Igreja e Sociedade



ID: 2797

Teologia Luterana na América Latina

11/09/2015

Teologia Luterana na América Latina

Vítor Westhelle

Subscrição e Recepção

Quanto à teologia de Lutero na América Latina, há uma diferença marcante entre sua subscrição e sua recepção. A teologia de Lutero foi inicialmente subscrita por imigrantes via adoção do Pequeno Catecismo, utilizado como subsídio para a educação. A adoção mais sistemática da teologia de Lutero só ocorre com a tradução de textos selecionados do Reformador, em edições de vários volumes em Espanhol (Argentina) e Português (Brasil). Isso ocorreu apenas na segunda metade do século XX.1  No entanto, a recepção da teologia luterana começou cedo, com o uso de hinos divulgados com o trabalho de missionários de diversas denominações protestantes. Embora não se possa quantificar essa recepção, pode-se avaliar seus efeitos. Elementos da teologia de Lutero marcaram a teologia e a prática pastoral do continente, especialmente com o surgimento da Teologia da Libertação e a influência da teologia protestante sobre o desenvolvimento da mesma. Na década de 1960, o trabalho de dois teólogos, Juan Luis Segundo e Gustavo Gutierrez, marcam o início da Teologia da Libertação, com o desmantelamento da chamada teoria dos dois planos, dominante na teologia católica do continente. Esses dois planos seriam realidades sobrepostas, referentes ao material e espiritual, sem qualquer relação orgânica entre si. Então se introduziu o princípio protestante de entender a realidade como entidade única, mas com diferentes dimensões. Libertação tornou-se o conceito a ligar num todo a emancipação e a salvação, mas preservando a distinção de perspectivas ou dimensões: uma do mundo, outra, da fé em Deus. Isso tem conduzido a Teologia da Libertação ao longo do mesmo caminho aberto por Lutero, expresso de diversas maneiras, em sua teologia: como descoberta do Deus misericordioso, como a liberdade do cristão, como a partícula exclusiva (solus / sola) etc. Mas na recepção desse princípio nada foi mais importante na América Latina com seus problemas sociais do que sua expressão na luterana distinção dos dois regimes, a chamada doutrina dos dois reinos. Ela está no âmago da teologia de Lutero, daí sua importância, o que levou Gerhard Ebeling a afirmar que na doutrina dos dois reinos ... [se expressa] o problema fundamental da teologia.2  Essa doutrina deu expressão social ao princípio da Reforma e abriu seu caminho de modo a avançar e ser acolhida na teologia latino-americana. No entanto, embora essa recepção possa ser detectada, ela não equivale a uma assinatura, o que não causa surpresa, já que a maioria de seus autores é católica. Seria isto diferente entre os protestantes e, mais especificamente, entre os luteranos? A linguagem específica utilizada para formular o ensinamento sobre os dois reinos só aparece entre os luteranos do continente, palidamente, na década de 1970, em conexão com um estudo mundial lançado pela FLM.3   Enquanto conceito operacional ou doutrina, a distinção dos reinos aparece de forma indireta.

O pensamento de Lutero sobre os reinos não foi utilizado na América Latina explicitamente para justificar injustiças flagrantes; tampouco foi usado para condená-las, inicialmente.4   Isto é ainda mais revelador porque, no caso da Alemanha, Lutero foi efetivamente explorado politicamente. A ausência do uso de Lutero para justificar ou condenar as injustiças sócio-políticas não significa que os temas teológicos de Lutero não estivessem atuantes. Voltaremos a esses efeitos do pensamento central de Lutero depois de esclarecer algumas questões conceituais a respeito da distinção dos reinos.

