Prédica: Mateus 20.1-16
Leituras: Salmo 145.1-8 e Filipenses 1.21-30
Autoria: José Kowalska
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/09/2017
Proclamar Libertação - Volume: XLI
Com Deus todas as pessoas têm o necessário
1. Introdução
Entramos no último terço do Tempo Comum falando das relações. Fazemos isso com um texto relativamente bem conhecido das pessoas: a parábola dos trabalhadores na vinha, uma parábola em que se explica o reino dos céus a partir de uma reviravolta na lógica normal da gratificação pelo trabalho.
O texto previsto do Salmo 145 é uma grande doxologia. Louvam-se de di- versas formas a grandeza e a benignidade de Deus, e principalmente se dá ênfase à transmissão e à proclamação dos atos divinos. Interessante também é a indicação da leitura do Antigo Testamento pelo Leccionário, em que está proposta a última parte do profeta Jonas: depois que Nínive se converte, Jonas não gosta do acontecido e fica aborrecido com Deus, pois esse é muito clemente e misericordioso, mas Jonas deve aprender a ter compaixão com as pessoas, assim como teve com a planta. A lógica divina é diferente da humana.
Ainda que a Carta aos Filipenses neste domingo inicie sua leitura semicontínua, a leitura prevista pode ser relacionada com o texto de Mateus a partir da lógica do reino de Deus, que é contrária à lógica deste mundo. O que para alguns é perdição, para os cristãos é salvação.
Esse texto já foi muito trabalhado anteriormente, seja na antiga série de perícopes como no atual Lecionário. Foi estudado em Proclamar Libertação 4 e 10, no Domingo Septuagesima, nos PL’s 18, 30, 35 e 38, no Tempo Comum, além de ser base no PL 29 para o Dia da Reforma. Indico que verifiquem nessas contribuições a grande variedade de possibilidades de interpretação, tanto exegética como meditativa.
2. Exegese
A comparação entre as traduções de Almeida Revista e Atualizada, Nova Tradução na Linguagem de Hoje e Nova Versão Internacional mostra as características de cada tradução. Em verdade, não existem grandes variantes que indiquem interpretações totalmente diferentes entre si. Somente a NTLH adiciona no início do texto quem é que está falando (“Jesus disse”), que pode ser definido a partir de Mateus 19.28. Somente essa versão traduz também denário como moeda de prata. Vale ressaltar que o anthrōpos oikodespotēs é traduzido de diversas formas: dono de casa (ARA), dono de uma plantação de uvas (NTLH) e proprietário (NVI); no caso de misthōsasthai ergatas, traduz-se como assalariar trabalhadores (ARA) ou contratar trabalhadores (NTLH e NVI). As horas são mantidas na contagem hebraica pela ARA e convertidas para o horário atual pelas outras (isso facilita muito o entendimento do sentido da parábola). A última grande diferença é que a ARA mantém o final do v. 16 [porque muitos são os chamados, mas poucos os escolhidos], sendo que esse segmento não tem suporte nos manuscritos importantes.
Estamos no evangelho que sintetiza a mensagem de Jesus como “evangelho do reino” ou a alegre mensagem da soberania/reino de Deus. Assim, para caracterizar essa mensagem, são utilizadas parábolas nas quais é descrita a realidade futura do reino dos céus.
No capítulo anterior, Jesus subverte a ordem, troca as regras do matrimônio, aproxima crianças, fala claramente sobre os perigos da riqueza e a troca de perspectivas em relação aos bens terrenais. No capítulo 20, Jesus continua tentando pôr em prática aquilo que pregou, mas as pessoas perto dele não conseguem entender.
Jesus usa uma parábola, ou seja, não utiliza uma linguagem direta, como nos textos predecessores ou posteriores. Aqui é apresentado, por meio de imagens e símbolos, um ensino que não pode ou deve ser dito diretamente. Por isso a parábola não quer ser entendida de forma clara e direta. As pessoas que ouvem entenderam a mensagem por associação e correlação. Em Mateus, “o reino dos céus é semelhante” não implica definição, mas assimilação. Assim, com o texto em estudo correm-se dois riscos: a simples alegorização ou a literalização. Por um lado, não relacionar com o contexto socioeconômico da época e, por outro, achar que cada parte tem uma correlação exata na teologia. Não se pode esquecer do “é como/semelhante” na interpretação do texto.
No caso de nossa perícope, não tem muito sentido criar uma estrutura para tentar encontrar alguma lógica interna que ajude na interpretação. Pois nos é apresentado um texto coerente em que a trama é dada a partir da inclusão dos atores. A interação entre os atores chega a seu clímax no v. 8, ao cair do dia, quando o patrão pede ao administrador para fazer o pagamento. E é justamente a ordem do pagamento que cria o problema, pois, se os primeiros a serem contratados tivessem recebido primeiramente seu dinheiro, muito provavelmente não teriam tomado conhecimento do valor recebido pelos outros ou sequer reclamado ao receber o acordado previamente. Assim, a parábola é coesa: com início, meio e fim bem delimitados.
