Prédica: Tito 3.4-7
Leituras: Isaías 62.6-12 e João 1.1-14
Autoria: Jorge Batista Dietrich de Oliveira
Data Litúrgica: Dia de Natal
Data da Pregação: 25/12/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
Salvos pela graça
1. Introdução
Com pequena variação nas leituras bíblicas, esta é a quarta vez que o texto de Tito 3.4-7 é objeto de estudo em Proclamar Libertação proposto para o Dia de Natal. Os outros textos publicados se encontram nos volumes IV, escrito por Gottfried Brakemeier, no volume 20, por Gerd Uwe Kliewer e no volume 34, por Manfredo Siegle. Todas são excelentes contribuições e estão acessíveis no Portal Luteranos.
Analisando os textos propostos para este Dia de Natal, percebe-se que eles apresentam “boas notícias de grande alegria para todo o povo”, pois falam daquilo que Deus faz por meio do Salvador. No entanto, não apresentam uma relação direta com a narrativa do Natal. O evangelho deixa mais explícita a relação com a celebração do Natal, mesmo sendo um texto que também não relata o nascimento de Jesus. O Evangelho de João expande a salvação para níveis cósmicos, pois apresenta Jesus Cristo como a Palavra que já existia antes da criação do mundo, estava com Deus e era Deus. Essa Palavra se tornou um ser humano e morou entre nós, cheia de amor e de verdade. E nós vimos a revelação da sua natureza divina, natureza que ele recebeu como Filho único do Pai (Jo 1.14).
Isaías está mais focado na reconstrução de Jerusalém. Dirige-se àqueles que estavam perdendo a esperança e anuncia a chegada do Salvador (v. 11). O centro da mensagem está na salvação do povo trazido de volta do exílio para sua cidade reconstruída.
Em Tito, encontramos a boa nova da salvação naquilo que Deus fez por cada pessoa. Deus manifestou a sua bondade em Jesus, nosso Salvador. Ele o fez mediante o lavar regenerador do Espírito Santo (batismo) e colocou a vida dos crentes na dimensão de herdeiros, sob a esperança da vida eterna (v. 7). Destaca--se que a salvação é obra exclusiva de Deus, sem qualquer participação e mérito nosso, mas por pura graça e misericórdia de Deus.
2. Exegese
A Epístola de Tito está situada no bloco denominado de cartas pastorais do Novo Testamento e apresenta-se como uma carta do apóstolo Paulo endereçada a seu colaborador Tito (1.14). Mas existem muitas dúvidas acerca da autoria paulina dessa carta, devido à dificuldade em ajustá-la ao ministério de Paulo conforme nos mostra a literatura do NT. Também a organização eclesiástica nela descrita pertence ao final do primeiro século e o vocabulário e o estilo são significativamente diferentes das demais cartas paulinas. No entanto, percebe-se que a teologia de Paulo norteou a redação desse escrito, mesmo que se façam sentir algumas diferenças características. Trata-se de um documento importante que coloca balizas claras e fundamentais para orientar as primeiras comunidades cristãs fundadas em meio ao mundo não cristão.
A Carta a Tito tem uma afinidade com a Primeira Carta a Timóteo. Ambas as epístolas são endereçadas a jovens homens, que tinham sido designados como lideranças responsáveis em suas respectivas comunidades. Ambas as epístolas se ocupam com as qualificações daqueles que devem liderar a ensinar as igrejas.
Os tópicos importantes dessa carta incluem as qualificações para os presbíteros (1.5-9), como combater os que ensinam doutrinas falsas (1.10-16), instruções a várias faixas etárias na igreja (2.1-8), como comportar-se na vida diária e pública (2.11 – 3.2) e a relação entre a regeneração, as obras humanas e o Espírito (3.4-7).
A perícope em estudo apresenta um teor abstrato com características dogmáticas. Seu ponto principal é a salvação que vem somente por meio da graça de Deus. Nossa salvação é obra exclusiva de Deus, sem qualquer participação e mérito nosso, mas por pura misericórdia de Deus. E uma vez justificados, nós nos tornamos herdeiros. O propósito de Deus em dar a sua graça às pessoas pecadoras não é somente para salvá-las do julgamento eterno, mas também para fazer delas parte de sua família mediante a adoção e, desse modo, herdeiras de suas promessas (Rm 8.17; Gl 3.29; 4.7).
V. 4 – Mas quando se revelou a bondade de Deus, nosso Salvador, e o seu amor para com os homens. A bondade de Deus por nós se manifestou em Jesus Cristo, que é, por isso, chamado de nosso Salvador (3.6). A palavra bondade (chrestotes) ocorre no NT exclusivamente em Paulo. Empregada acerca de Deus, conota sua bondade e solicitude compassiva (Rm 2.4; 11.22; Ef 2.7).