Investigações terminológicas

A expressão doutrina dos dois reinos (Zwei-Reiche-Lehre) é uma criação do século XX. Seu uso em discussões contemporâneas remonta a um ensaio de Franz Lau publicado em 1933.5   O foco principal do argumento é a distinção entre a realidade espiritual (spiritualia) e as instituições terrenas, que seriam os carnalia. Estes últimos são expressão da lex naturae (lei natural), porém sujeitos a modificações de acordo com o jus positivum, o direito positivo, que se ajusta à evolução das circunstâncias: tempora mutant leges et mores (o tempo muda leis e costumes).6

Que teria levado a que essa doutrina fosse considerada elemento central na teologia luterana,7  quando sua história enquanto doutrina foi extremamente curta? É plausível que isto se deve à forma como foi enquadrada a relação entre graça e existência social. A maior parte da discussão sobre justificação e justiça desenrolou-se em paradigmas relativamente recentes, ou seja, do século XX, que delimitam os contornos de uma possível discussão. E estes foram definidos por sistemas e instituições que controlam e regulam a vida pública e assim ficaram confinados à marcante característica de instituições da modernidade: sua crise de legitimidade.8

A própria inconsistência terminológica de Lutero ao descrever a distinção entre realidades mundanas e espirituais torna as coisas bem mais complicadas. Em alemão, ele usa Reich (reino), mas também Regiment (governança). Em latim, usa apenas regnum. A especulação sobre um sistema oculto nessa variada terminologia poucos resultados produz. Gustav Törnvall relacionou cerca de 38 terminologias diferentes empregadas por Lutero para essa mesma distinção dos reinos.9

Esse quadro complica-se ainda mais ao se combiná-lo com outra distinção que Lutero adotou da doutrina medieval tradicional das hierarquias ou estamentos (Stände): ecclesia, politia e oeconomia (que antes da revolução industrial englobava trabalho, mercado, e – donde vem o termo – a economia da casa/lar). Eram categorias da ordem social que Lutero herdou com muita naturalidade da teologia medieval: Em primeiro lugar, a Bíblia fala e ensina sobre as obras de Deus; não há dúvida quanto a isso. Mas essas obras estão divididas em três estamentos: economia, política e igreja.10 Por volta de 1530, as referências mais genéricas de Lutero ao reino laico ([ou secular] weltliches Regiment) passaram a diferenciar-se pelo destaque dado às ordens. Ele já estava familiarizado e tinha usado a popular divisão medieval da sociedade em três estamentos ou hierarquias,11 distinguindo bastante cedo entre governança civil e economia (oeconomia). A primeira vez que os três estamentos são mencionados em Lutero foi em 1519.12 Mas a distinção tornou-se mais proeminente com e depois da Confissão acerca da Ceia de Cristo, de 1528, e seus Catecismos (1529). Usando linguagem de hoje, pode-se dizer que esses estamentos seriam públicos distintos.

Enquanto se poderia supor que ecclesia e oeconomia, enquanto ordens instituídas por Deus, podem ser entendidas, sem mais, como integrantes da condição anterior à queda no pecado, o problema fundamental da teologia das ordens da criação tem a ver com o lugar do Estado, ou seja, da politia. Embora Lutero, na maior parte do seu tratamento a respeito, não tenha reconhecido a ordem política como pertencente à condição pré-queda, ele também sabia que a política se baseia na economia – o que resulta num tratamento ambíguo da questão.13 Teólogos do século XX ficaram divididos na interpretação da intenção de Lutero. Enquanto alguns defendem a origem pré-queda do Estado em Lutero,14 para outros o Estado seria uma remediação externa (remedium externum), instituída em função da queda.15 Todos concordam em que Lutero é ambíguo sobre a questão.

