Igreja e Sociedade



ID: 2797

Audiência Pública sobre o Projeto Lei 2516 de 2015 que institui a Lei de Migração

02/12/2015

Audiência Pública sobre o Projeto Lei 2516 de 2015 que institui a Lei de Migração
Pa. Romi Márcia Bencke (IECLB/CONIC)

Saudação à mesa;

Justificativa de ausência P. Nestor Friedrich

Agradecimento pelo convite feito à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)

Como e por que nos inserimos na discussão sobre migração e refugiados?

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, ao longo do ano de 2015, refletiu sobre a situação de migrantes e refugiados em momentos diversos. A Igreja tem orientado suas comunidades para a acolhida solidária a pessoas migrantes.

No mês de setembro desse ano, realizamos uma Consulta Internacional sobre o Migrantes e Refugiados reunindo a Igreja da Baviera/Alemanha e a IECLB, nos dias 20 a 23 de outubro a IECLB participou por meio de sua Instituição de formação teológica – Faculdades EST, da Consulta Internacional sobre Reforma – Educação e Transformação. O evento ocorreu no marco dos preparativos de celebração dos 500 anos da Reforma Protestante, ocorrida em 1517 na Alemanha. A consulta, que reuniu aproximadamente 120 pessoas de vários países, abordou, em diferentes momentos, os impactos da migração no continente europeu, mas também ouviu as vozes de pessoas que vivem nas áreas de conflito e onde muitas pessoas migram. Em especial: Nigéria, Egito, Grécia. Ambas as realidades são distintas, mas ambas sofrem as consequências dos conflitos, catástrofes e convulsões sociais que afetam os países mais pobres.

O tema migração não é um tema novo. Ele sempre esteve presente na história. No entanto, nesse início de século, tornou-se um fator decisivo para compreender as transformações atuais da geopolítica mundial. Nesse cenário, as ondas migratórias jogam um papel decisivo e são resultado do avanço do capitalismo, que passa por uma nova fase de partilha do mundo segundo os interesses das grandes potências econômicas e dos grandes grupos financeiros. Portanto, esta nova reconfiguração geográfica é tanto política quanto econômica.

Temas transversais implícitos presentes no assunto “Migração e refugiados” são os da xenofobia, fundamentalismo religioso, intolerância religiosa e racismo. Surgem termos novos como o da islamofobia e cristofobia. Não se pode ignorar ainda o crescimento expressivo da tensão entre acolher bem aos migrantes e refugiados e as demonstrações contrárias a eles. Surgem grupos extremistas em todas as partes, tanto nas regiões em conflito (EL, Boko Haram) quanto nas regiões receptoras dos migrantes (PEGIDA e outros grupos de extrema direita e com inclinações neonazistas). No Brasil, manifestações de ódio aos migrantes podem ser por isoladas, mas também ocorrem. É necessário ficar atento a esse fenômeno. Há a necessidade de evitar que temores importados como o preconceito contra o Islã não se legitimem por aqui.

Enquanto Igreja, a nossa vinculação com este tema também está relacionada com a nossa própria história no Brasil. A IECLB é consequência de um processo migratório ocorrido no Brasil nos séculos XIX e XX. É claro que as condições da migração eram muito diferentes da situação dos atuais migrantes e refugiados. Os migrantes do século XIX, apesar de estarem fugindo da situação de pobreza de seu país (Alemanha), vieram ao Brasil por causa dos interesses econômicos e políticos tanto do Brasil quanto da Alemanha. No Brasil, seriam úteis para a proteção das fronteiras, para fomentar o artesanato e a indústria, para aumentar a população branca (a política de migração era racista: ideologia do branqueamento das raças). O slogan era “fazer a América”. Esses migrantes não foram indesejados. No entanto, apesar disso, não deixaram de sofrer preconceitos, como o da intolerância religiosa.

Nesse sentido, não é possível ignorar o fato de que contextos de migração e refúgio, como o experimentado atualmente, tendem a intensificar incertezas e a reforçar sentimentos de que “tem alguém roubando o nosso lugar, o nosso emprego, o nosso país”.

