Prédica: Mateus 9.35-10.8
Leituras: Êxodo 19.2-8a e Romanos 5.1-8
Autoria: Rodolfo Gaede Neto
Data Litúrgica: 2° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14/06/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLIV
A comunidade local como lugar onde a obra
de Jesus tem continuidade
1. Introdução
O texto escolhido para a pregação no 2º Domingo após Pentecostes é um precioso presente, uma verdadeira bênção para quem tem a tarefa de pregar e para a comunidade que tem a oportunidade de ouvir. Ele trata do tema da edificação da comunidade eclesial. Chama a atenção para o papel da comunidade local. Esta é a questão que angustia o evangelista Mateus: como a comunidade local pode ser espaço para a continuação da obra de Jesus? A partir dessa pergunta-chave, o apóstolo traz para a nossa reflexão temas, como estes: como definir a causa mais urgente da comunidade cristã? Qual é a motivação teológica para o engajamento de alguém nessa causa? Como relacionar o ministério de Jesus com o ministério da comunidade? Como lidar com a tensão entre uma ação ingênua de compadecimento e uma atitude transformadora de compaixão, na perspectiva do reino de Deus? Como lidar com a tensão entre poder e serviço na igreja? Creio que essas são questões sempre atuais e desafiadoras para a comunidade de seguidores e seguidoras de Jesus. Que a pregação deste dia possa contribuir para uma reflexão frutífera sobre a identidade, o perfil e a missão da comunidade de fé, localmente situada.
2. Exegese
Não é por acaso que nosso texto de pregação é composto de três partes distintas, colocadas nesta sequência: 9.35-38; 10.1-4 e 10.5-8. É que com essa montagem Mateus consegue fazer a ponte entre o ministério de Jesus (9.35-38) e o ministério das pessoas enviadas à seara do Senhor (10.1-8). A intenção é a de afirmar que as pessoas enviadas para a seara do Senhor deverão se inspirar na atuação de Jesus, ter a atuação de Jesus como referência e modelo e, assim, dar continuidade à obra iniciada por ele. Se Jesus percorria as cidades e povoados ensinando, pregando o evangelho do reino de Deus e curando toda sorte de doenças e enfermidades, olhando para as multidões, percebendo sua aflição e seu desamparo, e tendo compaixão delas (9.35s), então as pessoas enviadas à seara do Senhor também deverão curar toda sorte de doenças e enfermidades, expelir espíritos imundos (10.1), procurar as ovelhas perdidas da casa de Israel, pregar a proximidade do reino de Deus, curar enfermos, ressuscitar mortos, purificar leprosos e expelir demônios (10.7s).
A perícope é parte de um bloco maior de textos (9.35 – 11.1), que pode ser intitulado de “a incorporação dos discípulos e das discípulas na obra de Jesus”. Aí aparece claramente o pensamento teológico de Mateus de que os discípulos e as discípulas, moldados e moldadas segundo a imagem de Jesus, promoverão a multiplicação das atividades que Jesus realizava. Esta é a forma de Mateus responder à pergunta que o angustiava: como a obra de Jesus terá continuidade na comunidade?
Uma vez definido o conteúdo da atuação das pessoas enviadas, Mateus coloca na fala do próprio Jesus a lamentação pela escassez de pessoas disponíveis para atuarem na comunidade. O número pequeno de pessoas disponíveis contrasta com o tamanho da demanda. E o tamanho da demanda é proporcional ao tamanho do sofrimento das pessoas no contexto da comunidade de Mateus: há necessidade de dar atenção às multidões “cansadas e exaustas” (no grego, as palavras usadas são mais fortes: “caídas e prostradas”); há necessidade de buscar as ovelhas perdidas da casa de Israel, de curar as pessoas doentes e enfermas, expelir demônios e espíritos imundos, purificar leprosos, pregar a proximidade do reino de Deus e até ressuscitar mortos.
O conjunto das demandas que o texto apresenta é um retrato do cenário social do momento histórico e do contexto político e econômico da comunidade de Mateus no final do primeiro século. É muito sofrimento. É muita doença. É muita gente esmorecida e caída. É muita gente perdida e desamparada. É muita gente escravizada por forças malignas. É muita morte.