Reconhecer essas esferas ou públicos institucionais e sua distinção é crucial para o entendimento de como Lutero enquadrava a distinção dos reinos. Essas esferas institucionais, inclusive a ecclesia, integram o reino terrestre. O reformador os entendia como larvae dei, máscaras de Deus. Quando Lutero emprega a distinção entre politia e oeconomia, ele o faz para salientar duas formas distintas em que esses públicos oferecem maneiras diferenciadas pelas quais os seres humanos cooperam com Deus (cooperatio hominis cum deo),16 onde Deus não atua sem nossa participação. Essa cooperação se realiza por meio de instrumentos ou máscaras. É revelador o uso que Lutero faz destas duas metáforas, instrumento (Werkzeug / instrumentum) e máscaras (Larven / larvae), usando-as indistintamente.17 Werkzeug é um instrumento ou ferramenta para uma obra ou mão de obra a ser executada, uma metáfora importada da esfera econômica, servindo, portanto, de sinédoque, onde uma parte (ferramenta) representa (no sentido de darstellen [encenar] ou vorstellen [apresentar]) o conjunto todo (trabalho). Larva, por outro lado, é uma máscara usada por um ator para representar (no sentido de vertreten [substituir vicariamente]), desempenhando o papel de determinada pessoa; máscara, como personificação, vem do teatro grego, ou do carnaval medieval. A máscara é a metáfora apropriada para descrever a pessoa política, que defende uma causa, uma pessoa ou um grupo que representa e comunica os interesses do bem comum, funcionando, portanto, como metonímia. Para o Reformador está claro que o agente por trás da ferramenta ou máscara é ou Deus, ou o diabo, o que decide o resultado final. Mas o que importa aqui é apenas indicar que o reino terreno trata de representação, enquanto o reino espiritual trata de presença, presença real; trata é de parousia, não de re-presentação.18

Cada um dos públicos representa um desafio diferente. Na politia a questão básica é a de representação (no sentido de Vertretung [vicariato]) na esfera civil. Na metáfora da máscara (larva) de Lutero, a questão é como a pessoa se apresenta na esfera civil, em sua interação social. Com que cara vamos interagir nessa esfera? Defendemos os interesses de quem? A quem representamos?

Na economia (oeconomia) a representação envolve a questão da identidade. A representação é uma obra (como uma obra de arte, no sentido de Darstellung). É importante entender este entendimento da palavra oeconomia, porque ela também se aplica à identidade étnica, uma vez que oeconomia implica tanto produção (para o sustento da vida – Lutero: nehren) quanto reprodução (procriação da vida –Lutero: mehren). No luteranismo da América Latina, moldado em grande parte por imigrantes, a noção de oeconomia é co-extensiva com o conceito de Deutschtum (germanidade), que define esse público.

Já na igreja (ecclesia), a questão é um pouco diferente. A igreja continua sendo um espaço de representação, com seus escritórios, diferentes vocações, organizações políticas, estruturas e afins. Mas esse espaço eclesial é sui generis. Ele toma de empréstimo procedimentos de representação da oeconomia (como o espaço de culto, ornamentação e outras coisas consideradas importantes (bene esse), porém não-essenciais (non esse), adiáphora, bem como da politia (políticas, administração, reuniões de comissões, formulação de estatutos, a aplicação das regras processuais etc.). Mas a singularidade da igreja é que os usos da representação só estão lá para criar um espaço em que a representação é apenas um recurso para criar um ambiente em que a pessoa encontre a si mesma, sem qualquer necessidade de ser representada. A genialidade da eclesiologia da Reforma foi reconhecer a Igreja como instituição terrena sem deixar de realizar práticas contra-institucionais. A igreja (Lutero: Kirche) é um público em que acontece communio (Lutero: Gemeine).

O Contexto Latino-Americano

Com este esclarecimento sobre o repertório linguístico de Lutero voltamo-nos para a situação latino-americana, analisando alguns episódios significativos em que teologia luterana desempenhou certo papel.

Utilizarei três casos na América Latina em que vieram à tona questões relativas à distinção dos reinos. Um deles é o caso chileno em que a Igreja Evangélica Luterana no Chile perdeu a maioria de seus membros, vindo a formar-se outra igreja (a Igreja Luterana no Chile). O segundo caso refere-se à maior igreja luterana na América Latina, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). E, finalmente, tratarei a Igreja Evangélica Luterana de El Salvador. Escolhi esses três exemplos porque em todos eles houve uma crise na relação entre identidade da Igreja e responsabilidade social. São o lugar ideal para se verificar a distinção dos reinos segundo Lutero.

Já observamos que a distinção dos regimes sob sua designação tradicional de doutrina dos dois reinos praticamente não aparece na época em que as questões cruciais relativas a esta distinção estavam mais candentes, quer dizer, em momentos de crise social. Contudo, as questões que surgiram encaixam-se bem na distinção dos reinos, ou dos públicos distintos. Entre elas estão o direito de resistir, o recurso às ordens da criação, a autonomia (Eigengesetzlichkeit) das ordens seculares, as relações estado-igreja, etnia e nacionalismo.