No contexto de debate sobre o Projeto Lei 2516/2015 que pretende instituir uma nova Lei da Migração é fundamental ter o cenário atual das crises mundiais como pano-de fundo. O fato de estarmos discutindo sobre este Projeto Lei, nesse momento, não é mero acaso. Também nós, embora em grau muito menor que outros países estamos nos confrontando, cada vez mais, com novos fluxos migratórios. Diferentes de migrações passadas, essas não são migrações negociadas pelos países. Elas acontecem alheia à vontade das pessoas que migram e alheia à vontade das pessoas que residem nos países de destino. Ocorrem também alheias às vontades dos países. São migrações provocadas por catástrofes ambientais, aprofundamento da miséria, conflitos bélicos, extremismos religiosos. Em tempos de crise, grandes conflitos os sentimentos como nacionalismos, xenofobia, intolerância religiosa tendem a se fortalecer. O outro é visto como ameaça. É necessário responsabilizar alguém pelos infortúnios. Os responsabilizados são os migrantes e não os que provocam as situações de deslocamento humano.

Recupero um trecho de uma carta escrita pelo documentarista Stefan Berg, à revista Spiegel, criticando o preconceito e a insatisfação de parte da população alemã em relação aos migrantes e refugiados. Diz o documentarista: “Vocês, que nunca se perguntaram, como outros seres humanos deixam o seu país, arriscando suas vidas, que, para vocês, parecem ser sem sentido. Vocês precisam lembrar, que vocês têm e tiveram uma grande sorte. Se vocês olharem um refugiados nos olhos, terão que se lembrar, pelo menos por um momento, de suas próprias vidas. Se vocês ouvirem suas histórias, vocês se lembrarão de algo que é conhecido de vocês mesmos”.

Esta pequena citação nos obriga a refletir que a situação vivida por uma pessoa migrante ou refugiada não é um problema apenas dela. É um problema nosso também. Também nós somos migrantes. Até poucos anos atrás um número significativo de brasileiros e brasileiras migraram para países com melhores ofertas de emprego. Muitos brasileiros e brasileiras viveram/vivem como ilegais em outros países, em especial nos EUA. Também conhecemos a dor de ter que deixar o nosso país.

Essas histórias que nos envolvem e nos interligam é que devem fazer parte desse Projeto Lei. A discussão não é apenas jurídica. É uma discussão humanitária e, porque não, bíblica e teológica. O Conselho Nacional de Igrejas dos Estados Unidos, por exemplo, tem se posicionado firmemente contrário aos posicionamentos de congressistas daquele país que querem passaram políticas discriminatórias em razão da nacionalidade e pertença religiosa. Como comunidades de fé, precisamos oferecer e fortalecer as dimensões da acolhida e de superação de todas as formas de preconceito e discriminação.

Não podemos esquecer que na bíblia, a história do “povo de Deus” é uma história de migrantes, de pessoas que fugiram de situação de exclusão social, de guerras. Deus, está com as pessoas vulneráveis, expulsas de seus lugares. A grande promessa bíblica é a terra de uma prometida: que é qualquer lugar que ofereça as condições necessárias para a pessoa se desenvolver com dignidade e integridade. Jesus mesmo foi um errante, peregrino.

Nesse sentido, precisamos refletir o tema da migração e do refúgio desde a perspectiva dos direitos humanos. Não se pode ignorar a relação entre migração e justiça. De igual maneira, não é possível desconsiderar que nossa história como país não é de apenas um povo e uma só religião. É uma história multicultural e multireligiosa. Isso nos compromete a ter como princípio de qualquer discussão sobre migração e refugiados a perspectiva dos direitos humanos.

Foi com este olhar que analisamos o PL 2516/2015. Algumas questões nos chamam a atenção e gostaríamos de destacar como aspectos positivos desse PL. Em primeiro lugar, merece destaque que este PL tende a super a lógica de segurança nacional presente no Estatuto do Estrangeiro. O espírito de debate e participação da sociedade civil na proposição deste Projeto Lei é outra dimensão positiva. Outro destaque é a Seção 2 que apresenta os princípios e garantias que orientam este PL. São eles: a universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. Outro destaque positivo é o claro repúdio e prevenção à xenofobia, racismo e quaisquer forma de discriminação. Nesse item, talvez valesse incluir também o repúdio à intolerância religiosa, considerando que migrantes, podem pertencer a religiões que são alvo de intolerâncias, cito como exemplo o Vodu (Haiti). A perspectiva da acolhida humanitária é outra dimensão que merece destaque positivo, bem como o da promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional. A preocupação de que migrantes e refugiados sejam beneficiados por políticas públicas de acesso à educação, saúde e outras também merece destaque.

