Igreja e Sociedade



ID: 2797

Marcos 10.32-45

Auxílio Homilético

01/09/1985

Tema - Movimentos populares: Povo unido jamais será vencido.

Explicação do tema:

O povo consegue viver sob a regência de um Estado opressor até um determinado limite de sua paciência e sobrevivência. Entre a instalação desse regime e esse limite aparecem, sob diversas formas, as reações a esta opressão: formação de grupos, movimentos, greves, concentrações, partidos, tendências, atos de violência e assassinatos.

Tanto o Estado instituído quanto esta movimentação de ideias e pessoas que a ele se contrapõem têm objetivos a serem atingidos.

A questão que levantamos é: o movimento popular existe somente para correlacionar forças e instituir novo regime? Olhando como Igreja para esta movimentação e correlação de forças: conseguimos perceber ou não que ela é historicamente necessária? Percebemos também que este movimento não se esgota com um momento da vitória?

Texto para a prédica: Marcos 10.32-45

Autor: Rui Bernhard

l — Introdução

O nosso texto encontra a sua paralela apenas em Mt 20.17-28 com algumas variações. Em Lucas encontramos apenas a parte inicial e final (18. 31-34 e 22. 24-27). E ainda por cima estas duas partes estão colocados em contextos diferentes.

Provavelmente o texto de Marcos é o original. Bohne/Gerdes (p. 344) chega a afirmar que o procedimento dos dois irmãos tenha causado profundo mal-estar na comunidade primitiva. E por isso Mateus tentou suavizar a questão, fazendo a mãe dos dois dirigir o pedido a Jesus. Lucas, mais tarde, já omitiu totalmente esta parte.

Sobre a delimitação do perícope Hübner reconhece apenas os vers. 35-45 (p.157). A maioria dos comentaristas, no entanto, inclui os vers. 32-34, onde Jesus prediz com muita riqueza de detalhes a sua morte e ressurreição. Entende que a inclusão desta parte é totalmente justificada pelo v. 45.

II –O texto

Vv. 32-34: Zimmermann afirma (p. 118) que os preparatórios para a paixão de Jesus terminam com esta parte. O centro de sua caminhada está em Jerusalém. Ali encontramos o centro religioso da época e por isso se explica o temor dos discípulos, ao anunciar sua ida até lá.

Por que Jesus precisa falar tantas vezes a seus discípulos sobre sua paixão? Zimmermann vê nisto a intenção de Jesus de querer mostrar que sua paixão é serviço consciente 6 livre decisão. Que é um processo que inclui desde a sua entrega ao sinédrio, sua condenação, sua entrega aos gentios, seu escárnio, sua morte e sua ressurreição (p. 119). Por isso o seguir a Jesus necessariamente passa por Jerusalém.

Vv. 35-40: A pergunta de Tiago e João ignora totalmente esta caminhada mais ampla de Jesus. Eles ignoram que a ação salvífica de Jesus acontece para todos indistintamente. Mas Tiago e João pensam unicamente em poder e exaltação pessoal. E isto é egoísta, pois há uma nítida preocupação em querer colocar-se acima de outros. Há a preocupação clara de querer obter lugar de destaque e tratamento diferenciado, bem de acordo com a mentalidade do mundo em que vivem, onde cada um procura obter para si uma segurança pessoal e individualista. No caso de Tiago e João esta segurança está justificada no seu discipulado.

Mas Jesus precisa explicar-lhes que o verdadeiro discipulado passa pelo caminho da cruz e pelo batismo de morte. E mesmo que eles estejam dispostos a tudo isto — o que se confirma mais tarde com a morte de mártir de Tiago (Atos 12.2) — Jesus lhes mostra a sua situação de servo que apenas procura obedecer a seu Pai (v. 40). Jesus não veio para oferecer favores e distribuir privilégios, mas para trilhar um caminho árduo e penoso. Ele também não fez isto com a intenção de conquistar um lugar de destaque junto ao Pai, mas para servi-lo. E por isso cabe exclusivamente a Deus a decisão sobre a questão.