Mesmo que se mencionem ordens da criação, por exemplo, não ocorre nenhuma referência ao uso que Lutero faz da tripartite divisão medieval de ordens ou públicos institucionais pelos quais Deus, em cooperação com os seres humanos, governa o mundo como que através de máscaras e instrumentos. Mas em cada um dos casos existe um público específico a receber destaque. Então, no final, a distinção dos reinos e a especificação dos diferentes públicos que apontam para dimensões distintas do mesmo problema teriam ajudado a levar em frente a discussão. Em particular, é de grande importância a especificação ou separação dos públicos. Esta foi uma questão significativa para Lutero também,19 mesmo quando ele enxergava cada um dos públicos de uma forma funcional, na medida em que exibem as faculdades humanas básicas. Cada uma dessas faculdades é partilhada entre a humanidade; estamos, portanto, todos os envolvidos em cada uma delas. Mas o que importa, aqui, é que cada uma das faculdades discretas cria suas esferas de representação a definirem um público.

Entrar na politia mediante a fé.

Tomando a esfera política, o caso da Igreja Evangélica Luterana no Chile parece emblemático para a maneira como a distinção dos reinos funciona quando em interface com a politia. No agora simbólico 11/09, mas de 1973 (!), os militares derrubaram o governo democraticamente eleito do Chile, liderado pelo presidente Salvador Allende. Muito tem sido dito e escrito sobre o brutal golpe de Estado. Conhecida é também a forma como as igrejas reagiram. Mas o que interessa aqui é a reação da Igreja Evangélica Luterana no Chile (IELCH). A IELCH era uma pequena igreja provendo serviços religiosos para uma quantidade significativa de descendentes de alemães no Chile. Os cultos eram realizados na língua materna, alemão. A maioria dos pastores que atendiam as congregações eram missionários enviados pela Alemanha ou mais tarde também pelos EUA. Após o golpe, a maioria dos pastores entraram na arena política. O pastor-presidente (também intitulado bispo, ainda que a igreja não tivesse um sistema episcopal) Helmut Frenz, missionário alemão, tomou a iniciativa pública e foi seguido por quase todos os pastores da igreja (exceto dois, de uma dúzia), denunciando o governo, atuando junto a organizações de paz ecumênicas e também encaminhando clandestinamente refugiados para embaixadas estrangeiras na calada da noite. Frenz foi quem começou o processo de criar uma igreja chilena (a partir de uma igreja consular), fundando a primeira congregação de língua espanhola num bairro de classe operária em Concepción, não muito longe da capital, Santiago. Outros pastores seguiram o exemplo. Em 1975, cerca de dois anos depois do golpe de Estado, os acontecimentos se precipitaram, alguns pastores foram deportados, outros, como o pastor James Savolainen, teve que fugir do país com uma família de cinco pessoas, à noite, com poucas horas de aviso prévio, para não acabar figurando na lista dos desaparecidos. Não se usou linguagem luterana no processo. Mas alguns pastores e líderes leigos, na maior parte das recém-formadas congregações de língua espanhola, tomou a decisão de representar na esfera política o que sua fé representava. Eles representaram sua experiência de presença (parousia).

A essa altura a situação parecia irreversível. O regime militar já tinha estabelecido sua hegemonia. A IELC, como organização, estava em ruínas. Cerca de 93% dos seus membros saíram (enquanto 85% formaram nova igreja, denominada Igreja Luterana no Chile – ILCH). A maioria dos pastores ficaram com a IELCH; os demais tiveram que sair do país. Bispo Frenz, enquanto no exterior, teve seu visto revogado e retornou para a Alemanha.20 No caso do Chile não houve uso explícito da teologia luterana nem para apoiar, nem para denunciar a situação. O bispo Frenz recorreu ao motivo da cruz para explicar a sina dos perseguidos pela ditadura de Pinochet. Mas as referências eram bíblicas, apenas com uma referência à margem de que a teologia da cruz também animara o movimento da Reforma. Também o profetismo bíblico foi usado para explicar os arriscados atos de denúncia e protesto geralmente envolvendo pastores.

