Quinto Simpósio Anual sobre o Papel da Religião e das Organizações com Base na Fé em Assuntos Internacionais: Financiamento de Desenvolvimento Sustentável, Rumo a uma Economia da Vida.
Painel 1
Economia da Vida: Perspectivas Baseadas na Fé sobre Justiça Econômica como um Imperativo Moral – um parâmetro baseado na fé para financiamento de desenvolvimento incluindo fundamentos morais para uma Economia da Vida e uma economia que incorpore paz com justiça.
Teses de Ulrich Duchrow
Tese 1
O ponto de partida deve ser o fato de que, se o atual sistema econômico, os padrões atuais de pensamento e comportamento, ou seja, a civilização dominante como um todo, continuarem como ocorrem atualmente, as condições de vida do planeta serão destruídas. Portanto, não é apenas uma questão de moralidade no sentido tradicional, mas a superação do atual modelo dominante de civilização é uma questão de vida e morte. Tudo o que dizemos hoje deve refletir essa extrema urgência e a fé para lidar com isso.
Tese 2
A força motriz da presente civilização é o crescimento compulsivo e ilimitado - crescimento da produção, crescimento do consumo, crescimento da extração de recursos, crescimento da poluição, crescente extinção de espécies, crescimento da catástrofe climática. Mas a causa básica desse crescimento compulsório é que o capital deve crescer. É por isso que essa civilização é justamente chamada de capitalista. Como o capital é a força motriz desta civilização, os pesquisadores substituíram o nome Antropoceno por Capitaloceno para localizar nossa época geológica.
Historicamente, essa civilização começou no século VIII AC, reforçada novamente pela introdução da moeda por volta de 600 AC, quando em toda a Eurásia o dinheiro entrou na vida cotidiana num contexto de guerra profissionalizada pelo emprego de mercenários, um dos primeiros exemplos de trabalho assalariado. A mudança de formas comunitárias de economia para mercados individualizados levou à insegurança e à suposição de que apenas o máximo de dinheiro possível pode garantir os meios de vida. Essa ganância foi institucionalizada pela cobrança de juros sobre empréstimos. Então, desde o começo, temos uma interação de estruturas, comportamentos e pensamentos. As sociedades foram divididas em ricas e pobres, particularmente através de mecanismos de dívida; os indivíduos começaram com o pensamento calculista; os impérios relacionaram o expansionismo do dinheiro com a violência da conquista. O Império Romano foi o primeiro auge desse tipo de civilização.
Tese 3
O próximo passo dessa civilização aconteceu no Século XI, na região Norte da Itália, nas cidades estado comerciais e bancárias. Elas não apenas acumularam dinheiro recolhendo tesouros, mas mecanizaram o lucro, reinvestindo imediatamente os lucros do comércio e da usura, a fim de obter lucros ainda maiores. Isso transformou o dinheiro num instrumento útil para o capital de produção de capital, razão pela qual esse período é chamado de capitalismo primitivo. A seguinte etapa veio com o aumento da acumulação de capital no processo de produção. Isso é chamado de capitalismo industrial. E sobre essa base nossa época chegou ao estágio do capitalismo financeiro, criando lucros ainda maiores por meio da especulação e impulsionando a economia real visando aumentar a taxa de lucro pelo crescimento máximo às custas das pessoas e da Terra.
Tese 4
Qual é o papel das comunidades de fé nessa situação? A base da resposta está nas escrituras antigas. Da China à Grécia passando pela Índia, Pérsia e Israel Antigo todas as religiões e filosofias, em toda a sua diversidade cultural, mas com um impulso comum, responderam à civilização emergente impulsionada pelo dinheiro ganancioso, a indivíduos gananciosos e aos impérios. Os profetas, a partir de Amós, pediram justiça, depois posicionada nas leis sociais da Torá; Buda identificou os venenos que causam sofrimento como sendo ganância, comportamento violento e ilusão; Laotse, o fundador do taoísmo, tentou superar o comportamento masculino violento e possessivo usando o símbolo da água para promover modos de vida humildes, suaves, estimulantes e sustentáveis; Confúcio trabalhou na restauração das relações sociais; Sócrates, Platão e Aristóteles desenvolveram regras éticas e políticas para superar o que Aristóteles chamou de chremastics, uma economia que responde à ganância, não às necessidades, e portanto voltada para a acumulação de dinheiro ilimitado. Este período é chamado de Era Axial. Mais tarde, já no Império Romano, o primeiro clímax da civilização impulsionada pelo dinheiro, Jesus pediu uma decisão básica de fé entre o Deus da justiça e o ídolo da acumulação Mamon. O Profeta Maomé, baseando-se na Bíblia hebraica e cristã, confrontou os ricos comerciantes de Meca em sua luta pela justiça baseada na fé. Portanto, temos um conjunto intercultural e inter-religioso de sabedoria e poder espiritual para superar a civilização dominadora ligada à morte e impulsionada pela acumulação de capital.
