História do povo evangélico luterano


ID: 2927

Cento e Noventa Anos de Vidas Luteranas em Comunhão: Esquecimentos e Lembranças

17/10/2014

Cento e Noventa Anos de Vidas Luteranas em Comunhão: Esquecimentos e Lembranças
(Palestra no XXIX Concílio da IECLB – Rio Claro/SP. 15 a 19/10/2014)

Pastor Dr. Martin Norberto Dreher

Jamais conseguimos preservar o todo, jamais conseguimos lembrar o todo. Uma das dores do ser humano são seus esquecimentos. Outras vezes, esse mesmo ser humano quer, desesperadamente, esquecer; pede para ser esquecido; quer ser perdoado. Sem lembranças, no entanto, não sabemos quem somos e não sonhamos. Cristãos, porém, lembram para não esquecer. Já no Antigo Testamento, o povo de Israel fixou lembranças para não esquecer uma história cheia de pecados e de graça:

Arameu, prestes a perecer, foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao Senhor, Deus de nossos pais; e ele ouviu a nossa voz e atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar, e nos deu esta terra, que mana leite e mel.” (Deuteronômio 26.5-9).

Temos aqui Credo confessado na História. O mesmo faz a primeira comunidade cristã ao dizer:

Jesus, o Nazareno, varão aprovado por Deus diante de vós, com milagres, prodígios e sinais, os quais o próprio Deus realizou por intermédio dele entre vós, como vós mesmos sabeis; sendo este entregue pelo determinado desígnio e presciência de Deus, vós o matastes, crucificando-o por mãos de iníquos; ao qual, porém, Deus ressuscitou, rompendo os grilhões da morte; porquanto não era possível fosse ele retido por ela. (...) A este Jesus Deus ressuscitou, do que todos nós somos testemunhas. (..) Esteja absolutamente certa, pois, toda a casa de Israel de que a este Jesus que vós crucificastes, Deus o fez Senhor e Cristo.” (Atos 2.22-24,32,36).

Da junção da tradição de Israel e dos Apóstolos decorre o fato de não haver culto cristão sem confissão de fé comunitária que diz do Deus Criador, do Filho Redentor e do Espírito Santo Consolador e Animador. Confissão de fé comunitária fala da experiência com Deus, da certeza de que Deus entra e participa de nossa história, continua presente em nossa história. Por isso, falamos de sua presença em nossa caminhada. Nossa comunhão só é possível por causa de sua presença, mesmo quando o sentimos ausente. Mas, também na ausência Deus se faz presente. A comunidade o sabe: é sua experiência de cruz. A maior expressão da pregação de Jesus é a Diaconia. Nela é que se tem os sinais do Reino de Deus. Ali onde parece que Deus está ausente, a comunidade luterana coloca sinais de sua presença, consolando, edificando, curando, caminhando até a sepultura, acolhendo pessoas para as quais não há mais espaço, que nada sentem de prosperidade. A solução não é deixar de sofrer, mas falar do Deus sofrido que sofre com os que sofrem e lhes dá esperança de vida que é eterna, experimentada já aqui na comunhão.

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana é aquela parte do Povo de Deus no Brasil que experimentou Sua presença de maneira especial e peculiar. Tem o privilégio de ser a primeira comunhão cristã a congregar dissidentes religiosos cristãos de maneira permanente no Brasil e a abrir caminhos para os direitos dos diferentes. A IECLB foi a primeira a lutar para que todos pudessem ter acesso a cemitérios, ter seus matrimônios reconhecidos e seus filhos não mais serem considerados filhos naturais. Foi o primeiro grupo humano no Brasil a lutar por liberdade religiosa e, por isso, de consciência. Por isso, não pode desistir de acentuar o legado da reforma Luterana trazida ao Brasil por gente “prestes a perecer”, muitos dos quais também aqui pereceram, mas souberam confessar “Devemos temer e amar a Deus e confiar nele sobre todas as coisas”.

Em Sorocaba/SP encontramos o primeiro cemitério luterano do Brasil. Ali, imigrantes suecos sepultaram uns aos outros, pois não havia pastor luterano. Ali viveu o filho de pastor luterano cuja mãe Raquel, avó de nosso primeiro historiador, Francisco Adolfo de Varhagen (Visconde Porto Seguro), em Berlim, participava do círculo dos estudiosos em torno de Friedrich Daniel Schleiermacher. Os luteranos de Sorocaba tiveram sorte semelhante aos de Santo Amaro/SP que sepultaram seus mortos no cemitério da Colônia, sem acompanhamento pastoral e que iniciaram ali suas vidas chorando, pois alguns haviam sido separados de suas famílias, inclusive crianças de colo, quando da partida do porto de Amsterdam-Texel (1828). IECLB surge como igreja comunitária. É igreja de base. Imigrante que participou dessa tragédia escreveu: “Temos um Deus que nos ajuda e o Senhor, Senhor que salva da morte – Salmo 68, v. 21” (Johannes Weber, em 20/11/1828).