O partido pró-Pinochet da grande maioria dos luteranos também não recorreu a Lutero, com exceção de uma referência indireta na Declaração de Princípios da denominação recém-criada (ILCH), dizendo que a Igreja deveria ser dos leigos e para os leigos. Isto poderia ser interpretado como velada referência à doutrina do sacerdócio de todos os crentes, de Lutero, mas não foi apresentada desta forma explícita. A referência à distinção de reinos e sua interface apenas vem a aparecer explicitamente nas análises e reflexões teológicas após os dramáticos acontecimentos, para explicar a situação e denunciá-la. Helmut Frenz compara a situação chilena de meados dos anos 70 com a Alemanha nazista, referindo-se a ambas as situações usando a expressão Kirchenkampf (respectivamente lucha eclesiástica).21

Nas análises da situação publicadas ou divulgadas em forma mimeografada, muitas vezes a contribuição crítica oferecida pela distinção Luterana de reinos foi levantada para examinar abusos e muitas vezes denunciá-los. Mas não há nenhuma indicação de que a distinção de reinos em Lutero tenha sido usada alguma vez para justificar a posição da Igreja perante o governo político. As análises oferecidas do que estava acontecendo poderiam ter sido aprofundadas via análise transacional de Lutero sobre os públicos que operam no reino terreno. O exemplo do Chile é um caso emblemático da oeconomia apossando-se da ecclesia. Logo não era só um problema de interpretação dos reinos, mas de não se distinguir entre os públicos oeconomia e ecclesia. A igreja institucional estava sendo usada para justificar e apoiar a economia do lar germano-chilena. Em vez de ter a igreja como espaço para o sábado de comunhão, longe de ídolos e demônios, a maioria dos chilenos luteranos cedeu ao ídolo da economia do lar, que era a identidade germânica, e levou a igreja junto. Se os pastores e alguns membros se engajaram politicamente no momento de crise, é porque a politia, como esfera que estabelece responsabilidade pública, foi chamada a preservar a vocação da Igreja à parte da economia do lar.22

O que foi considerado atividade política imprópria dos pastores não começou pela participação em qualquer resistência ao golpe militar ou ajuda aos refugiados. Tudo tivera seu início no final dos anos 60, com a criação das primeiras comunidades de língua espanhola e com o envolvimento modesto, porém significativo, de não-germânicos como membros da Igreja, de modo que o espanhol começou a ser usado nos cultos. Este foi um ato político de, essencialmente, entrar na praça pública. O apoio de muitos pastores ao governo Allende foi inicialmente uma abertura da Igreja para a realidade política chilena tanto quanto suporte ético às políticas implementadas para melhorar a condição dos chilenos pobres. Entre elas estava principalmente a reforma agrária, que afetou diretamente os teuto-chilenos, muitos dos quais eram dos maiores proprietários de terra no país. Pode-se dizer que o envolvimento político foi resultado inevitável da tentativa de diferenciar entre a oeconomia e a ecclesia, entre germanidade e liberdade de pregar o Evangelho.

Entrar na oeconomia mediante a fé

O caso da igreja brasileira IECLB tem algumas semelhanças com o chileno. Auto-compreensão e política da igreja tinham perfil semelhante, mas uma diferença crucial é que, no caso do Chile, a opção política adotada pela maioria dos membros da Igreja em apoio à ditadura militar visava preservar intacto o pacto entre oeconomia e ecclesia, entre o lar germânico, com seus investimentos, e a igreja.

No caso do Brasil, chegou-se a dizer que os alemães se haviam tornado uma nota ecclesiae23; já no caso do Chile, germanidade não era uma nota, mas articulus stantis aut cadentis24 , isto é, a justificação da sua própria existência, solus germanicus. Assim, a incursão (principalmente de pastores) na esfera política desencadeou a crise que revelou o desmoronamento da igreja sobre o lar teutônico.