Na compreensão de Mateus, a atuação de Jesus se dava junto a essas multidões. E o envio de suas seguidoras e seus seguidores tem como destino essas mesmas multidões. Essa é a seara do Senhor. Essa é a comunidade que precisa ser edificada.
Lembrando a pergunta angustiante que movia Mateus (como a obra de Jesus terá continuidade na comunidade cristã?), podemos constatar agora que a pergunta eclesiológica (como edificar a comunidade eclesial?) é, ao mesmo tempo, uma pergunta pelo cuidado que as pessoas enviadas à seara do Senhor devem exercitar em relação às multidões desamparadas. Na compreensão de Mateus, ser igreja é cuidar das pessoas em situação de desamparo. E diga-se aqui que, segundo os estudiosos desse texto, Mateus não está tematizando o envio de pessoas ordenadas à igreja (em sentido ministerial), mas o envio de pessoas seguidoras de Jesus à comunidade pastoreada pelo próprio Mateus, que clama por ajuda urgente. A comunidade local é o lugar onde a obra de Jesus tem continuidade. A comunidade local é a seara do Senhor. Ela carece de pessoas colaboradoras.
Da parte de Mateus há muita clareza de que a comunidade pertence a Deus e não ao apóstolo. Por isso quem envia trabalhadores e trabalhadoras para a seara é o próprio Deus. À comunidade cabe orar a Deus, pedindo que ele envie mais gente para cuidar das pessoas desamparadas em seu meio.
A grande inspiração para o ingresso no discipulado, ou a grande inspiração para se deixar enviar à comunidade, é o olhar de compaixão de Jesus quando vê o povo naquela situação de “ovelhas sem pastor”, de pessoas caídas, doentes, moribundas... A imagem daquele povo desamparado desencadeou a compaixão de Jesus. O vocábulo usado em grego sugere que a compaixão de Jesus caracteriza seu comportamento. Com essa afirmação, Mateus coloca todo envio dos discípulos e, com isso, todo envio de pessoas à comunidade, sob o motivo da compaixão de Jesus. Se as pessoas enviadas à seara do Senhor se caracterizam pela sua identificação com o mestre Jesus, então elas exercitam o tempo todo esse olhar de compaixão para com o povo que se encontra em situação de desamparo. A compaixão é a referência teológica central de nosso texto. Se alguém quer edificar comunidade, tome por referência a teologia da compaixão.
3. Meditação
A comunidade eclesial pertence a Deus e não ao apóstolo. Essa afirmação volta a ter relevância em nossos dias, quando há quem coloque à venda um templo com determinado número de fiéis. Também não nos é desconhecida a existência de acentuado “coronelismo” em igrejas brasileiras, além da existência de igrejas que são propriedades de “apóstolos”. Não demorou muito até que essa forma de manipulação da comunidade religiosa fosse explorada eleitoreiramente na política brasileira.
Esse cenário religioso, em pleno desenvolvimento nestes tempos pós-modernos, forjou outro modelo de comunidade de fé: uma macrocomunidade, sem contornos geográficos, sem definição eclesiológica, sem sentimento de pertença e sem comprometimento solidário com os demais adeptos e as demais adeptas. A “igreja” funciona como supermercado, abastecendo a cesta religiosa das pessoas avulsas que acorrem aos templos. Ela tende a “engolir” a pequena comunidade local, da mesma forma como o hipermercado “engole” o mercadinho do nosso bairro e a big rede de farmácias “engole” a “farmaciazinha” da nossa rua.
Essa situação nos desafia a falar, com urgência, sobre a importância da comunidade local. Só a comunidade local pode proporcionar uma convivência de proximidade em que as pessoas se conheçam, conversem, visitem-se, ajudem-se formando um corpo comunitário solidário, de pertencimento e comprometimento mútuos.
Na Igreja de Cristo importa resistir a qualquer impulso de possessividade. Para as pessoas enviadas à seara do Senhor, a comunidade é uma dádiva, não uma posse. Aceitá-la como tal significa amá-la. E isso torna justas e saudáveis as relações entre trabalhadores e comunidade. Importa também resistir à ideia da massificação e, assim, preservar o perfil da comunidade local, como espaço onde a obra de compaixão de Jesus tem continuidade. A Constituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil reza, em seu Art. 8º, que “a Comunidade, que vive e anuncia o Evangelho, é a menor unidade orgânica e a base de trabalho da IECLB”.
