Igreja e Sociedade



ID: 2797

Um único mundo. Mas qual mundo?

01/12/1997

Um único mundo. Mas qual mundo?

Luís Stephanou

¨A necessidade de um mercado em constante expansão para os seus produtos persegue a burguesia por todo o globo terrestre. Tem de fixar-se em toda a parte, estabelecer-se em toda a parte, criar ligações em toda a parte¨
Karl Marx, 1848

Uma das palavras do momento atende pelo nome de globalização (alguns preferem utilizar o termo mundialização). Nos jornais e revistas, se olharmos com atenção, perceberemos a presença constante desta palavra associada a artigos ou reportagens sob os mais variados temas.

Repetimos e sugerimos explicações baseadas neste termo, como se fosse um fenômeno recente ou algo que efetivamente pudesse explicar a complexidade do mundo em que vivemos.

No entanto, globalização é uma referência que está presente há muito tempo na história das relações sociais da humanidade. O que foi, por exemplo, o helenismo? Basicamente um processo de globalização da cultura grega a partir dos parâmetros geopolíticos e culturais da época. Este esforço de articular valores e conceitos desta civilização para outros povos e regiões acabou por constituir o que hoje denominamos ocidente. Isso há mais de 2.300 anos! Uma empresa como a Companhia das índias Orientais, de capital e constituição jurídica inglesa, com sua base produtiva situada no oriente (principalmente índia) e que vendia seus produtos para as colônias inglesas na América é, sem dúvida, uma empresa de alcance global. Foi fundada em 1600! O ciclo da produção de açúcar associado ao colonialismo (séc. XVI até XVIII), que retirava trabalho escravo da África, organizava a produção no Caribe e no Brasil, vendia o resultado e distribuía os lucros na Europa é outro exemplo de produção globalizada anterior ao capitalismo. A caravela não foi inventada ontem. Então, por que recentemente se tem falado tanto sobre globalização, se este fenômeno praticamente acompanha o desenvolvimento da história humana?

De certa forma o processo de globalização, a partir dos anos 70 em diante, adquiriu intensidade e contornos muito mais amplos do que nos períodos históricos anteriores. Estamos vivendo numa época onde a revolução tecnológica vem transformando rapidamente as dimensões do mundo e as relações que daí se estabelecem. Assim, falar em globalização hoje é perceber a estruturação de um processo que já existia mas, com sua dimensão realmente diferenciada, acaba assumindo ares de novidade. Não esquecendo a história, a globalização vem promovendo rupturas e colocando questões que passam a regular nossas vidas, numa escala planetária, não mais da forma como ocorria com nossos pais e mães.

Em que aspectos e de que maneira se desenvolve este processo de globalização? Podemos perceber pelo menos quatro frentes que, articuladas entre si, compõem este quadro: a globalização da produção/comercialização das mercadorias, os meios de locomoção, os meios de comunicação e a globalização financeira.

Globalização da produção e comércio internacional

As mudanças ocorridas nos meios de transporte e sobretudo a gradativa quebra das barreiras políticas nacionais tomam a internacionalização das atividades comerciais um fenômeno cada vez mais intenso e visível. Quem de nós, em nossa casa ou local de trabalho, não possui algum produto fabricado em outro país? Hoje uma mercadoria pode ser colocada em quase qualquer parte do mundo num período de três semanas. As facilidades de preço, racionalização e segurança que são encontradas na rede mundial de transportes tomam os produtos acessíveis e eliminam as desvantagens vinculadas às grandes distâncias. Compramos sapatos chineses, por exemplo, com melhores preços do que os fabricados no Brasil. Há livros brasileiros, de editoras brasileiras, sendo impressos em gráficas chilenas, chinesas ou italianas e recolocados no Brasil com preços mais vantajosos do que se fossem aqui impressos.

Mas não é somente a comercialização. A própria produção de mercadorias está sendo crescentemente globalizada. A descentralização de plantas industriais, a fragmentação na prestação de serviços e produção de acessórios ou complementos de determinados produtos e, principalmente, as mudanças no processo de produção (forma de organização do trabalho, desenhos e padrões técnicos mais unificados, métodos de elevar a produtividade...) são hoje elementos centrais nas atividades produtivas industriais e somente fazem sentido numa escala de produção/distribuição global. Se abrirmos um computador encontraremos peças produzidas em diversos países, muitas vezes de diferentes continentes.