O caso do Brasil foi diferente neste tocante. No Brasil, a economia familiar alemã estava dividida, fragmentada. A estratificação social entre os imigrantes alemães era significativa e aumentava. O golpe militar de 1964, com a nova política agrária privilegiando os latifúndios e o extrativismo de monocultura para exportação, atingiu diretamente uma parte significativa dos membros da igreja, que eram pequenos agricultores e se sustentavam com agricultura familiar diversificada. Muitos deles, induzidos a contrair dívidas, perderam sua terra ou ficaram tão pobres que sua alternativa foi vender sua pequena parcela de terra para um grande fazendeiro e migrar para a cidade em busca de algum trabalho – mal-pago, por sinal.25 Com essa degradação social, a identidade étnica não podia mais ser sustentada. Essa desordem na oeconomia desencadeou a tomada de consciência sobre a confusão de públicos. Ao compartilhar a condição econômica da maioria dos brasileiros, a igreja já não podia definir sua identidade pela oeconomia do Deutschtum. A economia familiar perdera sua coesão identitária. Para usar a metáfora da máscara de Lutero, rompera-se a fachada que os luteranos alemães haviam criado para si. Foi a economia que levou à conscientização de que uma relação harmoniosa entre a oeconomia e a ecclesia não podia ser mantida como efetivamente se supunha.

Como arquiteto da formação da igreja brasileira e seu primeiro líder nacional, Pastor Hermann Dohms deu expressão a essa convicção de que a oeconomia provia a identidade das pessoas como cristãs e cidadãs. Ele fora influenciado pelo trabalho do iniciador da Missão Interna na Prússia em meados do século XIX, Johann H. Wichern. Assim, Dohms concluiu: ... a família é o intermediário necessário e inevitável entre a vontade divina e a história nacional, isto é, o estado político.26 Ordens da criação (Schöpfungsordnungen) era o termo usado para descrever esse conjunto de língua, etnia e nação. Esta ordem foi considerada como ordenada por Deus e gozava de certo caráter autônomo como ordem de Deus para nossa salvação.27 Significativamente não era a ecclesia, mas a oeconomia a forma institucional, o instrumento através do qual a vontade de Deus se manifestava. Mas quando essa economia do lar se desestruturou, ali é que a crise se manifestou.

A conscientização a este respeito não foi ativada diretamente (como no Chile) pelo golpe político (que no Brasil já havia ocorrido uma década antes do golpe chileno, em 1964), mas por um acontecimento eclesial que trouxe a lume que a igreja Luterana do Brasil já não tinha uma economia do lar que ela julgava possuir no Deutschtum, na oeconomia presumida. Esta estava abalada. A Quinta Assembleia da FLM foi programada para acontecer em Porto Alegre, Brasil, em 1970. Seria a primeira assembleia da organização global a ter lugar fora do eixo norte-atlântico. Em cima da hora, foi transferida para Evian, França, devido a protestos contra a violação dos direitos humanos no Brasil.28 Esse cancelamento foi a última gota, um alarme de última hora. Estatelava-se o ídolo de uma igreja germânica em solo brasileiro. Desmanchava-se a identidade da Igreja supostamente estruturada pela oeconomia.

Em 1970 um grupo de pastores e teólogos produziu um manifesto (desde então conhecido como Manifesto de Curitiba), adotado, depois, pelo Concílio Geral da Igreja. O Manifesto conclamava a igreja a adotar uma posição sobre as questões públicas que atingiam pessoas fora do lar alemão. Embora seja normalmente considerado uma conclamação política, era, no fundo, algo mais elementar. A linguagem do manifesto estava moldada em torno da questão igreja e política, reconhecendo-as como diferentes esferas (grandezas) da vida. Mas implicitamente reconhecia que o problema se encontrava em outro público distinto, na oeconomia. O Manifesto de Curitiba foi um apelo para que a Igreja seguisse seu próprio rebanho para os espaços sociais do seu povo, o traço modificado no perfil da oeconomia. Por isso ele tem sido descrito como passo do gueto rumo à participação,29 da ilusão de uma economia do lar única para muitos espaços domésticos diferentes e estratificados. Com certa ironia, a igreja, na verdade, estava vivenciando e pondo em prática o tema previsto da Assembléia da FLM para Porto Alegre: Enviados ao mundo. Não mais se concebia a igreja como uma casa de hóspedes, onde estranhos até poderiam entrar e ser tolerados, mas como igreja peregrina em busca de uma casa que poderia reivindicar como seu lar, pois o lar antigo deixara de existir, pelo menos para a maioria dos luteranos a enfrentarem as terríveis realidades econômicas dos novos tempos.