Quando a igreja pertence ao “apóstolo” ou ao “coronel”, não creio que o olhar para o povo desamparado seja um olhar de compaixão, como o de Jesus. Porque a forma como Jesus olha para “as multidões” tem a ver com o propósito de serviço (ministerium), enquanto a posse da comunidade tem a ver com o propósito de exercer o poder (imperium). Não é por acaso que algumas “igrejas” brasileiras se tornaram verdadeiros impérios. Quando dois discípulos de Jesus imaginavam que no reino de Deus eles estariam, sob o comando de Jesus, exercendo o poder no estilo de Roma, Jesus lhes esclareceu que entre as pessoas que o seguem não se age como os governadores que dominam e os maiorais que exercem autoridade sobre as pessoas; pelo contrário, aí se exercita o serviço, a diaconia, o cuidado (Mt 20.20-28) em favor das pessoas doentes, enfermas, leprosas, escravizadas, cansadas, caídas, desorientadas como ovelhas que não têm pastor (Mt 9.35 – 10.8).
O texto da pregação propõe claramente que a comunidade cristã seja uma comunidade diaconal. Porque nela a obra de Jesus tem continuidade e porque as pessoas que aceitam o envio para a comunidade se deixam moldar segundo a imagem do próprio Jesus, que não veio para ser servido, mas para servir (Mc 10.45).
Talvez seja oportuno lembrar que o olhar de compaixão de Jesus (que neste texto é trazido como inspiração para as pessoas que se deixam enviar à comunidade) não é um olhar ingênuo, assim como a diaconia não é um trabalho ingênuo. Jesus sabia que atrás de tanta doença, de tanto cansaço, aflição e desorientação do povo, de tanta morte, havia um sistema político e econômico com concentração do poder e das riquezas. Jesus também sabia que não era por acaso que “na casa de Israel” havia um contingente tão elevado de pessoas que viviam como “ovelhas perdidas”, pois conhecia o sistema religioso com seu aparato de leis excludentes, concebido e mantido pelos escribas e fariseus. Se Jesus não tivesse conhecido e não tivesse falado sobre esses contextos, não teria sido perseguido e morto. Portanto a compaixão de Jesus acontece após um “olhar” para as multidões (9.36). Esse é um olhar aguçado, que reflete a capacidade de perceber, de avaliar e analisar o que se passa. Portanto é um olhar crítico. A compaixão é antecedida por um olhar interessado em compreender os fatos.
Ter a capacidade de um olhar mais aguçado, crítico em relação ao que está no entorno não facilita em nada a vida de quem aceita o envio para a seara do Senhor. Ainda menos quando há muito o que ser olhado e quando há sistemas poderosos e complexos a serem percebidos atrás do sofrimento das pessoas. Seria essa uma razão da escassez de trabalhadores e trabalhadoras disponíveis na comunidade de Mateus? No Brasil, a escassez não é um problema quando se trata de gente que queira trabalhar nas igrejas. Todo dia criam-se novas igrejas e surgem novos pregadores. O problema é a escassez de pessoas com olhar aguçado e crítico em relação aos sistemas geradores de sofrimento (desemprego, pobreza, doenças, resignação, morte).
A Constituição da IECLB, em seu primeiro artigo, afirma que ela “é igreja de Jesus Cristo no País”. Sabemos que essa afirmação é resultado de um processo de reflexões e debates que durou décadas. Ela necessitou desse tempo para fazer a opção de não continuar sendo igreja estrangeira no Brasil, sem comprometimento com o ambiente em que estava inserida. Ao fazer essa opção, ela estava consciente de que isso implicaria a responsabilidade de dar testemunho do Evangelho de Jesus Cristo no contexto da sociedade brasileira. Talvez pudéssemos afirmar que, principalmente desde o Manifesto de Curitiba (aprovado no VII Concílio Geral, em 1970), a IECLB exercita um olhar mais aguçado e crítico para as questões maiores, que historicamente determinam a vida das pessoas na nossa sociedade. Seguiu-se, em 1978, a aprovação do documento “Nossa responsabilidade social” pelo XI Concílio Geral, em Joinville/SC. Creio que essa postura passou a caracterizar a IECLB, passou a fazer parte de sua identidade. Com o perfil de uma igreja que faz perguntas, que olha para o seu entorno, que observa, que percebe, que analisa, que aprendeu de Lutero a perguntar “o que significa isto?”, ela pode ser uma igreja que faz diferença no nosso cenário religioso.