Morte foi experiência que acompanhou luteranos brasileiros ou a caminho do Brasil em todas as épocas. Morte é experiência que continua a nos acompanhar. Como diz Lutero: “Em meio ao tempo de nossa vida estamos envoltos na morte: A quem buscamos, que nos dê auxílio, de quem obtenhamos graça, a não ser a ti Senhor, somente?” Mesmo em meio à violência, à doença terminal, Igreja de Confissão Luterana tem o que dizer. Ela é diacônia. Morte foi experiência de nosso primeiro pastor ao sepultar por primeiro em Nova Friburgo/RJ seu filhinho, após haver sepultado no mar sua esposa, mãe da criança. (A anotação de Friedrich Oswald Sauerbronn é o primeiro documento da história da IECLB). Morte foi experiência de nosso segundo pastor, João Jorge Ehlers, ao ver seu filho morto na Revolução Farroupilha por bala de canhão. Morte foi experiência de nosso terceiro pastor ao ser degolado durante a mesma revolução por forças imperiais legalistas. Morte também foi a experiência de cristãos luteranos na Guerra Cisplatina, na revolução Farroupilha, na Guerra do Paraguai, da qual já participariam luteranos do Vale do Itajaí/SC. Em 3 de outubro de 2014, sepultamos o pracinha Alfredo Weiss, de Rio do Sul/SC, guarda do cemitério de Pistoia, na Itália, onde se encontravam sepultados outros membros de nossas comunidades. Igreja de Confissão Luterana sempre acompanha irmã e irmã até à sepultura, pois tem esperança para além túmulo.

Mas, principalmente, Vida foi experiência de cristãos luteranos ao poderem deixar na Europa situações de Morte. “Somos gratos a Deus por havermos empreendido a vigem, pois na Alemanha jamais teríamos chegado ao que chegamos. [...] Vivemos aqui em um país que se assemelha ao paraíso.” (Peter Paul Müller, em 16 de junho de 1826).

Essas formulações nos poderiam auxiliar a “inventar” IECLB e a escrever história que não corresponde ao real. História, porém, se desenvolve entre Vida e Morte, entre Graça e Pecado. Essa é a experiência da IECLB. IECLB é Igreja de Comunhão e, simultaneamente, Igreja de Difícil Comunhão.

Essa tensão, esse paradoxo tem sua origem na procedência de seu povo. Sempre é bom lembrar que IECLB não surgiu a partir da decisão de alguma sociedade missionária ou da atividade missionária de alguma denominação, mas da fé de leigos e leigas e tem se mantido a partir dessa fé. Sua fé é plural, pois desde o início suas comunidades foram plurais e buscaram por unidade na pluralidade. Nesse aspecto ela é, por exemplo, bastante diferente da IELB, brotada da atividade de missionários que juntam povo em torno de conceitos já fixos e estabelecidos. A IECLB surge de negociações e continua negociando, por vezes até demais. Talvez seja importante implementarmos mais o que negociamos.

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil foi formada por cristãos que vinham de diversas igrejas territoriais alemãs ou de igrejas de tradição reformada da Suíça ou da Holanda, mas também da Escandinávia, da Dinamarca, da Ucrânia, da Rússia, mas houve também pessoas de tradição anabatista. Em sua maioria haviam estado incorporados a igrejas territoriais, nas quais o príncipe exercia o supremo episcopado. Não raro, quem exercia esse episcopado era o latifundiário, denominado de “Junker”. Mas havia também tradições mais democráticas, trazidas por suíços. Eram luteranos, calvinistas, unidos, anabatistas, mas esses conceitos não dizem de realidade mais profunda. Todos vieram em épocas distintas, ao longo dos séculos XIX e XX. Eram herdeiros de tradições que já contavam quatrocentos anos. Tinham tradições que vinham dos primórdios da Reforma, segundo as quais a religião era base da sociedade; outros haviam se apropriado de tradições barrocas surgidas em época, na qual base da sociedade já eram o Estado e o Mercado e em que o cristão, por isso, saía do mundo para se reunir em comunidades de piedade, daí ser designado de pietista, pouco querendo saber de ortodoxias. Outros estavam influenciados pelo pietismo, valiam-se da crítica bíblica dos mesmos, usada para fazer frente à ortodoxia, mas queriam usar mais as luzes da Razão. Eram Ilustrados. Através de lojas maçônicas buscavam lutar pelo direito à diferença. Por isso, não deve causar estranheza o fato de o primeiro templo luterano de Joinville/SC ter sido a antiga loja maçônica e de templo luterano e loja maçônica terem usado o mesmo terreno em Porto Alegre.