Vv. 41-45: Esta parte da perícope deixa claro como o querer dominar e ser exaltado está numa oposição direta ao pensamento do servir. À primeira vista parece que o domínio é algo que atinge somente a classe política e os dominadores deste mundo secular. No entanto a atitude de Tiago e João mostra como se instalara também entre os próprios discípulos a mentalidade do poder, da auto-promoção, enfim, a ideia de que o fervor religioso pode conduzir para um lugar de honra e destaque. A indignação dos outros discípulos (v. 41) contra os dois deixa claro que no íntimo eles esperam a mesma coisa.

Mas entre vós não é assim. Na verdadeira comunidade cristã não haverá briga por poder, que só escraviza e que separa entre dominadores e dominados. Na comunidade cristã a única preocupação é o servir. Esta preocupação somente, consegue unir e propicia a comunhão e o bem-estar para todos indistintamente. Só alguém que serve é capaz de esquecer-se de si mesmo e de todos os valores que a sociedade procura colocar como válidos. E todas as vezes em que alguém cotestar estes valores, lutando contra os mesmos para valorizar o bem comum, aí certamente tais pessoas vão se confrontar com a cruz, com o sofrimento, com a perseguição. E é exatamente isto o que Cristo sugere para alguém que quer ser seu seguidor. O próprio Jesus não veio buscar honrarias, mas veio para servir e assumir o mais difícil: cruz e sofrimento.

Apesar de isto parecer para o mundo um sinal de fraqueza, sua ressurreição veio se confirmar como vitória absoluta sobre a morte. O que venceu foi o valor do serviço. E com isto Jesus tornou-se sinal de esperança para o mundo.

Ill — Meditação

Tiago e João representam a mentalidade normal dominante de nosso mundo, ou seja: luta por perpetuação no poder, exploração, luta por posições de privilégio, subir na vida, etc. A luta por dias melhores está presente na vida de cada um, seja ele explorado, seja ele explorador. Só que para o explorador a luta é mais fácil, porque ele já dispõe dos meios e da força para conseguir cada vez mais êxito.

E quase sempre ele aposta na desunião do mais fraco, pois, enquanto este permanecer no individualismo, sempre será presa fácil do forte.

Isto cria situações sociais cada vez mais injustas e insustentáveis. E o povo sofredor, quando não vê mais saída, reage: ou motivado pelo desespero, então sua reação será facilmente controlada pelo explorador; ou sua reação pode ser organizada, unindo forças através da formação de movimentos populares de reivindicação, greves, concentrações de protestos e pressão, etc. Neste caso, o seu sucesso será tanto maior, quanto maior for a união e a predisposição para aguentar o sofrimento e as tensões.

A história nos mostra que tais movimentos pacíficos, através de resistência passiva, têm força para transformar situações injustas. Mas é preciso dizer que esta transformação não será alcançada com vitórias isoladas. Se elas não desencadearem um processo de mudança com uma constante reavaliação, certamente fracassarão. Um exemplo disto é a proclamação da Independência do Brasil. O grito de independência foi o momento da vitória. No entanto o processo verdadeiro de independência não aconteceu, pois a vitória momentânea favoreceu apenas uma pequena minoria que teve interesses comerciais na questão. Atos cívicos na comemoração da data hoje tentam desviar a atenção das pessoas para este fato. Outro exemplo é a revolução de março de 1934. Também esta transformação foi apenas aparente, pois veio beneficiar somente uma pequena minoria. Sob o manto da libertação do comunismo aconteceu justamento a escravização, a exploração do povo que sofre cada vez mais.

Qual é o papel da Igreja em meio a tudo isto? Dar força aos Tiagos e Joãos da vida? A realidade da Igreja parece que está muito bem representada na afirmação de Kempis que diz o seguinte: Atualmente Jesus tem muitos discípulos que gostariam de reinar com ele no Reino dos céus, mas poucos dispostos a carregar a sua cruz na terra; muitos que querem compartilhar com ele a sua santidade, mas poucos que com ele querem suportar o sofrimento; muitos que com ele querem comer e beber, mas poucos que com ele querem jejuar. Todos querem alegrar-se com Jesus, e poucos querem sofrer com ele... (p. 28).