[...] o amor de Deus aos humanos (philanthropia). Expressa críticas à divinização do imperador romano. Os gregos utilizavam a palavra filantropia para referir-se à bondade do ser humano para com seus iguais. A filantropia de Deus assumiu forma humana em Jesus. Isso aponta para o Natal. Pois se refere à encarnação da bondade de Deus. O amor de Deus assumiu forma concreta no homem Jesus de Nazaré. Deus se tornou ser humano e habitou entre nós (Jo 1.14).
V. 5 – Não em virtude de obras de justiça que nos houvéssemos feito, mas segundo a sua misericórdia, nos salvou. Não se menciona aqui textualmente a graça, mas persiste a correlação com Tito 2.11-14. Como em Efésios 2.4s, misericórdia e graça estão interligadas. Nós nada podemos fazer para ganhar a salvação, que é sempre um presente da graça de Deus (Rm 3.27-28; 9.11-12; Gl 2.16; Ef 2.8-9). Deus oferece seu amor aos seres humanos, não pelas ações corretas que realizaram, mas simplesmente pela grande misericórdia de seu coração. Mediante o lavar da regeneração e renovação pelo Espírito Santo: a referência é claramente ao batismo, que também é descrito como sendo um lavar (Gr. loutron: lit. “banho”) em Efésios 5.26; 1 Coríntios 6.11. De fato, não poderá haver salvação a menos que sejamos identificados com Cristo em sua morte, a menos que sejamos ressuscitados juntamente com ele, no poder da novidade de vida. Batizar-se era deixar deliberadamente uma forma de vida para entrar em outra, num novo caminho (Jo 3.3-7; Rm 6.4; 2Co 5.17; 1Pe 1.3). Quando se recebia um prosélito na fé judaica, depois de ter sido batizado, ele era tratado como se fosse um menino pequeno. Era como se tivesse nascido de novo e a vida tivesse começado novamente para ele. Há algo novo nessa vida que só pode comparar-se a um novo nascimento. No entanto, é o Espírito Santo que opera, pela graça de Deus, a regeneração e a renovação.
V. 6 – que ele derramou abundantemente sobre nós por Jesus Cristo, nosso Salvador. Essa palavra alude ao Espírito Santo, o qual aplica a graça e a misericórdia de Deus, em consonância com os trechos de Joel 2.28 e Atos 2.17,33, pois temos aqui uma alusão ao acontecimento histórico do dia de Pentecostes. O derramamento do Espírito sobre a igreja confirma o envio consumado do Redentor na morte de cruz, na ressurreição e na exaltação. O Espírito é dado por meio de Jesus (Jo 4.10; 7.37). Somente por meio de Cristo nos tornamos participantes do Espírito Santo, o qual é o penhor e a testemunha de nossa adoção.
V. 7 – para que, sendo justificados pela sua graça – Linguagem muito usada por Paulo na Carta aos Romanos – a fim de que, justificados por graça (Rm 3.24-26), fôssemos feitos seus herdeiros, segundo a esperança da vida eterna. Ele nos salvou (v. 5) para que nos tornássemos herdeiros (Rm 8.17; Gl 4.7); mas visto que a plena posse dessa herança está no futuro, são descritos, a rigor como herdeiros segundo a esperança (Rm 8.24-25; Ef 1.13-14). A esperança foi derramada abundantemente em cada coração por intermédio do Espírito Santo.
É o Trino Deus, o Pai (nosso Salvador, cf. v. 4), o Filho (nosso Salvador, cf. v. 6) e o Espírito Santo (que nos salvou mediante o lavar da regeneração e renovação, cf. v. 5), que realiza o milagre do novo nascimento. Assim, justificados por sua graça somente, tornamo-nos herdeiros da vida eterna.
3. Meditação
Mais uma vez celebramos o Natal. Festas, presentes, viagens, pinheirinhos e visitas. Mas será que Natal é só isso? Percebemos que o Natal se tornou uma festa normal, comum. Ele se repete todos os anos, a expectativa é sempre a mesma, o cenário também é sempre igual. A festa de Natal tem se tornado tão normal, que nós não mais percebemos o seu verdadeiro conteúdo. Já faz muito tempo que o verdadeiro significado do Natal ficou encoberto pela festa do consumo e do supérfluo.