Como formar Igreja com tantas e díspares tradições? Como formar Igreja em período da história da humanidade em que já era conquista o direito do ser humano à “opção”? A IECLB é exemplo de como diferentes “tendências” podem conviver, mas como também podem se confrontar e enfrentar, provocando dor, sofrimento e cisões, colocando – o que também deve ser confessado (!) – o Evangelho de lado. Exemplo de como tendências podem conviver encontramos em Teófilo Ottoni/MG, onde para poder pregar o Evangelho, o Pastor João Leonardo Hollerbach se via obrigado a celebrar o culto ora em tradição calvinista ora em tradição luterana, ora com o Afgod (ídolo em holandês), o crucifixo, com castiçal, flores e velas; ora sem altar e tradições luteranas. Hoje o templo central resultante de seu trabalho paciencioso leva por nome “Igreja Martin Luther”. – Na comunidade que nos hospeda, os reverendos Johann Jakob Zink e Theodor Albert Koelle, ambos luteranos de cepa, ensinaram o Catecismo de Heildelberg (de tradição reformada) e o Catecismo Menor de Lutero para poderem reunir em uma comunidade suíços reformados e alemães luteranos; mesmo sendo puritanos, souberam mediar entre puritanos e bailantes. Em outras áreas, neopuritanos não souberam conviver com vétero-puritanos do que se gerou, há 140 anos, o massacre dos Mucker, em Sapiranga/RS, e a desconfiança em relação aos que frequentavam a Escola de Confirmandos de Santa Isabel/SC. Houve os que preferiram deixar a fé dos pais, pois tal postura facilitava a integração na vida brasileira, outros como os de Domingos Martins/ES enfrentaram o Presidente da Província, do qual exigiam a promessa de fornecimento de pastores, quando este os aconselhou a que se tornassem católicos: “Não viemos ao Brasil para nos tornarmos católicos!”. A IECLB é formada por povinho complicado, lutador e decidido que encontrou caminho e continua a por ele lutar.

Não menos complicado, lutador e decidido foi nosso clero. Nossos primeiros pastores, lamentavelmente, foram desqualificados por colegas que os sucederam e que desconsideraram as condições sob as quais trabalharam. Sauerbronn, atuando em Becherbach/Alemanha, pregava em igreja simultânea, na qual católicos e luteranos celebravam missas e cultos. As cartas, nas quais lembra ao Império as promessas que lhe haviam sido feitas, as lágrimas que derrama quando passa fome, nos comovem ainda hoje. Ehlers também foi professor luterano e entre seus alunos em Hamburgo estava Johann Hinrich Wichern, o pai da Missão Interna Alemã. Ehlers não tinha “pavio”; era temperamento explosivo. Veio viúvo e o Estado brasileiro lhe tirou a guarda do filho e das filhas, pois se colocou ao lado dos farrapos. Não sabemos onde morreu. Más línguas afirmaram que negara a fé luterana no Rio de Janeiro. Klingelhoeffer, de Campo Bom/RS, morreu degolado na Farroupilha. De Carlos Leopoldo Voges, Três Forquilhas/RS, se afirmou que fora seminarista católico. Impiedosamente, foram desqualificados. Teologicamente, temos que perguntar: De quem Deus se vale para anunciar seu evangelho? De gente nem sempre muito recomendável! Klingelhoeffer e Voges foram proprietários de escravos. Brutschin, primeiro vice-presidente do Sínodo Rio-grandense, herdou bens de seu sogro escravocrata. Será por acaso que o reformador Martim Lutero nos tenha legado como últimas dentre suas muitas palavras a sentença: “Wir sind Bettler, hoc est verum” (Somos mendigos, esta é a verdade). Semelhantes foram as apreciações feitas em relação a Hoelzl e Hofmann, em Joinville, de Oswald Hesse, em Blumenau. Pior foi feito com aqueles luteranos em regiões para as quais não vieram pastores da Europa, mas que se sentiram chamados e animados por irmãos e irmãs a assumirem funções pastorais. Foram desqualificados por seus “colegas” como pseudopastores. Eram colonos pastores. Um deles, por ter nascido em Trier (terra natal de Karl Marx) logo foi qualificado de “comunista”. Sem eles, no entanto, não existiria IECLB. Em reverência menciono o nome de Alexander Voss, sepultado no Cemitério dos Brauch no interior de São Lourenço do Sul/RS.