Ter esses princípios e garantias como orientadores é fundamental e essencial, em especial, quando lembramos os casos de agressões sofridas por migrantes nos anos de 2014 e 2015. Relembro alguns que saíram nos jornais: Reinald Joseph que foi espancado por três homens em Lajeado/RS. Amos Marcelin, também haitiano, que foi espancado por oito homens em Três Lagoas/RS, Maurice, que apanhou dentro da empresa onde trabalhava em Curitiba/Pr. Ele apanhou porque não queria mais ser chamado de “macaco e escravo”. Jogaram sobre ele bananas, quando Maurice afirmou que os brasileiros eram seus irmãos e que também ele é humano e filho de Deus. Na cidade de Curitiba há 13 casos de haitianos espancados dentro de empresas em que trabalhavam. Não podemos deixar de lembrar do haitiano Fetiere Sterlen que foi assassinado em Navegantes/SC.

A afirmação da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos portanto é imprescindível e sob hipótese alguma pode ficar ambígua nesse PL. O PL também não pode de maneira alguma dar margens para a criminalização da migração e nem correr riscos de institucionalizar a discriminação. Todo o PL precisa ser coerente com os princípios dos direitos humanos. Isso se torna mais necessário ainda se considerarmos o forte contexto de racismo que ainda vigora no Brasil. E, sabemos do número significativo de africanos e africanas que migram para cá.

Sendo assim, é necessário revisar o PL sempre ele tende a enfatizar algumas perspectivas: a da segurança e, como já dito, da criminalização dos migrantes.

A partir da análise realizada pelo CONECTAS e pela Sociedade Brasileira de Antropologia chamamos a atenção para o fato de que o texto do PL 2516, em sua redação atual, não superou completamente as perspectivas do medo, da aversão à diferença e da permissividade à precarização do trabalho dos e das migrantes.

Chamamos a atenção para as ponderações apresentadas por essas duas organizações e com as quais nos identificamos.

O primeiro destaque é para o artigos, em especial os parágrafos 1, 4 e 5, e para o artigo 25, que trata da “Autorização de Residência”.

1. Item I do artigo 4: não contempla os direitos políticos dos migrantes e refugiados. Ainda que a garantia desse direito dependa de uma mudança Constitucional, é fundamental estabelecer que tanto os nacionais quanto os não-nacionais, independentemente da situação migratória, poderão gozar de todos os direitos, inclusive os políticos.

2. O parágrafo 5 do artigo 4 distingue imigrantes registrados e não registrados. Nesse sentido, há uma restrição dos direitos dos migrantes categorizados como não registrados, já que esses migrantes não podem ter garantidos o direito XI do artigo 4, que fala sobre o cumprimento de direitos trabalhistas). Corre-se o risco de justificar a exploração do trabalho do “migrante não registrado.

Ainda no parágrafo 5º, o texto submete a garantia de alguns direitos fundamentais das pessoas migrantes à realização de um procedimento administrativo – a saber, o registro civil por dados biográficos e biométricos, cuja responsabilidade deveria recair sobre o Estado.

Dentre os direitos humanos que lhe são retirados estão direitos humanos básicos, como: a) Direito de reunião para fins pacíficos (inciso VI); b) Direito de associação, inclusive sindical (inciso VII); c) Direito de acesso à justiça e assistência jurídica gratuita (inciso IX); d) Direitos trabalhistas (inciso XI) e) Direito de liberdade de circulação (inciso XV); e f) Direito de reunião familiar (inciso III)

Esses direitos são essenciais para reinvindicação e garantia dos demais direitos humanos. Ainda, estariam igualmente excluídos direitos essenciais para a garantia de vida digna da população migrante, como: g) Direito a transferir recursos (inciso V) h) Direito à possibilidade de isenção de taxas (inciso XII); i) Direito a abertura de conta bancária (inciso XIV).