As distâncias físicas pouco significam no processo de produção e distribuição das mercadorias.

Mudanças nos meios de transporte

Há pouco mais de um século o transpor-te de mercadorias era efetuado através de caravanas de animais (terrestre) ou barcos a vela (marítimo).

O surgimento das máquinas a vapor e, posteriormente, do motor de combustão permitiram uma profunda transformação tecnológica e de alcance nos meios de transporte.

Rapidez, segurança e possibilidade de transportar grande quantidade de produtos em somente uma operação possibilitaram uma brutal redução no preço de determinadas mercadorias. Além disso, viabilizaram a produção e comercialização de outras, e um alcance muito mais abrangente para produtos perecíveis ou sujeitos a mudanças de composição por fatores externos.

Os meios modernos de transporte também proporcionaram o surgimento do turismo como atividade econômica e a possibilidade de deslocamento temporário de grandes contingentes populacionais de um lugar para outro.

É impossível pensar em sociedade global sem considerarmos os meios de transporte como um elemento decisivo no processo.

Transformações nos meios de comunicação

Não foram somente as mercadorias e os seres humanos que passaram a circular rapidamente pelo planeta, criando uma sociedade globalizada. Talvez ainda mais importante seja a circulação mundial de imagens, conceitos, modas, ideias e representações que acabam forjando o que poderíamos, com propriedade, denominar globalização cultural. Pela primeira vez na história a informação atinge, num instante, praticamente todo o planeta. As notícias circulam pelo globo em segundos, e cadeias mundiais especializadas em tele-jornalismo, como a CNN por exemplo, exercem grande influência. É a materialização da famosa ¨aldeia global¨ (McLuhan).

Se pensarmos no avanço tecnológico e no alcance político dos meios de comunicação social, em especial as grandes redes de televisão, fica fácil perceber que eles marcam profundamente as relações sociais. No Brasil apenas nove grandes empresas controlam aproximadamente 90% de tudo o que se lê, escuta e vê em termos de comunicação. Esta concentração de poder na esfera da difusão de ideias (produtos culturais) é muito maior que a concentração de poder no mundo da produção.

O desenvolvimento de uma rede mundial de computadores — a Internet —, traz duas questões que estão relacionadas com o processo de globalização. Em primeiro lugar, ao contrário dos demais meios de comunicação, o uso do computador tende a organizar o fluxo de informações de forma menos unilateral. Possibilita ao usuário não apenas assimilar passivamente conteúdos produzidos por outros, mas também ser sujeito no processo, produzindo e divulgando suas ideias.

Em segundo lugar, esta rede mundial não está sob controle de ninguém. Ao contrário: a principal característica da Internet é o caos e a possibilidade de estabelecer conexões aleatórias, provisórias e dinâmicas.

É evidente que há limites: Quem tem condições materiais de interagir através de computadores? Outro limite, nada desprezível, é que as atividades do mundo da informática não conseguem (ainda bem) substituir o restante da vida real. Mesmo assim é inegável o potencial de experiências alternativas que se abrem com a popularização da micro-informática e da rede mundial de computadores.

Internacionalização financeira

Dinheiro não tem pátria ou país. Ele se estabelece onde as possibilidades de acumulação e lucro são melhores. Atualmente, além de não reconhecer fronteiras, não se deixa controlar pelos Estados nacionais. A mundialização dos sistemas de informação permite que os grandes conglomerados financeiros invistam ou retirem seus capitais de qualquer parte do mundo em poucos segundos. Os limites geográficos ou políticos foram completamente removidos. Economistas calculam que as transações financeiras envolvem cerca de 5 bilhões de dólares por dia e que o volume de moeda disponível na ciranda da especulação financeira é de pelo menos 3 trilhões de dólares. Os números, por si, já sublinham a importância da internacionalização financeira.

Assim, a globalização é este conjunto de aspectos que redimensiona as relações humanas numa escala mundial sem precedentes.

Que consequências podemos ver em todo este processo?