Foi somente quando a Suíça começou a se interessar pela sorte de seus súditos emigrados ao Brasil e quando a Prússia em expansão saiu à procura de mercados para seus produtos que nossas comunidades ficaram economicamente interessantes e passaram a ser assistidas espiritualmente a partir da Europa. Aí então foram consideradas dignas de serem preservadas. Já tinham quarenta anos de existência. Tinham suas capelas, suas escolas, seus cemitérios, mas lutavam para que seus filhos não fossem considerados bastardos e para que seus matrimônios fossem reconhecidos como válidos. Suíça e Prússia passaram a nos enviar obreiros, os quais formaram clero multicor. Vieram da parte da Sociedade Missionária de Basileia, da Sociedade Missionária de Barmen, do Comitê para os Alemães Protestantes na América, quase todos fortemente influenciados pelo Reavivamento, capazes das maiores renúncias. Quando o movimento neoconfessional se manifestou, a Associação das Caixas de Deus (o Gotteskasten) nos enviou obreiros formados em Neuendettelsau, em Hermannsburg, em Breklum, em Leipzig. Houve obreiros que vieram da África, outros dos Estados Unidos, regiões para as quais haviam sido enviados pelas sociedades missionárias antes mencionadas. Outros daqui partiram para os EEUU. Em 1900 a Igreja Territorial da Prússia publicou Lei Eclesiástica, possibilitando a filiação de nossas congregações àquela Igreja Territorial. Assegurava complementação salarial, auxílios a comunidades que mal se conseguiam manter. Esse auxílio foi importante. Por trás dele havia, contudo, interesse político expansionista. Nossas comunidades tiveram que se declarar, expressamente, “alemãs” em sua denominação o que fez com que, muitas vezes, o designativo “alemão” se tornasse quase que identificação confessional. Membros que não falassem mais o alemão deveriam ser encaminhados a outras denominações protestantes (anglicanos, metodistas e presbiterianos). Quebrou-se aí com encaminhamento que já estava em andamento: o abrasileiramento da igreja. A Igreja da Prússia criou, especialmente para o Brasil, a Argentina e o Chile, um Seminário Evangélico para a Diáspora que teve diversas sedes (Soest, Stettin, Ilsenburg). A esses obreiros a IECLB deve para algumas regiões liturgia uniforme, tomada da Igreja da Prússia; outras regiões tiveram sua liturgia influenciada pela Igreja Evangélica Luterana Bávara.

A vinda de obreiros europeus foi importante para o encaminhamento de formação de Igreja Nacional. Depois de tentativa dos obreiros de Basileia, surgiram a partir de 1868/1886 igrejas regionais, segundo modelo já experimentado nos EEUU, designadas de Sínodos. Foram quatro os sínodos que, posteriormente, se fundiriam na IECLB. Lembro que um quinto sínodo formou a Igreja Evangélica Luterana do Brasil. Os sínodos procuraram promover comunhão entre comunidades e paróquias. Criaram instituições da Missão Interna (orfanatos, casas de idosos, pregação itinerante, folhetos evangelísticos). Fomentaram o ensino fundamental e superior, formando professores, produzindo material didático. Num país de analfabetos, as comunidades da IECLB foram campeãs na área educacional de base, chegando inclusive a determinar programas curriculares. Não há razão para sentimento de inferioridade no seio da IECLB. Esta pequena Igreja tem sido importante fermento na sociedade brasileira, tem sido importante protagonista, anunciando fé que não aliena, mas que redunda em obras de amor . Suas contribuições na área educacional e diaconal são consideráveis. Desde meados do século XVII luteranos conseguiram impor, na Europa, o ensino obrigatório até o 13º ano de vida para ambos os sexos e a tradição foi trazida ao Brasil. Mas, as comunidades, com a participação efetiva de mulheres se dedicaram também à área da saúde e à diaconia feminina. Na IECLB antes que se formassem pastores, formamos professores, professoras e diaconisas. Foi aqui em Rio Claro/SP que surgiu o primeiro grupo que viria a formar a maior organização feminina da América do Sul, a Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas. O campanário do templo, no qual foi celebrado o culto de abertura do presente concílio geral é a primeira obra visível da OASE. Que seja preservado o nome de Juliana Jacobina Zink Kölle. Preservado também seja o nome de sua irmã, a Diaconisa Sophie Zink, primeira diaconisa de nossa Irmandade, nascida em Rio Claro/SP.

