Quatrocentos e oitenta e sete anos se passaram desde que Martinho Lutero propôs à Igreja Cristã discutir posições de compreensão de fé e vida. No dia 31 de outubro de 1517, divulgou 95 teses que visavam, entre outros aspectos, a fazer novas considerações sobre a fé, a salvação e a postura cristã diante do mundo e da Igreja..
Ao contrário do que se via na época, a busca por uma nova compreensão de vida cristã tinha para Lutero uma motivação extremamente prática. Ou seja, a vida cristã deveria ter implicações transformadoras e renovadoras no âmbito social, cultural, político e existencial. A fé cristã deveria ser trasladada para dentro da vida do dia-a-dia. Deveria ter implicações práticas e não ficar restrita a mosteiros e catedrais.
Entre as doutrinas mais conhecidas da Reforma luterana está a da justificação pela fé. Ela traz a liberdade cristã para dentro da vida diária da pessoa que, por estar libertada pela graça de Deus em Jesus Cristo, não mais vive com medo da justiça condenatória, mas de forma livre passa a viver a justiça que dá sentido à vida de todas as pessoas, e não somente à do clero.
A outra, decorrente desta, é a que se tornou conhecida como a doutrina dos dois reinos. Quando se menciona os dois reinos, já o termo denuncia separação. Não distinção, mas separação, como sujeito e objeto. Essa compreensão se desdobrou em outras separações: lá (no além) o Cristo, aqui a lei; lá o Evangelho da graça, aqui a força da lei... Seria como falar em dois regimes de governo, em que não se vislumbra uma separação estanque entre as grandezas, mas uma diferenciação dentro de uma mesma grandeza. Ambos os regimes não estão apenas um ao lado do outro, mas numa inter-relação do tipo já agora e ainda não. Ou seja: com a reforma da Igreja passou-se a observar uma concomitância entre o reino anunciado por Jesus Cristo e a realidade vivida na vida aqui. Ambas as categorias não poderiam ser mais separadas nem proteladas. A vida cristã, segundo este pensamento da Reforma, deve acontecer numa completa interação de fé e vida.
Numa atualização dessa doutrina dos dois reinos, poderemos observar três aspectos relevantes para as igrejas cristãs neste aniversário da Reforma.
Primeiro, o reino de Cristo e o reino de mundo. O reino de Cristo acontece ali onde Ele é o Senhor, onde sob a palavra e sacramentos está presente de forma viva, onde reina o amor, onde os pecados são perdoados e onde nenhuma forma de poder é necessária. Esse reino exercita a realidade de que o rei do mal, de força infernal, não dominará; já condenado está por uma só palavra (do hino Castelo Forte). É neste âmbito que se vivencia o simul justus simul peccator, a condição de sermos justos e pecadores ao mesmo tempo. Portanto, Deus é Senhor sobre os dois reinos. Aqui ele rege com seu braço esquerdo, lá com sua mão direta, aqui com a lei, lá com o Evangelho, aqui com força, lá com a palavra, aqui com manutenção e lá com libertação.
Segundo, a distinção entre Igreja e Estado. A Igreja é a mensageira onde a fé se torna ativa pelo amor. Em sentido estrito, o Estado precisa da lei para não cair definitivamente no caos; por isso, se faz necessário o governo político. Significativo é constatar que Lutero não misturou nem confundiu os regimentos Igreja e Estado. Naturalmente, também não os separou e segregou, nem tentou fazer concorrência entre os dois. Critica, por isso, os entusiastas (Schwärmern) que fizeram do Evangelho sua espada. Desta forma, o ofício da lei no Estado se torna expressão do amor de Deus.
Terceiro, a distinção entre ofício e pessoa. A diferenciação feita por Lutero mostra que também a pessoa, ao exercer seu ofício, sua profissão, não pode fazê-lo dissociado do Evangelho do amor. Uma pessoa em seu ofício deve saber se dividir em quatro partes. A primeira, colocar-se diante de Deus com direito, confiança e oração cordata; segunda, colocar-se como servidor no amor de Cristo; terceira, saber coloca-se com razão contra sua própria natureza injusta; quarta, colocar-se contra os malfeitores com energia e determinação.
Desta forma, a Reforma da Igreja Cristã tem várias maneiras de interagir com a fé e a vida cristã em nossos dias. Seria interessante e promissor conhecer mais das propostas da Reforma, para que se viva com mais propriedade a liberdade e a justiça também em nosso País.
Rolf Rieck
pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB)
na Paróquia São Mateus
em Joinville - SC
Jornal ANotícia - 29/10/2004