Uma conferência bastante única
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Professor da Lutheran School of Theology, de Chicago (EUA), autor de livros, artigos e capítulos de livros em diferentes lugares do mundo, Vitor Westhelle coordenou a equipe de sistematização do Seminário de Liturgia, Arte e Urbanidade, tarefa sobre a qual falou ao repórter Antonio Carlos Ribeiro:
ACR – Quais são as principais linhas da sistematização do Seminário Liturgia Arte e Urbanidade, que você está elaborando?
VW – Esse seminário foi bastante feliz na organização da temática, conseguindo ser ao mesmo tempo bastante abrangente na discussão da problemática da liturgia no contexto da urbanidade e também na sua interface com a arte. Conseguiu ser específico, mas bastante abrangente, nas questões que agora são relevantes na discussão contemporânea sobre liturgia.
ACR – Quais são as contribuições para as comunidades, as Igrejas e os que fazem liturgia?
VW – Tem duas contribuições fundamentais. Uma delas é o exercício, pela maneira como o seminário serviu de oficina para a produção mesma e não somente para a teorização das possibilidades litúrgicas, mas a capacidade de já produzir texto, arte, música, poesia. Todas essas áreas já ofereceram uma oportunidade com o exercício próprio do fazer teológico. Então houve uma unidade entre teoria e práxis que foi bastante surpreendente. O segundo aspecto é aquilo que seria menos surpreendente, que é parte de qualquer conferência, a discussão mais teórica, ocupação nossa de todas as manhãs, nas quais tivemos ricas palestras sobre diversas dimensões das três áreas que estão trialogando aqui, a urbanidade, a arte e a liturgia. A integração dessas duas dimensões me pareceu ser o ponto mais relevante dessa conferência, que a fez bastante única nessa capacidade de fazer essa inter-relação orgânica entre teoria e práxis.
ACR – Na Missa Urbana, do pastor Anders Lindow, há petições que refletem ambientes urbanos: que as ruas estejam iluminadas, que o trânsito esteja seguro, que as pessoas sejam guardadas nos trens. Somos uma Igreja de tradição rural, por razões históricas, e a tradição urbana dá seus primeiros passos. O seminário pode dar contribuições para a Igrejas como a IECLB?
VW – Certamente é um dos seminários de que eu tenho conhecimento que mais se achegou a oferecer uma contribuição, um desafio, uma projeção da Igreja para dentro da realidade urbana. É interessante que isso acontece no âmbito da liturgia, que nesse momento passa por uma redefinição bastante radical, que tem a ver com a transição da sociedade brasileira também. Em 1960 66% da população estava na área rural e hoje as estimativas são de que no máximo 23-24% estejam lá. Estamos falando de 30 e poucos anos, uma mudança total na sociedade brasileira quanto à sua demografia na relação campo-cidade. E essa brutal transformação ainda não se refletiu dentro de várias igrejas, e particularmente na Igreja Luterana, que ainda tem sua membresia por volta de 50% dentro da área rural. Essa discussão da liturgia coloca a Igreja diante da necessidade de refazer a sua linguagem, porque quando a gente está falando em liturgia está falando da maneira como a Igreja publicamente oferece os parâmetros da linguagem que a definem, que oferecem a sua própria identidade, muito mais do que a constituição ou as políticas eclesiais ou a própria teologia, é na liturgia que a cara pública da Igreja, do seu próprio auto-entendimento se projeta. Então a busca por uma liturgia na cidade é precisamente a busca por se auto-redefinir, se redescobrir como uma Igreja que agora está estupefata ante essa tremenda realidade urbana na cidade brasileira, com todos os seus problemas e com todos os seus desafios.
ACR – A questão da linguagem não mexe só com o fazer teológico e comunitário, cotidiano ou dominical, mas também com a produção dos sentidos. E parece que essa relação campo-cidade deixa um débito em relação à situação urbana. Há um débito em como as igrejas produzem sentido em ambientes urbanos. Que expectativas se pode ter a partir desse seminário para o enfrentamento dessa situação?
VW – A gente precisa colocar um olhar de suspeita sobre aquilo que são alguns pressupostos não revelados ou não conscientes dentro do projeto. E um deles é a linguagem litúrgica como formadora de sentido da Igreja na formação da relação Deus-mundo. Porque a liturgia tenta formular para Igreja como se entende, ritualizar. Formular é ritualizar. Que isto seria simplesmente um caminho desbloqueado para se reencontrar uma imagem. A questão é um pouco mais complicada enquanto que a liturgia ao mesmo tempo oferece isso e por isso a sua necessidade e sua importância, mas ela é sempre uma formação de compromisso. Toda linguagem é sempre uma formação de compromisso, é uma maneira da gente se encontrar no mundo, mas também de se proteger desse mundo. É uma maneira, enquanto se fala de liturgia como uma linguagem específica, de se encontrar nesse mundo e em relação a Deus, mas também se proteger na relação desse mundo, frente a esse mundo e na relação com Deus. E essa que é a complicação de fazer essa transição, porque quem conseguiu fazer essa transição dentro da sociedade brasileira o fez com uma liturgia ao máximo minimalista, que são as igrejas que realmente explodiram na região urbana, que evitam, ou que passam de lado da maioria das contrições clássicas e tradicionais da própria liturgia e oferecem uma experiência de imediaticidade. O movimento carismático e as Igrejas pentecostais têm tido bastante sucesso, enquanto reduzem aquela necessidade de uma linguagem estabelecida quase ao mínimo, se reinventam, ou têm que ser reinventadas de uma forma muito dinâmica, permitindo que o sagrado realmente tenha suas epifanias quase que imediatamente dentro do contexto onde o povo vive. E assim também desaparece. Enquanto a liturgia não é somente uma tentativa de estabelecer um relacionamento entre Deus e o mundo, entre a pessoa humana e Deus, mas é também uma maneira de estabelecer e controlar, de criar mecanismos de poder até mesmo, que permitam a alguém navegar com uma certa confiança nesse território que é tão inusitado. E isso é o caracteriza as igrejas tradicionais, elas são um acesso, mas são também um véu nessa relação. Não existe facilidade, não existe um nível de conforto com uma intimidade com o sagrado, como outras expressões religiosas que são tipicamente citadinas oferecem.