Como já foi documentado30, as tensões internas e a instabilidade na auto-identidade no lar luterano do país podiam ser percebidas desde a Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil se juntou aos Aliados e enviou tropas para lutar na Europa (Itália, no caso do Brasil); depois houve o golpe de Estado de 1964 com a imposta onda de nacionalismo (Brasil, ame-o ou deixe-o, slogan usado também nos EUA em relação ao movimento contra a guerra do Vietnã); tudo isso gerou mal-estar e desconforto a enviar sinais premonitórios do que estava por vir. A mudança de local da Quinta Assembléia da FLM só pôs à mostra uma dolorosa ferida numa casa que já não existia mais – como numa fotografia antiga, em que o tempo foi apagando as feições das pessoas, fazendo-as confundir-se com o fundo.

A afirmação de um ex-presidente do Sínodo Riograndense – que quanto mais alemão em assuntos eclesiásticos, mais brasileiro cabia ser em questões políticas – refletia a situação vigente, embora tal opinião tenha sido apresentada com a tácita suposição de que alemão seria uma identidade auto-explicativa. Neste ponto ela justamente errava; ela harmonizava e reconhecia a distinção entre politia e ecclesia, mas ignorava completamente a oeconomia. Ali é que a situação estava tumultuada, desagregada. Já se fez a observação de que muito antes, começando na década de 1930, a antiga homogeneidade econômica e social dos colonos ... tinha dado lugar a marcante diferença de status econômico e social.31 Isso acabaria sendo focalizado no final dos anos 60 e nos anos 70. Os alunos da Faculdade de Teologia da igreja abandonavam seus estudos para trabalhar nas fábricas, para viver com o povo, para ser pequenos agricultores; leigos e pastores juntaram-se aos trabalhos ecumênicos da Comissão Pastoral da Terra (CPT), juntamente com católicos. A publicação anual de ajuda homilética para pregadores e líderes foi criada em 1974, intitulada Proclamar Libertação (volume 40 neste ano). Criou-se um ministério chamado Pastoral Popular Luterana (PPL).32 Assim se encarou a oeconomia.

Entrar na ecclesia mediante a fé

No caso da Igreja Evangélica Luterana de El Salvador, temos mais uma variação possível de como a confusão entre os públicos terrestres coloca o problema dos reinos. A questão básica continua a mesma. A falta de discernimento entre as esferas terrestres no caso de El Salvador ainda era diferente dos casos do Chile e do Brasil. No Chile, a igreja e o lar germânico eram indistinguíveis, exigindo que a dimensão política se fizesse presente; já no Brasil o alinhamento da igreja com a ordem política foi sacudido quando se deu a conscientização sobre a óbvia desordem na casa, exigindo que a igreja abordasse a causa econômica de seu próprio povo a se integrar às fileiras dos oprimidos e socialmente marginalizados. No caso de El Salvador, uma pequena igreja resultante do cisma de uma missão guatemalteca da Igreja Luterana Sínodo de Missouri nos EUA (LCMS) começou a reivindicar seus direitos de ser igreja enquanto a política excluía as pessoas da participação, e a economia expulsava as pessoas do seu próprio lar. O conflito político estava produzindo vítimas com brutalidade indescritível, e a ordem econômica gerava fome e pobreza. Este foi o pano de fundo para o trabalho decisivo da igreja em talhar uma esfera para o sábado, onde a Palavra de Deus pudesse ser proclamada dando voz aos que não têm voz, exorcizando os demônios políticos que sequestravam a liberdade de expressão, e destruindo os ídolos de um sistema econômico a exigir devoção aos deuses que a oligarquia erigira com apoio das potências ocidentais.33

