Igreja e Sociedade



ID: 2797

A Distinção dos Dois Regimentos em Lutero e implicações para a Ética Política

18/12/2008

Quando você está diante de um dilema ético, a quem você recorre? Um amigo? Um conselheiro pastoral? Um governante diante de uma importante questão de estado procura nos seus conselheiros uma palavra que o ajude na tomada de decisão. Quando Lutero escreveu sobre temas éticos os desenvolveu a partir de suas pregações tendo em mente um destinatário concreto, alguém que estava enfrentando um dilema ético e necessitava de subsídios para tomar suas decisões.

Também hoje há dilemas éticos que precisam de respostas. Creio que, como teólogos, e também como obreiros em comunidades cristãs nossas posições são tomadas como normas para o discernimento ético. Por isto a importância de refletir nossa posição teológica e sua articulação para dentro dos diversos contextos, inclusive na política mundial, pois o que um pastor afirma diante da sua comunidade pode influenciar a maneira como estas pessoas escolhem seus representantes políticos e se envolvem na sociedade.

Neste estudo partimos de um problema concreto - Guerra no Iraque empreendida pelos Estados Unidos da América- e buscamos na teologia de Martinho Lutero subsídios para a tomada de posição.

Na distinção dos Dois Reinos cunhada por Martinho Lutero, o reformador apresenta uma distinção de como Deus age no mundo para a salvação eterna e para a manutenção da paz (os dois regimentos). Nela buscamos subsídios para a tomada de posição. Para isto analisamos quatro textos de Lutero. Em Da Autoridade Secular a distinção é apresentada em linhas gerais. Nos outros escritos, que são a rigor cartas para situações específicas, o reformador se posiciona diante dos ensinos de Müntzer e da iminência da Guerra dos camponeses a partir da distinção. Apresentamos também uma abordagem da recepção da distinção na teología luterana dos séculos XIX e XX e também por parte de teólogos da libertação luteranos brasileiros.<

Na distinção dos Dois Regimentos fica claro que o Evangelho, através do Espírito Santo, ensina cada cristão a não fazer o mal e a sujeitar-se ao sofrimento. O Reino de Deus é governado pelo Evangelho de Jesus Cristo e é por meio dele que Deus concede salvação. O Evangelho não é uma nova lei através da qual Deus quer que o mundo seja governado. Diante de uma realidade democrática a distinção precisa sublinhar a ação do cristão na busca por justiça e no fazer o bem ao próximo. A palavra de Lutero incentivando os cristãos a assumirem funções nos governos pode ser aqui sublinhada.

Como nenhum ser humano é justo e cristão por natureza Deus, os combate com a Lei para que não pratiquem a maldade conforme sua natureza pecaminosa. A função da Lei neste sentido é a de tornar o homem humilde para a graça (Rm 7.7, Gl 2.16ss). A autoridade civil foi constituída por Deus para coibir o mal, a injustiça e manter a paz externa. Sendo constituída por causa da maioria dos seres humanos cujos desejos são maus e cuja inclinação é devorar uns aos outros. Os cristãos não estão submissos a autoridade civil por necessidade, mas por amor ao próximo, pois desta forma ele fará o que é bom e proveitoso para o próximo. Como a autoridade é criação de Deus (Rm 12.1,4) o cristão pode fazer uso dela (1Tm 4.4) e como serviço especial a Deus ele deve inclusive ocupar a função de autoridade, mas nunca para benefício próprio. O limite da autoridade civil é nas questões temporais, pode cobrar impostos, estabelecer leis e julgar infratores, porém não pode exigir fé em algo ou estabelecer leis sobre assuntos de fé pessoal. A limitação do poder secular está em que se deve obedecer mais a Deus do que aos homens (At 5.29).

Os dois regimentos devem, neste mundo, permanecer um ao lado do outro, pois o regimento do Evangelho cria cristãos, enquanto que o regimento da lei, por meio da autoridade civil, coíbe o mal e mantém a paz. Como no mundo há tanto cristãos quanto não cristãos, e o desejo de Deus é tanto a salvação em Cristo quanto a manutenção da ordem, é necessário que tanto um quanto outro regimento permaneçam.