Se para a formação da IECLB foi importante a vinda de obreiros da Europa, da África e dos EEUU, devemos também reconhecer que tais obreiros formavam corpo nada uniforme. Se plurais eram as tradições teológicas dos evangélico-luteranos, plurais eram também as tradições de seu clero. Essa pluralidade, não raro, levou a cisões ou a opções por outras denominações. O primeiro livro de batismos e matrimônios dos metodistas do Rio Grande do Sul contabiliza expressivo número de pessoas antes luteranas. Cisões houve desde a chegada de obreiros oriundos da atual Lutheran Church-Missouri Synod. Cisões houve com a chegada de movimentos de reavivamento no seio das igrejas territoriais alemãs. Lembro aqui apenas o Cristianismo Decidido. Outros movimentos de reavivamento puderam se integrar. Devemos recordar estes fatos para não “inventarmos” IECLB. No todo, porém, ouso afirmar que na IECLB houve junção frutífera da teologia da Reforma do século XVI, de tradições barrocas (Pietismo) e da Ilustração Alemã. Frutíferas foram também as discussões advindas do confronto do Evangelho com ideologias. Ao saber discutir com representantes da Ilustração que também migraram para o Brasil, a IECLB lutou por espaços para o pensamento histórico-crítico em um país de tradições pré-críticas. Na Igreja de Confissão Luterana é fundamental a participação de crentes com capacidade de discernimento. Será por acaso que boa parte dos professores universitários brasileiros tem sua origem na IECLB? Será por acaso que tenhamos colocado ênfase no Catecumenato Permanente, em Programa de Educação Cristã Contínua?

A já mencionada Lei Eclesiástica da Igreja Territorial da Prússia de 1900 teve outras faces, estas negativas. A Lei retardou a autonomia da IECLB. Em sua grande maioria nossas comunidades se filiaram à Igreja da Prússia que nomeou, então, um Representante Permanente, como sede inicial em Porto Alegre, com o título “Prepósito”. Essa figura significou administração paralela, pois esvaziou as funções dos Sínodos. A relação mais estreita então efetivada com o Reino Alemão nos tornou vulneráveis. Mesmo sendo já brasileiros de terceira e quarta geração, nossos membros e comunidades foram vistos como representantes de potência estrangeira, levando inclusive à perda de bens, roubo e assassinato de parte de órgãos policiais brasileiros. A escola luterana de Florianópolis/SC foi transformada em centro de tortura primeiro por Vargas, depois pelo regime militar de 1964. Mais grave ainda foi a postergação na formação de lideranças nacionais. Nosso primeiro centro de formação teológica só veio a ser instalado no final de 1945. Nossa autonomia só foi alcançada na década de 1950, quando passamos de Igreja-filha à condição de Igreja-irmã, depois de termos estado sob administração da Igreja da Prússia, da Associação das Caixas de Deus, da Federação das Igrejas Evangélicas Alemãs, do Departamento para o Exterior da Igreja Evangélica (da) na Alemanha. Somos gratos às Igrejas que nos auxiliaram, o que não nos impede de também considerar críticas.

A década de 1950 significou para as Igrejas Luteranas dos EEUU a perda do grande campo missionário da China e Cuba. Seus missionários foram, então, enviados à América do Sul, também à IECLB. Daí decorreram novos impulsos, mas também novos influxos que levaram a comunhão, mas também a tensões. Expressões da teologia evangelical norte-americana passaram a se fazer sentir. Da mesma forma, viriam obreiros da Escandinávia, especialmente da Noruega. IECLB existe entre comunhão e tensão.