Tese 5
No movimento ecumênico cristão de passado recente, podemos extrair água deste poço, particularmente começando com o Processo Conciliar de Justiça, Paz e Integridade da Criação (JPIC) na 6ª Assembleia do CMI em Vancouver, em 1983. No curso desse processo, todas as comunidades cristãs, em decisões oficiais a nível internacional, rejeitaram formalmente o capitalismo imperial e começaram a trabalhar por alternativas:
• Em 2003, a FLM, na Assembleia de Winnipeg, chamou de idolatria a ideologia por trás do Consenso de Washington;
• Em 2004, a então chamada Aliança Mundial de Igrejas Reformadas, (WARC), em Acra, rejeitou o capitalismo imperial por meio de uma confissão, elaborada na forma da Declaração Teológica de Barmen - a base da Igreja Confessante contra o Nacional Socialismo na Alemanha;
• Em 2013, na Assembleia do CMI em Busan, o assunto aparece em vários documentos. A Declaração de Bogor (adotada) promete construir um movimento profético para uma economia da vida para todos; a Declaração sobre Missão diz: “A espiritualidade da missão resiste e procura transformar todos os valores e sistemas destruidores da vida”; A Declaração de São Paulo sobre “Transformação Financeira Internacional para a Economia da Vida” declara:
Nós rejeitamos uma economia de excesso de consumo e ganância, reconhecendo que o capitalismo neoliberal nos condiciona psicologicamente a desejar mais e mais, e ao invés disso, afirmamos conceitos cristãos e budistas de uma economia de suficiência que promove a contenção.
• Duas semanas depois de Busan, o Papa Francisco publicou sua Carta Apostólica “Evangelii Gaudium”, resumindo os 30 anos do trabalho ecumênico nas famosas palavras:
“Assim como o mandamento 'Não matarás' estabelece um limite claro para salvaguardar o valor da vida humana, hoje também temos que dizer 'não farás' a uma economia de exclusão e desigualdade. Tal economia mata ....
Não à nova idolatria do dinheiro ...
Não a um sistema financeiro que governa em vez de servir ...
Não à desigualdade que gera violência ...
Não ao egoísmo e à preguiça espiritual ...”
É um evento único na história da igreja que - após 500 anos de divisão - todas as igrejas cristãs rejeitaram o capitalismo imperial e seus padrões de pensamento e embarcaram na busca de alternativas.
Tese 6
No entanto, não temos razão para nos sentirmos triunfalistas sobre o estado de coisas nas igrejas. Não apenas poucas igrejas membros implementaram essa crítica sistêmica e realizaram um trabalho orientado para a transformação, mas há um número crescente de comunidades de fé chamando a si mesmas de cristãs seguindo o evangelho da prosperidade, o que é uma completa assimilação do capitalismo – basta ver o comportamento eleitoral desses grupos nos EUA ou no Brasil. Isso significa que, ao mesmo tempo em que revitalizamos as religiões e filosofias da Era Axial, precisamos também nos ocupar com uma crítica da religião.
Tese 7
A saída é a construção de alianças com todas as forças transformadoras: por ex. os grupos de teologia e ação judaica e muçulmana da libertação, a Rede Internacional de Budistas Engajados, mas também, e acima de tudo, com as vítimas em luta contra os sistemas dominantes organizados em movimentos sociais, de defesa ambiental e de promoção da paz. As organizações ecumênicas CMI, FLM, CMIR, reunidas em São Paulo já em 2012, iniciaram um processo para uma NAFEI, Nova Arquitetura Financeira e Econômica Internacional (NIFEA, por sua sigla em Ingles). Elas desenvolveram um plano de ação e sublinharam a necessidade de cooperar com os movimentos sociais. O Papa Francisco junto com o Cardeal Turkson, então Presidente do Pontifício Conselho para Justiça e Paz, que recém fundira-se com os Dicastérios para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, também organizou encontros anuais com movimentos sociais que combatem a idolatria de Mamon e o fetichismo das mercadorias, o dinheiro e o capital. Recomendo fortemente que as organizações ecumênicas (Protestantes / Ortodoxas / Anglicanas / Episcopais) sob a liderança do CMI se aproximem do Papa a fim de promover uma construção de alianças, se não uma fusão entre o processo da NAFEI e as reuniões do Vaticano de cooperação com os movimentos sociais. Isso permitiria que congregações locais e grupos de base, bem como redes ecumênicas regionais e nacionais, trabalhassem novamente dentro de uma estrutura ecumênica global para a crítica sistêmica e a ação transformadora.