ACR – Quer dizer que as igrejas tradicionais permanecem no dilema: não abrir mão das fórmulas clássicas e ao mesmo tempo atualizar isso em termos das imagens urbanas. Isso vai seguir sendo um dilema?
VW – Vai seguir sendo um dilema enquanto as cidades continuarem. E não há prognóstico de que isso vá mudar em nenhum futuro breve, enquanto cidades continuarem a ser aquilo que elas são e definidas da maneira como elas são. Essa violenta coletividade e essa brutal individualidade e isolamento das pessoas, essa fragmentação, mas ao mesmo tempo essa possibilidade de comunicação quase imediata com todas as coisas, essas características todas do período no qual nós vivemos, que se magnifica dentro da experiência da cidade mesma. Isso faz com que essa transposição para a cidade, de uma liturgia que nasceu, e se desenvolveu, e cresceu dentro de ambientes, ainda que citadinos, mas diferentes daquilo que é a cidade de hoje, onde a função mediadora na relação entre Deus e o homem era uma função que era vastamente controlável, administrável. As instituições sociais, as instituições políticas mais tarde, da sociedade civil e principalmente da instituição eclesial serviam como uma sustentação estável para essa mediação da relação entre Deus e o homem, que a teologia tenta guiar, que liturgia tenta verbalizar ou dar uma linguagem para ela. Aquilo que está acontecendo é uma busca por reintroduzir numa cidade que praticamente exilou do seu meio possibilidade de mediações estáveis, uma tentativa de introduzir essas mediações estáveis. Esse é um processo bastante inusitado e não creio que seja agora já o momento de fazer o julgamento sobre a possibilidade de isso acontecer ou não, já porque isso depende ou não de um número de outras variáveis que vão determinar ou o sucesso ou o fracasso do projeto, mas que projeto é esse, isso está claro e esse seminário foi certamente um ponto alto de expressão do desiderato desse projeto, de que esse projeto é realmente o que precisamos e aquilo que estamos buscando. A gente poderia perguntar para quê liturgia na cidade? Existe religião na cidade, mas nem toda religião é necessariamente litúrgica. Todas as experiências epifânicas são, por definição, não-litúgicas. Elas não se estabelecem, não se ordenam, nem têm um ordo como os liturgos usam o termo, elas simplesmente acontecem, são de caráter carismático, no sentido original do termo, elas sucedem num momento de graça, de manifestação espontânea. E a liturgia é por definição uma tentativa de administrar essa relação, não permitir que ela seja tão imprevisível e espontânea.
ACR – Como as igrejas podem enfrentar esse momento novo, entre aquele desinteresse pós-moderno de que falou Jaci Maraschin e o corpus, do qual não se abre mão em termos de tradição cristã e litúrgica?
VW – Regina Novaes levantou um ponto que ficou perdido nas discussões, no qual ela lembra que todas as grandes religiões, o cristianismo inclusive, é fruto de processos sincréticos. E a maneira como a gente define sincretismo é uma mescla de diferentes tradições religiosas, dentro de um contexto único. Mas existe também uma maneira diacrônica de definir: nós sempre estamos reapropriando hibridamente coisas que pertencem a contextos do passado, que não necessariamente são fruto daquilo que é o ethos da sociedade na qual vivemos, mas que por um motivo ou outro, atávicos ou vetustos como sejam, têm o seu próprio charme e são incorporados em toda a nossa realidade cultural. A gente sabe o valor de algumas antigüidades e a veneração que a gente tem com as coisas que pertencem a um passado, que não são necessariamente parte mas são incorporados para dentro da nossa existência. Na liturgia acontece uma coisa similar, um processo de hibridização de elementos do passado que são reintroduzidos, reformulados, redimensionados para dentro da situação presente. Essa é a tarefa. Não é uma questão de ou a gente mantém a fidelidade ao passado ou ao contexto, mas é de tentar olhar de dentro, de como o processo dinâmico de reapropriação de valores tipicamente tradicionais e até mesmo pré-modernos continuam a se reinstalar, relocalizar dentro de contextos completamente diferentes daqueles nos quais surgiram e recebem uma nova vida, se readaptam, quase que parasiticamente dentro de uma outra realidade.