

Doutrina da Justificação por Graça e Fé

Apresentação — Pastor Huberto Kirchheim

Apresentação — Dom Ivo Lorscheiter

Declaração conjunta sobre a doutrina da justificação

Declaração conjunta da Federação Luterana Mundial e da Igreja Católica Romana sobre a doutrina da justificação — Dom Aloísio  Lorscheider

Doutrina da justificação — no limiar de um acordo ecumênico? - Pastor Dr. Gottfried Brakemeier

A doutrina da justificação por graça e fé em Martim Lutero - Pastor Dr. Silfredo B. Dalferth

A Comissão Mista Nacional Católico-Luterana — Pastor Bertholdo Weber

Seminário Teológico Luterano-Católico sobre a Declaração Conjunta sobre a Doutrina da Justificação — Parecer — Pastor Huberto Kirchheim e Dom Ivo Lorscheiter

Estudos bíblicos sobre o tema igreja e justificação - Prefácio

Estudo 1 - Justificação e Igreja

Estudo 2 - Jesus Cristo como único fundamento da Igreja

Estudo 3 - A Igreja do Deus Triúno

Estudo 4 - A Igreja como recebedora e mediadora da salvação

Estudo 5 - A missão e comunhão da Igreja


Autor(a): Silfredo Bernardo Dalferth
Âmbito: IECLB / Organismo: Igreja Católica Apostólica Romana - ICAR
Título da publicação: Doutrina da Justificação por Graça e Fé / Editora: EDIPUCRS e CEBI / Ano: 1998
Natureza do Texto: Artigo
ID: 20503
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