Parece que não podemos contestar esta afirmação, pois sempre deparamos com o nosso comodismo quando afirmamos que sozinhos não podemos mudar o mundo. E isto é correto: sozinhos não podemos mudar muita coisa; mas, mesmo sozinhos, podemos fazer um início. Jesus também não teve a pretensão de querer mudar o mundo; por isso ele se preocupou em deixar sinais do Reino, que trouxeram esperanças para muitas pessoas. Ele desencadeou um processo com os seus discípulos, que não trouxe honra e exaltação para eles; que não terminou com sua morte e ressurreição. Mas aí, justamente, começaram a ter forças. Por isso perguntamos: quais são os sinais concretos do Reino que podemos ver hoje em nosso meio? Gostaria de citar dois exemplos:

1. Santo Dias da Silva

Ele foi camponês e depois operário metalúrgico. Toda sua vida foi marcada por muita luta em favor do bem-estar de muitos. E isto lhe causou muito sofrimento e, no fim, até a morte. Sempre lutou em favor dos direitos do trabalhador. Foi líder nos movimentos de greve por melhoria de salário e condições de trabalho. Enfrentou o desemprego. Liderou a greve contra um ditador da empresa ALFA que matou um operário. E, durante a greve dos metalúrgicos em frente à fábrica Sylvânia foi assassinado por um policial militar no dia 30/10/79. Ele não lutou por uma ascensão individual, mas para o bem comum. Teve uma luta penosa em convencer os companheiros a se unirem. E, em favor desta luta, deu sua vida. Sua morte e sua vida trazem uma mensagem de esperança dos oprimidos e humilhados:... silenciados pela opressão, eles (os operários) ocuparão as ruas e as praças;... perseguidos, os operários se encherão de coragem; assassinado, eles se multiplicarão numa multidão viva e combativa.

Podemos ver que o seu sacrifício não foi em vão. Os trabalhadores estão criando forças e se unindo cada vez mais, mostrando que povo unido jamais será vencido.

2. A luta persistente das mães da Praça de Mayo

Castigadas pela dura realidade do desaparecimento arbitrário de seus filhos, presos durante a repressão militar na Argentina depois de 1976, elas não se entregaram. Organizaram-se e começaram a pressionar as autoridades no sentido de obterem uma informação segura do paradeiro de seus filhos. Assim desabafa uma delas: O pior não é saber que o filho está morto. A pior coisa é não ter um túmulo para onde levar flores. A sua organização e persistência durante mais de 6 anos contribuiu muito para a volta do país à democracia, com eleições livres para presidente e para que os militares assassinos fossem julgados por um tribunal civil e não militar.

Luta persistente em favor do bem comum e união caracterizam estes dois exemplos. Servir uma causa e não a interesses pessoais é que é o importante, e contribui para uma ação libertadora. Por isso tornou-se justamente tão importante ultimamente o slogan: POVO UNIDO JAMAIS SERÁ VENCIDO. Esta verdade se mostrou presente em muitos movimentos populares na luta por mais justiça para todo.

Esta, no meu entender deve ser a luta de cada um que se diz discípulo de Jesus. Este é o caminho que a Igreja precisa aprender para tornar-se sempre mais veículo e não obstáculo para que as grandes maiorias sofredoras do povo possam viver uma vida digna com justiça. Pois sempre, quando a Igreja estiver preocupada na luta por poder e exaltação, que ela seja confrontada com a advertência de Jesus: Entre vós não é assim. Servir a todos, valorizar as lutas dos fracos, ser facilitador na organização de movimentos que procuram o bem-estar de todos, ali está a chance que temos como Igreja de podermos ser verdadeiros discípulos e não apenas senhores manipuladores da sua palavra.

l V — O caminho da prédica

O texto se presta muito bem para a prédica da Semana da Pátria. Mesmo se as autoridades locais não pedirem culto comemorativo, não deveríamos deixar passar a oportunidade de realizar um tal culto, pelo menos para podermos colocar a mensagem da palavra em meio a todas as comemorações cívicas vazias e que só querem alienar o povo. Neste sentido vejo a seguinte possibilidade de estrutura da prédica:

1. Independência do Brasil:

— A conquista da Independência de Portugal.