Tese 8
Este poderia ser o contraponto cristão local-global ideal para o processo das Nações Unidas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em cooperação com a Parceria Internacional sobre Religião e Desenvolvimento Sustentável (PaRD). No entanto, deveria ser uma parceria crítica. Porque - como o último relatório do Clube de Roma mostrou - os ODS estão cheios de contradições. A principal contradição existe entre a Meta 8 (crescimento econômico) e as Metas Ecológicas (12-15). O objetivo 8 é construído sobre a ilusão do capitalismo verde, supondo que a destruição da criação e o crescimento possam ser dissociados. Mas como, sem desafiar a ordem capitalista, o que segue pode acontecer: “Até 2030, garantir que todos os homens e mulheres, em particular os pobres e os vulneráveis, tenham direitos iguais aos recursos econômicos, bem como acesso a serviços básicos, propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, recursos naturais de herança, nova tecnologia e serviços financeiros, incluindo microcréditos“(Meta 1. objetivo 4)? As organizações baseadas na fé devem - com base em suas decisões já tomadas - desafiar a ONU a perceber que, sem uma profunda crítica sistêmica e transformação, os ODS continuarão sendo somente algo desejável.
Tese 9
Quais são algumas das questões cruciais? Existem três pilares estruturais sobre os quais o capitalismo é construído: a ordem da propriedade, a ordem do dinheiro e o trabalho assalariado. O caráter absoluto da propriedade privada deve ser superado por uma ordem de propriedade a partir de baixo (ou seja, não apenas propriedade estatal) baseada nos bens comuns e orientada para o bem comum. O dinheiro tem que ser liberado de ser uma mercadoria em prol da acumulação e transformado em um bem público para cumprir as funções necessárias para a economia real como, por exemplo, troca, compra e crédito. Nós não precisamos apenas de mais dinheiro para o desenvolvimento, mas de uma nova ordem financeira pós-capitalista (começando com uma forte regulação, ODS 10.5). Especialmente os bancos têm que deixar de ser capazes de gerar dinheiro com base em créditos ligados a juros, porque com isso já o dinheiro em si contém o impulso para crescer. Esta nova ordem financeira também incluiria o fechamento de paraísos fiscais (tecnicamente possível através da tributação nas instituições centrais de compensação internacional). Isso ajudaria na implementação do ODS 17.1, justamente pedindo a melhoria da “capacidade interna de arrecadação de impostos e outras receitas”. Finalmente, o trabalho deve ser religado aos meios de produção, por ex. sob a forma de cooperativas ou participação dos trabalhadores. E uma maior apreciação deve ser demonstrada para o trabalho dos/as cuidadores/as.
Tese 10
Além dessas questões estruturais, é necessário redirecionar o pensamento, os sentimentos e as atitudes. Quando o dinheiro começou a estimular o pensamento calculista (“quanto eu posso ganhar?”), a competição e a perda de solidariedade, as religiões e filosofias responderam com engajamento por justiça, vida em comunidade e solidariedade (ágape). Isso indica duas coisas: 1. A civilização impulsionada pelo acúmulo ilimitado de dinheiro tem quase 3000 anos de idade. É impossível mudá-la e as atitudes determinadas por ela da noite para o dia. A superação deve ter uma perspectiva de longo alcance, mas também deve haver etapas intermediárias de curto e médio alcance e estratégias para alcançá-las. Por exemplo: para desenvolver uma nova ordem de propriedade, podemos começar com produtos e serviços básicos, como água, energia, transporte, educação e saúde. Eles devem ser públicos, mas estão sob constante ataque daqueles que querem privatizá-los, ou seja, só obter lucros com eles. As Organizações Baseadas na Fé devem fazer campanhas focadas para combater a privatização no campo dos ODS 1-4 e 6-7. Aqui não deveria haver Parcerias Público-Privadas. Entrementes muitas pessoas têm experiência negativa com serviços privatizados e podem ser motivadas para aceitar melhor os serviços públicos financiados por um sistema fiscal melhorado e controlados democraticamente, porque afinal as pessoas são diretamente afetadas. Outra área importante de financiamento para o desenvolvimento é acabar com os subsídios de capital para o agronegócio intensivo e, em vez disso, apoiar os produtores de alimentos orgânicos em pequena escala (ODS 2 b).
2. As comunidades religiosas podem revitalizar a mensagem de suas fontes originais, promovendo o bem comum, a justiça e a solidariedade - não apenas por palavras, mas pela prática. Elas têm estruturas comunitárias para renovar e podem fortalecer os movimentos populares que lutam pela economia pela vida, justiça e paz.
Para encerrar, repito o que disse no começo: Tudo isso está acontecendo enquanto a realidade já está nos alcançando - a “autoqueima da humanidade”, a morte de espécies, a destruição da coesão social, o desmantelamento da democracia, o resultado são guerras (civis) e migração forçada, para citar apenas algumas consequências sistêmicas.
Para as igrejas, este é um momento, o Kairos, a exemplo do que ocorreu na época Socialismo Nacional na Alemanha e do Apartheid na África do Sul. A integridade da igreja está em jogo quando o sistema dominante está conduzindo a terra ao abismo. Nenhuma ambiguidade é mais permitida, para citar as decisões ecumênicas internacionais. Quando é que é mais urgente que as comunidades de fé, em todos os níveis, resistam e defendam uma nova cultura de vida, unidas às pessoas mais afetadas - “os mais embaixo dos embaixo” (Mt 25,40) e suas organizações?
Ulrich Duchrow