O elemento constitutivo nesta afirmação da função de cura da Igreja ficou mais visivelmente expresso no trabalho em defesa dos perseguidos, torturados e fugitivos que encontraram refúgio no albergue Fe y Esperanza, colocando em prática o amor cristão.34 De importância teológica e eclesiológica nessa atitude foi o recurso ao conceito de sacerdócio de todos os crentes como pedra fundamental sobre a qual se estabeleceu essa igreja.35 Esse processo tomou forma concreta com a ordenação de pastores leigos, incluindo muitas mulheres, desafiando frontalmente as políticas eclesiais da LCMS [Igreja Luterana do Sínodo Missouri].36 O termo pastor leigo era resquício de uma mentalidade paroquial hierárquica que pretendia indicar que esses pregadores e ministros dos sacramentos efetivamente eram pastores, com o detalhe de não terem estudado em seminário teológico. Mesmo assim, foram instalados como autoridades da ecclesia.

O uso intencional do argumento de Lutero em favor do sacerdócio de todos os batizados permitiu que vozes proferissem palavras de proclamação que não podiam ser controladas pela política, nem por interesses econômicos. Com esse resgate de um espaço em que uma palavra diferente pudesse ser pronunciada, a Igreja Luterana de El Salvador deu vida a uma instituição que recriou a imagem que o próprio Lutero usara para a Igreja: o sábado. Essa é a imagem da igreja que Lutero defendeu como igreja de Adão e Eva e seus descendentes; essa foi realmente uma igreja universal que abrangeu toda a humanidade.

Medardo Gómez, bispo da igreja e ele próprio vítima de tortura e exílio, foi a figura catalisadora na formação de uma igreja. Mesmo que nenhuma referência explícita e sistemática tenha sido feita à teologia de Lutero, na esfera da vida a que pertence a Igreja ou nos ensinamentos sobre a distinção de reinos essa igreja foi fiel às idéias dos reformadores. Medardo Gómez tem sido considerado por muitos como emblemático sucessor de seu compatriota, o bispo católico mártir Oscar Romero († 1980). Obviamente, a comparação é desproporcional, dado que a Igreja Luterana em El Salvador compreende menos de 0,3% da população geral e perfaria, no máximo, 0,6% da população a se professar católica (mais de 55% da população). Mas as quantidades não definem as questões teológicas centrais.

A convicção teológica central define o que importa; aí a comparação permanece válida. Esta é possivelmente a grande contribuição da Igreja Luterana de El Salvador: de explicar a todos nós o que Lutero mencionou como manifestação do amor cristão a ultrapassar a vocação doméstica, os direitos políticos e até mesmo a esfera eclesial, como o reformador eloquentemente expôs.37 Mas o que é tão importante e ilustrativo na Igreja salvadorenha foi o singular gesto de colocar em destaque o papel da igreja, de uma igreja que, mesmo sendo minoria absoluta, veio a ser a católica igreja, resgatando um espaço sabático para o todo: kata-holos.

E como ficam os dois reinos?

O pensamento de Lutero sobre os reinos, ainda que não explicitamente utilizado até 1970 para se enquadrar convicção teológica e ética, serviu de espinha dorsal a operar tacitamente, na medida em que a fé tornou-se um princípio que libera ação para se tornar eficaz em amor, como ficou expresso nos três públicos a expressarem distintamente os âmbitos da responsabilidade cristã. A distinção dos reinos é um princípio emitido pela Reforma na sua afirmação da justificação pela graça através da fé. Nesse aspecto todas as diferentes correntes do movimento concordavam e o usaram como fundamento para sustentar a responsabilidade pública. Mas enquanto o Melanchton posterior e a tradição calvinista enquadrariam essa responsabilidade em termos de terceiro uso da lei, Lutero recorria aos três públicos divinamente instituídos, visando buscar a paz via meios razoáveis mediante consecução da equidade. Notável é como essa peculiar forma luterana de enquadrar ética social se expressou nas igrejas luteranas latino-americanas, mesmo sem recurso explícito algum à teologia de Lutero. Os três públicos na sua função discreta surgiram por conta própria à medida que a igreja tentava encontrar seu lugar adequado na ordem social.

Neste contexto, a promessa de teologia luterana está em tornar explícita e consciente uma teologia que já está atuando implícita e tacitamente.

Versão brasileira: Walter O. Schlupp
 


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