Se nos detivermos nos últimos sessenta e quatro anos de nossa história, deparamo-nos com riqueza impressionante. Em nosso Primeiro Concílio, realizado em maio de 1950, em São Leopoldo, nossos pais e mães decidiram que seríamos com todas as consequências Igreja de Jesus Cristo no Brasil, que seríamos determinados pela reforma de Martim Lutero e que teríamos relações com as igrejas reunidas na Federação Luterana Mundial e no Conselho Mundial de Igrejas. Essa intenção ficou expressa em nosso nome, mas também em todos nossos bons e maus momentos. Nossos pais e mães não sonhavam em 1950 que estávamos no limiar entre Modernidade e Pós-Modernidade. Passamos de sociedade agrária para sociedade industrial. Se essas transformações no século XIX haviam expulsado luteranos da Europa rumo ao Brasil, agora expulsavam luteranos para novas fronteiras agrícolas e para os centros urbanos. Tínhamos experiência com novas áreas de colonização, mas nossa experiência urbana era mínima. Tivemos frutífero trabalho com Academia Evangélica, encerrada quando governos militares proibiram concentrações de pessoas, formamos professores catequistas, procuramos por formas de mordomia responsável em termos de bens, tempo e talento. Incrementamos evangelização e pastoral universitária. Desde 1969 ocupamo-nos com assuntos rurais e com temáticas político-sociais. O Brasil fervia no campo e na cidade. Havia muita repressão por parte dos órgãos de segurança. Houve membros de comunidade que atuavam como informantes do DOPS e denunciavam outros membros e pastores. Em 1970 tivemos baque com a Transferência da 5ª Assembleia Geral da FLM de Porto Alegre para Evian, mas o tema “Enviados ao Mundo” nos animou, tanto assim que em outubro de 1970, o Concílio Geral da IECLB aprovava o “Manifesto de Curitiba”. Nele, confessamos que a Igreja deve dirigir-se “ao homem como um todo, não só à sua alma” e acentuamos que essa visão “terá consequências e implicações em toda a esfera de sua vigência – inclusive física, cultural, social, econômica e política [...] sobre todas as questões relacionadas com o bem comum.” Desde então, a IECLB soube solicitar anistia, falou da situação dos colonos afetados pela construção de barragens, discutiu com a FUNAI, exigiu a aplicação do Estatuto da Terra e a realização da Reforma Agrária. E, teve profundo envolvimento ecumênico. Numericamente nada mais que uma “igrejinha”, a IECLB tem sido importante fermento na massa que é a sociedade brasileira. Será acaso o fato de que quando se menciona nomes de teólogos brasileiros, percentual considerável deles tenha sido formado pelas comunidades da IECLB? Menciono aqui apenas dois nomes precocemente falecidos: Breno Schumann e Milton Schwantes. É a IECLB quem mais está formando teólogos e teólogas para os centros de formação teológica no Brasil, sejam eles católico-romanos ou pentecostais.

De onde brotavam as temáticas e preocupações da IECLB nos últimos sessenta anos? Da própria história do povo da IECLB. Éramos povo de migrantes para novas áreas de colonização e para os centros urbanos. Havia também aqueles que tinham que migrar para além das fronteiras do Brasil em decorrência do surgimento do lago de Itaipú. Estávamos na Amazônia, na Calha Norte, já em Santa Helena, na Venezuela. Novamente promessas atraíam pessoas para a Transamazônica.

Os temas e os lemas da IECLB nestes últimos 60 anos mostram o crescimento de uma igreja para dentro do contexto brasileiro. Se do primeiro ao sétimo concílio, se de 1950 a 1970 estivemos preocupados em discutir nossas bases confessionais, nossa estrutura, estatutos e regimentos, desde o sétimo (1970), em Curitiba, a ênfase passou a ser outra. A temática “enviados ao mundo” não se preocupava apenas com responsabilidade social, mas acentuava também a necessidade permanente da evangelização.

A evangelização sempre esteve presente em nossa história. Por meio dela não só buscamos edificar comunidade, mas também levar o evangelho a todos, como o fez o Pastor Hollerbach saindo do Nordeste de Minas até à Bahia. Os pastores Haupt, Schwantes, Gütiner, Richter dedicaram-se a povos indígenas. Kuhr, Stysinski e Kölle evangelizavam no Paraná, no Planalto do Rio Grande do Sul, em São Paulo e no Mato Grosso. Houve evangelização permanente baseada no pietismo luterano através da Missão Evangélica União Cristã e do Cristianismo Decidido, do qual emergiu a figura carismática de Alcides Jucksch. Lembro a atividade iniciada por missionários luteranos dos USA, depois integrada à IECLB, na qual tem suas raízes o trabalho do Movimento Encontrão que acentuava e acentua a necessidade da experiência de uma relação pessoal com Jesus, aliada à criação de grupos, nos quais se estuda, compartilha e ora. Na IECLB existiram e existem diferentes formas de evangelização e nelas se expressam diversas tendências do ser cristão, que refletem também os diferentes contextos em que vivem cristãos. Outros acentuaram a necessidade de pastoral popular junto a camponeses e operários.
Se o contexto para dentro do qual IECLB crescia levava a acentuar evangelização e promoção social, esse mesmo contexto lançava novos desafios. De forma crescente desde a década de 1970 as forças da Pós-Modernidade se faziam presentes no Brasil. Igreja antes rural, a IECLB não soube oferecer de forma adequada acolhida a seus migrantes. Igreja comunitária não soube oferecer comunitariedade a quem migrava do campo para a cidade. Muitos dos migrantes buscaram acolhida em igrejas pentecostais. Por isso, em algumas comunidades optamos por ser igreja de grupos e aí redescobrimos o sacerdócio de todos os crentes. Em outras, seguimos com o modelo do atendimento aos “associados” e tivemos defecções importantes.