Não! Natal não é só isso. Hoje é dia de boas notícias. Os textos bíblicos apresentam “boas notícias de grande alegria para todo o povo”, pois falam daquilo que Deus fez por meio do Salvador. Somos lembrados que Natal é a mão de Deus estendida em nossa direção. Deus vem ao nosso encontro, Deus se faz presente entre nós na pessoa de Jesus Cristo.
O profeta Isaías anuncia a salvação à comunidade de Jerusalém e ao povo que está para chegar do exílio. Deus não abandonou o seu povo! Ele vem e cumpre suas promessas. Deus vem para restaurar as ruínas de Jerusalém e as nossas ruínas na pessoa do Filho, que é a Palavra encarnada que armou sua tenda no meio de nós. Hoje temos a oportunidade de renovar a caminhada, escutando a boa notícia da chegada do reinado de Deus. Hoje somos convidados a nos alegrar, pois, no Filho, Deus assume radicalmente o humano. Jesus é o ponto de encontro da humanidade com Deus.
O que tinha sido anunciado pelo profeta torna-se realidade no Natal, que é a festa do amor de Deus por nós. O evangelho anuncia que a Palavra se tornou um ser humano e veio morar entre nós, cheio de graça e de verdade. Deus não ficou acenando de longe para a miséria humana, mas veio pessoalmente. Veio ser gente como a gente, olhar em nossos olhos, ouvir a nossa voz. Ele veio ter conosco para nos trazer a salvação.
Em Jesus, Deus revelou o seu amor pela humanidade. A salvação não se limita apenas ao povo judeu, mas se estende a pessoas de todas as raças e nações. O ser humano que, por causa do pecado, estava separado do seu criador tem em Jesus a possibilidade do perdão e da salvação. Não é por aquilo que fazemos ou praticamos, mas é pelo que Cristo fez por nós. Ele nos salvou mediante o lavar da regeneração e renovação pelo Espírito Santo.
No Batismo, Deus nos abraça e nos envolve na sua ação salvadora. Deus manifesta a grandeza e a força da sua graça, que é obra do Espírito Santo. Ele confirma sua bondade que foi revelada lá no primeiro Natal. Mas essa bondade quer ser aceita na fé, traduzindo-se assim em efeito transformador. Ela nos compromete com a proposta do Reino de Deus de vivermos uma vida nova inserida no corpo de Cristo, que é a igreja, e dedicada ao serviço do próximo. Essa vida nova que resulta do Batismo precisa do poder santificador do Espírito Santo e deve ser construída e vivida diariamente, até alcançarmos, pela graça de Deus, a vida plena.
Assim, o Natal é boa notícia que transforma o futuro e causa alegria em toda a humanidade. O nascimento do Salvador é expressão da benignidade de Deus que leva a grandes mudanças, para todas as pessoas, em todos os tempos. O mundo pode ser diferente; nós podemos ser diferentes; tudo pode ser diferente. É tempo de abrirmos o coração para contemplar, com muita esperança, o mistério da vida que renasce para transformar as pessoas e a sociedade! Neste Natal, somos desafiados e desafiadas a andar pelos caminhos da esperança, semeando o amor, buscando a paz e alimentando a fé no Deus vivo e presente entre nós. Amém.
4. Subsídios litúrgicos
Oração: Bondoso e eterno Deus! Revelaste o teu rosto ao mundo por meio do menino nascido em Belém. O mundo viu a tua glória. Jesus morou no meio de nós. Perdoa-nos por duvidarmos desse mistério singular. Perdoa-nos quando confundimos o Natal com outra festa qualquer. Concede-nos a tua graça e fortalece em nós a luz do amor que acolhe, para que nossas palavras e ações reflitam o verdadeiro espírito natalino. É o que te pedimos em nome do nosso Salvador, Jesus Cristo. Amém.
Bênção: Neste Natal, Deus veio a nós por meio de Jesus Cristo. Aqui celebramos que o Verbo se tornou carne e habitou entre nós. É esse Jesus que caminha conosco. Isso nos é afirmado por meio da bênção. Recebam, pois, a bênção de Deus:
Que o amor de Deus, Salvador de todos os povos, se faça de novo presente
como uma criança em cada homem e em cada mulher.
Que o nosso mundo seja transformado em seu Reino pela ação do seu Espírito de amor.
E que nossa vida seja plena de alegria porque, hoje, um menino nos foi dado!
“O mundo tornou a começar.” Amém. (Rubem Alves)
Bibliografia
BOOR, Werner de; BÜRKI, Hans. Cartas aos Tessalonicenses, Timóteo, Tito e Filemom. Curitiba: Evangélica Esperança, 2007.
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado: Versículo por Versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 5.
KELLY, John Norman Davidson. Epístolas Pastorais. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 1983.
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