A Igreja deve ser crítica em relação aos governos que não promovem a justiça e os direitos humanos, deve defender a causa do pobre e marginalizado e com isto demonstrar que ama e que busca justiça em favor do outro. No 1º. uso da Lei fundamentamos que o cristão deve se envolver nas causas sociais e políticas através de movimentos da sociedade civil organizada que buscam justiça para o outro, também deve se candidatar a cargos públicos para que possa servir a Deus através da sua função, desempenhando-a com abnegação e amor ao próximo. Também deve viver responsavelmente diante da sociedade cumprindo as leis estabelecidas, exercendo seu direito ao voto e expresando suas convicções moldadas pela fé em Cristo. A Igreja prega a respeito das Escrituras e da vontade de Deus e cada cristão deve discernir quais projetos são coerentes com a justiça e o bem do outro. Neste sentido a fé cristã é crítica com as ideologias e deve cuidar para não abraçar acríticamente ideologias como se fossem cristãs. A diaconia é um modo de a Igreja agir responsavelmente diante da sociedade, envolvendo-se nas áreas da educação, saúde, cidadania, segurança, ecologia e meio ambiente, cultura e esporte.

Outro cuidado que se deve ter em relação a compreensão da distinção dos dois regimentos é quanto ao perigo que representa quando um determinado grupo, seja étnico ou denominacional, julga ser povo escolhido de Deus. Deus elege pessoas individualmente e as chama através do Espírito Santo no ofício da pregação (Confissao de Augsburgo 5), porém não elege nações ou grupos específicos, como fez com Israel. Quando um grupo, ou até uma nação julga ser cristã e, por isto superior as demais nações não leva em conta que nações não são cristãs, mas sim pessoas e a Igreja é cristã. A autoridade permanece como ordem da criação de Deus para a manutenção da ordem e da paz exterior e não como uma liderança moral e da fé em Deus.

Pontuo duas conclusões:

a) O etnocentrismo patriótico é uma ideologia que acentua o orgulho nacionalista. Nos EUA isto se percebe nas muitas manifestações patrióticas, nos discursos messiânicos dos presidentes, na crença de que o seu país é o maior que já existiu e o líder mundial da moralidade. Este etnocentrismo é alimentado por uma compreensão de que Deus favorece os propósitos dos EUA e está ideologicamente muito próximo da Teologia da Etnia que serviu de motor para o regime nazista na Alemanha. A teologia da etnia entendia que a etnia era uma ordem da criação, e nisto fundia a germanidade com o ser cristão. A Teologia da Etnia e o etnocentrismo patriótico têm a mesma lógica, ambos consideram a sua nação como ordem da criação, seu presidente como líder supremo inquestionável. Há uma identificação muito rápida entre cristianismo e os propósitos da nação americana. Os discursos políticos amparados num linguajar inspirado na Bíblia demonstram esta identificação. Tanto a teologia da Etnia quanto o Etnocentrismo patriótico fazem uma fusão entre regimento do mundo e o regimento do Evangelho, tornando a liberdade evangélica em motivo político para a intervenção em assuntos de outras nações.

b) O intervencionismo, motivado por interesses econômicos, especialmente pela obtenção de petróleo barato, não respeita as vontades e necessidade do outro, e como egoísmo de uma nação, representa um desamor por parte do governo americano. Um governante como Bush, que se confessa ser cristão, e um Congresso, como o americano composto por 60% de Evangélicos, deveriam apresentar frutos de justiça, como amor, paz e bondade, e não implementar políticas intervencionistas. Não queremos com isto afirmar que um governo composto por verdadeiros cristãos seria livre de pecados, pois cada um permanece pecador. É de se estranhar, porém, que uma massa tão grande de cristãos no poder não faça qualquer diferença na política da sua nação.

O quinto artigo da Declaração teológica de Barmem afirma que uma das tarefas da Igreja é chamar a atenção das autoridades para suas reais responsabilidades. Este posicionamento crítico à Guerra no Iraque quer ser um modo de chamar atenção das autoridades para sua verdadeira função neste mundo, que na ótica da distinção dos dois regimentos é manter a ordem pública e punir os infratores, proporcionar justiça para os cidadãos, fazer o bem, procurar a paz, e zelar pela vida. Políticas sociais, econômicas e inclusive militares precisam levar em conta estas tarefas. Como Igreja nossa tarefa não é a de advogar um sistema político ou econômico em específico, nem eleger pessoas para governar de acordo com algum interesse denominacional específico. Chamamos à atenção de cada cristão para que participe da vida pública de forma responsável, como serviço especial a Deus, mas não crendo que seja melhor do que outras pessoas. Não há espaço para o orgulho, antes é preciso humildade para reconhecer-se como pecador e dependente de Deus. E na nossa dependência de Deus é que clamamos por causa de tanta injustiça e desamor Kyrie Eleison! Tem piedade de nós, Senhor!

Alexander De Bona Stahlhoefer - Missionário da Missão Evangélica União Cristã (MEUC)


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