— A situação geral do povo brasileiro hoje e a sua dependência dos países desenvolvidos, o que causa o enriquecimento e ascensão cada vez maior de uma pequena minoria e o consequente sofrimento cada vez maior da grande massa popular.

2. Mas entre vós não é assim.

— Mostrar que os Tiagos e os Joãos da vida estão representados também entre nós e até dentro da Igreja, sempre que esta ficar calada, aprovando com o seu silêncio a situação injusta em que vive a grande maioria do povo.

3. Verdadeiro discípulo é aquele que está disposto a sujar as mãos, apoiando movimentos que lutam pela real libertação de todos indistintamente.

— Ressaltar exemplos locais onde isto poderia ser praticado. Para tanto usar os dois exemplos citados na meditação acima.

— Povo unido jamais será vencido, quando coloca sua ação e esperança em Jesus Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos.

V — Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Senhor, somos uma Igreja que coloca sua força mais nas tradições do que na tua palavra libertadora. Procuramos ser exaltados, e não estamos dispostos a servir-te com mais amor. Ficamos surdos aos clamores do povo que sofre. Senhor, este é o nosso grande pecado. Sabemos que tu contas conosco mesmo assim. Por isso faze com que nos humilhemos, que reconheçamos nosso falso orgulho e que possamos ser teus verdadeiros servos. Para tanto perdoa a nossa culpa, quando te pedimos: Tem piedade de nós. Senhor.

2. Oração de coleta: Senhor, somos tua Igreja, mesmo sendo fracos e imperfeitos. Ajuda-nos a entender tua palavra. Ajuda-nos a ser humildes e prontos a servir-te com amor, colocando-nos ao lado do fraco e oprimido. Que a tua palavra nos ilumine e consiga quebrar o nosso orgulho e prepotência. Em nome de Jesus. Amém.

3. Oração final: Senhor, tua palavra é desafiadora. Ela mexe conosco, quando denuncia nosso comodismo e passividade. Tu nos convidas a olhar para dentro de nós para que reconheçamos que somos discípulos sem força e sem poder, porque confiamos demais nas nossas capacidades.
Dá que nos lembremos daqueles que sofrem por causa de nosso egoísmo, quando queremos crescer e progredir sozinhos;
Dá, Senhor, que tenhamos mais coragem de falar a palavra certa na hora certa;
Dá que estejamos mais dispostos a denunciar com coragem as injustiças ao nosso redor e lutar mais decididamente por justiça e chances iguais para todos;
Dá que nos coloquemos ao lado dos agricultores que reivindicam melhores preços por seus produtos;
Dá que possamos apoiar com mais decisão os movimentos que lutam por salários justos e melhores condições de vida;
Dá-nos forças para apoiar os que sofrem e ser para eles esteio e não empecilho.
Senhor, dá que sejamos verdadeiros instrumentos do teu Reino. Em nome de Jesus Cristo. Amém.

VI — Bibliografia

- BOHNE, G. et GERDES, H. Meditação sobre Marcos 10.32-45. In: Interrichtswerk zum Neuen Testament Berlin e Schleswig-Holstein, 1970.
- GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Markus. In: Handkommentar zum Neuen Testament v. 2. ed. Berlin, 1980.
- HUBNER, E, Meditação sobre Marcos 10.35-45. In: Göttinger Predigtmeditationen. cad. 67. Göttingen, 1978.
- KEMPIS, T. Jesus Cristo — esperança para o mundo. In: F LM — Documentos, cad. 13. Setembro, 1983.
- ZIMMERMANN, W. D. Markus ueber Jesus. Gütersloh, 1970.


Autor(a): Rui Bernhard
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Testamento: Novo / Livro: Marcos / Capitulo: 10 / Versículo Inicial: 32 / Versículo Final: 45
Título da publicação: Proclamar Libertação / Editora: Editora Sinodal / Ano: 1984 / Volume: 10
Natureza do Texto: Pregação/meditação
Perfil do Texto: Auxílio homilético
ID: 14643

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