Na era do mercado mundial, verificamos o aumento da exclusão social e da devastação do meio ambiente. A hegemonia do pensamento e das formas de organização social de caráter neoliberal condicionam nossa existência para a idolatria da propriedade privada, da acumulação de capital e do lucro a qualquer preço. É o que poderíamos chamar de razão cínica, onde a vida humana vale muito pouco e os valores sociais solidários são considerados utópicos ou ultrapassados. A era global é sobretudo a era dos extremos; nunca a humanidade dispôs de conquistas tecnológicas tão avançadas e em nenhuma outra época as diferenças sociais estiveram tão acirradas.

No campo social os esforços globalizantes do grande capital vêm aumentando a precariedade dos indicadores sociais em todo mundo. Neste final de século, constatamos o recrudescimento de uma forma de trabalho típica em séculos anteriores: a escravidão. Nos Estados Unidos, para não citarmos algum país empobrecido, milhares de imigrantes asiáticos ou latino-americanos estão expostos a esta forma de trabalho. A exploração de crianças precocemente transformadas em trabalhadores é outro indicador cada vez mais presente. No Brasil, e não somos exceção, centenas de milhares de crianças com idades entre 10 a 14 anos ou menos, se encontram expostas a extensas jornadas de trabalho com mais de 10 horas diárias em condições de insalubridade, perigo de vida ou grande esforço físico (trabalho em minas, garimpos, transporte de cargas, canaviais, fábricas que exigem manipulação de produtos químicos, plantações com emprego de agrotóxicos...). A prostituição infantil, e até mesmo o tráfico internacional de órgãos humanos (conduzidos em suas embalagens originais ou não), também vem ganhando destaque nestes tempos de globalização.

As condições ambientais em nosso planeta nunca estiveram tão deterioradas. Problemas com a camada de ozônio; poluição no solo, água e ar; acúmulo de lixo comum, lixo atômico e até lixo espacial; desmatamento generalizado; extinção de animais e plantas e poluição sonora e visual nos grandes centros urbanos fazem parte do preço que todas as espécies de vida têm de pagar para sustentar um desenvolvimento desigual, que privilegia pouquíssimos.

Ao contrário do que poderíamos imaginar, os efeitos da globalização não ocorrem somente em regiões empobrecidas ou são detalhes que deram errado. São universais e se constituem como condição básica para o próprio desenvolvimento deste modelo econômico que só pode existir se for concentrador (de riqueza, poder, conhecimento, acesso à oportunidades...) e, em decorrência, excludente. Não cremos que este seja o único caminho de um processo de globalização. Este modelo não é a única possibilidade; não é obrigatório que a globalização seja predatória e promotora de injustiça.

Ao criticarmos a globalização, estamos nos referindo às políticas atualmente vigentes. Não devemos ser contrários à ideia de expandirmos nosso horizonte e nossa ação. O localismo e os regionalismos, quando assumidos em doses muito fortes, levam ao racismo e ao chauvinismo. E aí temos um retrocesso intolerável para qualquer perspectiva humanista.

A globalização que nós queremos está fundada na solidariedade consciente e ativa entre os povos, na busca fraterna de soluções para os graves problemas sociais do planeta e na ruptura com as forças que buscam aumentar a exclusão. O mundo necessita ser pensado a partir de outras premissas, outras vontades e outras formas de organização. É necessário inventar novas tecnologias, mas também novas formas — mais igualitárias — de distribuição das riquezas. Se quisermos pensar em globalização não é possível pensar no âmbito de países de primeiro mundo ou terceiro mundo; na acumulação de riquezas e na socialização da fome.

Não há outro tipo de globalização já construído que nos satisfaça. No entanto, talvez seja importante pensá-lo (e já ir fazendo-o) a partir do principal: a vontade de sermos solidários. Solidariedade pode se uma palavra vazia ou uma abstrata bandeira de luta. Mas também pode ser um referencial concreto como as Madres da Plaza de Mayo, a Anistia Internacional, os Médicos Sem Fronteiras, o Greenpeace, a Madre Tereza de Calcutá ou milhares de outras organizações, movimentos, grupos ou indivíduos engajados no esforço de construir um mundo diferente. Assim como você.


Luís Stephanou é sociólogo e assessor do Centro Ecumênico de Evangelização, Capacitação e Assessoria, em São Leopoldo, RS


Ver ìndice do Anuário Evangélico - 1998
 


Autor(a): Luís Stephanou
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Título da publicação: Anuário Evangélico - 1998 / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1997
Natureza do Texto: Artigo
ID: 33109

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