Compreende-se que tais critérios são pouco razoáveis e desproporcionais. Isso porque existem muitas outras medidas menos gravosas para atingir o mesmo fim, como a realização de campanhas de difusão e informação e a previsão de sanções administrativas em caso de não comparecimento do migrante.

3. Parágrafo Único do Artigo 25, Seção I (Da Autorização de Residência) do Capítulo III (Da Residência): o impedimento de residência ao estrangeiro condenado penalmente no Brasil ou no exterior (salvo as infrações tipificadas como de menor potencial ofensivo) se traduz numa legislação restritiva que viola os direitos daqueles estrangeiros que se encontram em situação carcerária (inclusive negando-lhes o direito à reunião familiar e ao casamento e união estável entre brasileiros e estrangeiros). Por isso, sugerimos a revisão ou retirada desse parágrafo único. Pensando na possibilidade um 2. Artigo que abra exceção ao estrangeiro preso.

4.

5. Um fator importante apontado pela ABA é que aproximadamente 43% dos artigos do PL se referem às formas de expulsão negação de entrada, deportação, repatriação e expulsão. O PL apresenta 4 longos capítulos (Capítulos V, VI, IX e X), compostos por 51 Artigos (de um total de 118 artigos) inteiramente dedicados ao controle migratório, às medidas de retirada compulsória (repatriação, deportação, expulsão, extradição), às medidas de cooperação (vinculadas a regulação da transferência de pessoas condenadas penalmente) e às infrações e penalidades administrativas aos migrantes. A manutenção da deportação e da expulsão como figuras legais tem como efeito a “criminalização da migração”, processo que o PL pretende evitar. A existência dessas categorias (mesmo quando não aplicadas) repercute diretamente na vida cotidiana dos migrantes devido ao seu alcance em termos de “expulsabilidade” e “deportabilidade. E torna-se incoerente com a perspectiva dos direitos humanos. Nesse sentido, é importante ficar claro a “ não detenção” por razões migratórias e que sempre sejam preservadas as garantias do devido processo.

É importante destacar que o PL precisa seguir em diálogo com a sociedade civil. A perspectiva dos direitos humanos, da não criminalização e discriminação da migração são critérios que precisam pautar essa discussão. Não são poucas as notícias diárias que vemos nos meios de comunicação que chamam a atenção para agressões físicas e, em alguns casos, mortes motivadas por intolerância e preconceito. Sabemos que uma Lei sozinha não é suficiente para superar violências e discriminações. No entanto, uma Lei coerente com os direitos humanos torna-se um instrumento importante para o fortalecimento de processos civilizatórios. O Brasil é caracterizado como acolhedor. No entanto, essa característica não pode ser apenas retórica ou propaganda para o turismo. Ela precisa ser expressa em todas as esferas. Ter uma Lei de Migração pauta do princípio da não discriminação e da não criminalização do migrante é dar um passo concreto para realmente assumir na prática essa fama de acolhedores e acolhedoras que temos enquanto brasileiros e brasileiras.

Na condição de cristã e defensora de um Estado Laico, recupero um princípio humanista que está na bíblia e que vale para essa discussão. Trata-se do versículo de Gl 3.27, “”Não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus.”

Traduzindo este versículo para uma linguagem laica, poderíamos dizer que nossa humanidade precisa ser o critério para a superação de todas as formas de discriminação e violência. Nesse sentido, os direitos humanos garantem que, desde uma perspectiva humanista, não deveria haver judeu ou grego, escravo ou livre, homem ou mulher. Nossas diferenças não podem ser motivo de criminalização e nem de discriminação. Ao contrário, devem ser valorizadas como expressão maior da riqueza da humanidade!

Obrigada!


Veja mais: IECLB participa de Audiência Pública sobre Lei de Migração
 


Autor(a): Romi Márcia Bencke
Âmbito: IECLB
Área: Missão / Nível: Missão - Sociedade
Natureza do Texto: Manifestação
ID: 36068

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