Mais graves, porém, foram e são as consequências da Pós-Modernidade para a IECLB em outro aspecto. Se no período anterior à Modernidade a Religião era base da sociedade, na Modernidade, Estado e Mercado passaram a ser base desta mesma sociedade. Na Modernidade, o mundo era ateu e as comunidades eram formadas por pessoas que por elas optavam ou a elas se “convertiam”. Eram crentes. Na Pós-Modernidade o domínio é do Mercado. E, o Mercado só conhece consumidores. Nessa sociedade dominada pelo Mercado, Igreja deixa de ser “comunhão dos santos” para ser tornar “santos consumidores”. Ela adquire a estrutura de Shopping Center, que é frequentado por consumidores de Religião em busca de produtos. Produtos são adquiridos por dinheiro e a Religião é monetarizada. Nada é “de graça”. Tudo é sacro negócio. Não há mais pecadores, apenas consumidores. Sem pecado, o ser humano é considerado vítima de demônios, frente aos quais o nome “Jesus” funciona como exorcista. O Evangelho da graça e da misericórdia de Deus já não parece mais ser chamativo, pois como se pode falar de graça e misericórdia em mundo dominado pelo Mercado? O que vale são as leis do Mercado que oferece produto religioso em belas embalagens.

Quinhentos anos após a Reforma do século XVI, no entanto, suas temáticas são muito atuais e cento e noventa anos após a chegada de sua mensagem ao Brasil, elas tem que ser reacentuadas sob pena de perdermos o Evangelho. Por isso, se faz necessária esta lembrança: A IECLB tem mandato desta Reforma e é por ela responsável.

Antes de mais nada, é necessário acentuar o

(1) primeiro mandamento: “Eu sou o Senhor teu Deus, não terás outros deuses além de mim” e a explicação de Lutero “Devemos temer e a amar a Deus e confiar nele sobre todas as coisas”. Em um mundo em que foram inventadas as cartas de crédito (indulgências) e em que o Evangelho sob a influência do emergente capitalismo era comercializado, o grito da Reforma Luterana foi: “Vamos deixar Deus ser Deus!” Vejamos seu rosto assim como ele se nos mostrou no Cristo crucificado. Tomemos o Cristo crucificado como medida para nossa fé. Em Jesus, Deus vem a nosso mundo e dá de graça seu amor, seu perdão. Deus aceita o ser humano incondicionalmente, de graça! Deus não é Deus da prosperidade, mas aquele que acolhe o que está à beira do caminho. Cabe à IECLB reacentuar: “Quando Nosso Senhor e Mestre disse: ‘Fazei penitência’, quis que a vida dos crentes fosse um contínuo arrependimento.” (31 de outubro de 1517). O amor de Deus não pode ser comprado!

(2) Se não conseguirmos afirmar que devemos deixar Deus ser Deus, jamais conseguiremos dizer que o Deus justo é o Deus que se compadece do pecador e que o aceita incondicionalmente, em Jesus Cristo. Não lhe impõe condições, mas apenas espera que Nele confie. Deus se compadece dos injustos, de pecadores que creem. Justificados por graça e fé.

(3) Para nossos pregadores e pregadoras é de fundamental importância que saibam distinguir na Palavra de Deus as duas partes que formam seu peitilho: Lei e Evangelho. Teólogos que não souberem distinguir entre Lei e Evangelho não merecem esse nome. A Lei ordena a justiça que deve ser cumprida, o Evangelho aponta para Cristo, no qual está cumprida a justiça que é apreendida pela fé. A Lei não é caminho que leva à salvação! Evangelho não é missão a ser cumprida; é dádiva. Confiamos em nós mesmos ou em Jesus Cristo? Comunidade só vive, quando sabemos distinguir entre Lei e Evangelho. Também a ela isso deve ser ensinado para que não transforme a Lei em Evangelho.