Lembrando que o olhar precede a compaixão e que a compaixão segue ao olhar observador, o texto da pregação desafia a exercitar as duas coisas: olhar e compadecer-se. A pregação sobre nosso texto é oportunidade para desafiar a comunidade local a aguçar seu olhar e a adotar a compaixão como comportamento.
4. Imagens para a prédica
1. Descrever o cenário da comunidade eclesial pastoreada pelo apóstolo Mateus: havia muitas pessoas doentes, com lepra, escravizadas por espíritos malignos, caídas de tanto cansaço e fraqueza, desanimadas, desorientadas como ovelhas sem pastor.
2. Descrever o desafio de edificação dessa comunidade: por um lado, ela tem a enorme demanda de cuidar de toda essa gente; por outro lado, ela tem poucos colaboradores e poucas colaboradoras para assumir esse cuidado.
3. Descrever o cenário religioso brasileiro em que não há escassez de gente para trabalhar nas igrejas: a cada dia surgem novas igrejas e novos pastores e, em alguns casos, constroem-se verdadeiros impérios, pertencentes a alguns “apóstolos”.
4. Descrever o ministério de Jesus: percorria as cidades e povoados, ensinando nas sinagogas, pregando o evangelho do reino e curando toda sorte de doenças e enfermidades. Vendo ele as multidões, compadeceu-se delas.
5. Descrever como Mateus compreendia o envio: as pessoas que aceitam o envio para trabalhar na comunidade devem se inspirar no modo de atuação de Jesus, que, ao olhar para as pessoas que sofriam, compadeceu-se delas. No cenário religioso brasileiro há escassez de pessoas com esse olhar observador e crítico de Jesus.
6. Descrever como a IECLB procura ser “Igreja de Jesus Cristo no País”: historicamente, ela exercita um olhar mais aguçado para a realidade presente; faz
perguntas, procura perceber o que se esconde atrás do sofrimento das pessoas, analisa os sistemas geradores de sofrimento. Esse olhar desencadeia atitudes (comportamentos) de compaixão com as pessoas que sofrem e se torna o irrenunciável compromisso com ações diaconais. Essas não são intervenções ingênuas, mas transformadoras, porque o evangelho do reino de Deus é transformador e porque a comunidade local é o lugar onde a obra de Jesus tem continuidade.
7. Descrever a importância da comunidade local como espaço em que as pessoas se aproximam, se encontram, conversam, se conhecem, se visitam, se ajudam, formando um corpo comunitário solidário, de pertencimento e comprometimento mútuos; espaço em que os membros cooperam com igual cuidado, em favor uns dos outros. De maneira que, se um membro sofre, todos sofrem com ele; e, se um deles é honrado, com ele todos se regozijam (1Co 12.26).
5. Subsídios litúrgicos
Saudação informal
Saudar a comunidade, destacando sua identidade como comunidade eclesial local, onde acontece a continuidade da obra de Jesus.
Confissão de pecados
Pedir perdão pela tentação de fazermos da comunidade uma posse (a minha igreja, a minha comunidade) e pela tentação da massificação, em detrimento do funcionamento diaconal da comunidade local.
Kyrie
Clamar a Deus pelas dores das pessoas mundo afora, que são vítimas de sistemas geradores de sofrimento.
Oração do dia
Orar pelo fortalecimento da coesão da comunidade local, fortalecimento do sentimento de pertença, de cooperação, de solidariedade, de compaixão.
Intercessão
Interceder pelas pessoas da comunidade local que estão doentes, cansadas, fragilizadas, desamparadas, deprimidas, resignadas, desorientadas, escravizadas por forças dominadoras, moribundas.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Matthäus. Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. 6. Aufl. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt,
1986.
SCHWEITZER, Eduard. Das Evangelium nach Matthäus. Das Neue Testament Deutsch. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1976. v. 2, p. 150-154.
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