(4) Qual é o Deus que pregamos? Qual é o Cristo que anunciamos? “Nós, porém, pregamos a Cristo e esse crucificado” (1 Co 1.23). Ao entrarmos no mais humilde templo luterano, nos deparamos com a cruz; mais luterano ele será se nela estiver o corpo do crucificado. Ressurreição não significa que o ressurreto não tenha mais as marcas do crucificado, suas chagas! O rosto que Deus nos apresentou é o rosto do crucificado. É somente no crucificado que sabemos como e quem Deus é! Deus quer ser reconhecido a partir de seu sofrimento. Deus quer que adoremos aquele que está oculto no sofrimento. “Visto como, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua própria sabedoria, aprouve a Deus salvar aos que creem pela loucura da pregação.” (1 Co 1.21). Nossa própria sabedoria quer conhecer a Deus na prosperidade; Deus quer ser reconhecido na cruz e no sofrimento de Jesus. O que Deus nos quer mostrar é o poder da impotência, a força da fraqueza, a sabedoria da loucura, a glória do escândalo. Deus age – assim podemos ver na cruz – sob o contrário do que é. Por isso, Deus quer que olhemos para onde Ele olha: para baixo! (Lutero no Magnificat de 1521). Deus olha também para nossos cemitérios.

(5) Num país dominado pela Pó-Modernidade, a lógica do Mercado também está determinando a leitura da Bíblia. Bíblia, porém, nada mais é que uma manjedoura dentro da qual Cristo está deitado, se não o encontrarmos temos apenas palha! Bíblia é autoridade porque aponta para Cristo, tudo, porém, o que nela não apontar para Cristo é palha, mesmo que tenha sido escrito por Paulo, Pedro ou Tiago. Jesus é o único conteúdo da Bíblia. Ele confere credibilidade ao texto e é também quem o interpreta. Todo o que lê Bíblia ou a interpreta tem que se curvar ante o Cristo. A Bíblia é clara, não necessita de revelações especiais para sua interpretação e deve ser interpretada em relação a Cristo.

(6) O que é então igreja? “É o povo santo de Deus no mundo”, fundamentado na Palavra de Deus, Jesus Cristo, por ele é alimentado, mantido e fortalecido. Esse povo é reconhecido onde o evangelho da graça e da misericórdia é pregado, onde os sacramentos do Batismo e da Eucaristia são administrados conforme a instituição de Cristo, onde o perdão dos pecados é anunciado e vivido, onde são chamadas e ordenadas pessoas, onde a oração e o meio de santificação da santa cruz estão presentes: tentação e perseguição. Igreja é a “comunhão dos santos”. Temos aqui aspecto que a IECLB jamais deveria esquecer. Igreja não é Shopping Center, onde se adquire sal grosso, sabonete de descarrego, óleo vaginal e ... segue com ele para casa. Igreja é comunidade, comunhão. viDas em comunhão! Por isso, nossas comunidades deveriam ser locais de encontro, de comunitariedade, onde pecadores agraciados são acolhidos, indistintamente, porque todos, realmente todos carecemos da graça e da misericórdia de Deus.

Agradeço por ter tido a oportunidade de trazer a este Concílio da IECLB cento e noventa anos de vidas luteranas em comunhão, falando de nossos esquecimentos e acentuando o que devemos lembrar. Não vamos perder o Evangelho de Jesus Cristo, não vamos perder a Eleutheria, a liberdade, que esse Evangelho nos concede, a graça e a misericórdia de Deus. Quando o monge Martin Luder descobriu a Liberdade Cristã (Na carta aos Gálatas, Liberdade é grafada ELEUTHERIA), trocou o “D” de seu sobrenome (Vagabundo) por um “TH”. Era o Martim Liberto pelo Evangelho da Graça e da Misericórdia que a nós veio pelo Cristo Crucificado. Se perdermos a liberdade, só seremos Luder, vagabundos. Com a liberdade, seremos e permaneceremos lutheranos, capazes de anunciar a liberdade que temos em Cristo e falar de nossas esperanças, dizendo que se o fim do mundo vier amanhã, ainda hoje pagaremos as nossas dívidas e plantaremos macieiras, pois este mundo é e continua sendo o mundo amado por Deus. O céu já nos foi dado de graça; por isso vamos fazer boas obras de preservação da boa criação de Deus.


Tudo sobre o Concílio da Igreja.
 


Autor(a): Martin Norberto Dreher
Âmbito: IECLB
Área: História / Instância Nacional: Concílio
Natureza do Texto: Apresentação
Perfil do Texto: Palestra - Debate
ID: 30319
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Ser batizado em nome de Deus é ser batizado não por homens, mas pelo próprio Deus.
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