Nessa parábola, especialmente, Jesus utiliza o contexto bem conhecido das pessoas. Pois, na Palestina, a colheita da uva dá-se justamente antes de começarem as chuvas, pelo que é necessária a contratação de mão de obra extra para recolher a fruta antes que a chuva a estrague. Qualquer trabalhador era bem-vindo para poder aproveitar ao máximo a colheita. A sociedade agrária na Palestina contém principalmente agricultores de subsistência, mas também existem proprietários, que são minoria, e arrendatários. Havia os diaristas, que se diferenciavam por estar geralmente afastados de suas famílias e trabalhar somente pelo salário, sem ter alguma outra relação com o proprietário da terra.
A praça era o lugar para encontrar trabalho. Os homens que estavam disponíveis iam lá cedo com suas ferramentas e esperavam que alguém fosse contratá-los. A permanência de alguns até tão tarde (às 17h) mostra quão desesperados estavam para achar alguma forma de ganhar o pão daquele dia. Essas pessoas diaristas são diferenciadas dos escravos e servos, pois ninguém olha por sua sorte. Se não trabalham naquele dia, seus filhos ou filhas ficam sem comer, ainda que Stegemann os considere possivelmente pequenos agricultores, que, por ocasião da colheita, podiam ter um ganho adicional, porque simplesmente estariam fazendo “um bico”. Mas essa hipótese cai por terra ao vê-los esperar até as 17h por emprego.
A vinha é uma figura muito conhecida dos judeus. Simbolizava a riqueza da terra. A vinha é uma propriedade muito valiosa, relacionada até com uma vida de luxo. Fora usada pelo profeta Isaías (capítulo 5), em que o povo de Israel e o de Judá são identificados com a vinha.
O pagamento acordado e depois dado a cada um dos homens – um denário – é o pagamento normal por um dia de trabalho. Nos dias de hoje, seria o equivalente àquilo que a ONU mantém como o mínimo para não entrar na pobreza extrema, ou seja, US$ 1,25 por dia. Com esse valor é possível não morrer na miséria, porém não permite nenhuma poupança ou melhora significativa na vida. Pergunta técnica: por que o proprietário não contrata todas as pessoas de manhã cedo e tira mais proveito do denário pago? Elas não estavam lá? Só depois se deu conta de que precisava de mais mão de obra?
“Os últimos serão os primeiros, e os primeiros, os últimos” – esse pensamento repete-se quando Jesus responde quem será salvo, seja em Lucas 13.30, quando fala da porta estreita, ou em Mateus 19.30 e Marcos 10.31, quando fala sobre o perigo das riquezas. Essa frase entra em nosso texto somente pela indica- ção dada no v. 8 ou terá outra possível explicação?
3. Meditação
O que é necessário? “A conceição de reino de Deus do movimento de Jesus é também interpretada como proclamação e práxis de uma ordem de valores radicalmente diferente e de uma mudança radical das condições sociais” (STEGEMANN, p. 442). Jesus apresenta e vivencia uma nova realidade quando pratica o igualitarismo religioso e econômico. O reino de Deus move-se no contexto da satisfação das necessidades básicas de subsistência. Jesus chega a indicar que ele veio para que as pessoas tenham vida em abundância. Mas o que isso significava naquele contexto e o que significa hoje?
Um denário é pouco, sendo possível trocar a moeda somente pelo indispensável para passar o dia. Mas o valor, além de ser o costume da sociedade, é usado por Jesus, que nem isso tinha para sobreviver cada dia. É o mesmo Jesus que convida a olhar os passarinhos e os lírios do campo e adverte: “Não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal” (Mt 6.34). Justamente alguém que vive da generosidade alheia indica que o mínimo necessário para viver é suficiente. Como refletir sobre isso se vivemos numa sociedade em que uma pequena quantidade de pessoas têm muito dinheiro, bens e poder, enquanto a gigantesca maioria está abaixo do limite da pobreza extrema?
Poder-se-ia entender a parábola a partir da realidade como uma advertência aos discípulos de Jesus, não existindo a possibilidade de ter maiores honras por ter conhecido Jesus antes. Esse pensamento expressa-se no quadro de Cranach “A vinha do Senhor”, em que o papa é colocado recebendo o denário, enquanto os reformadores ainda estão na vinha. Mas também se pode entender como uma advertência aos judeus, que desprezavam os gentios por não fazer parte do povo eleito por Deus, assim como também os grupos do cristianismo primigênio, que complicavam a participação de gentios na formação da igreja.
Com William Barclay podemos observar em nosso texto três atributos diferentes de Deus: consolo, compaixão infinita e generosidade. Sendo assim, procuraremos entender a parábola a partir desses conceitos.
O consolo de Deus mostra que não importa quando a pessoa entrou no reino: Deus ama todas as pessoas de igual forma. Alguns rabinos diziam: “Alguns entram no reino em uma hora, outros somente entram numa vida toda”. Não importa se o contato com Deus acontece no início da vida, durante a juventude, no tempo adulto ou já no final da jornada. Deus acolhe todas as pessoas. Ninguém chega cedo demais e nem tarde demais ao encontro com o Salvador.
A compaixão infinita de Deus é mostrada pelo proprietário ao contratar pessoas mesmo que o dia já estivesse no fim. Não era possível ver aqueles seres esperando a possibilidade de ganhar o dia, imaginando o sofrimento que seria voltar para casa com as mãos vazias. O senhor dá trabalho porque não podia vê-los daquele jeito. E ainda, quando chega a hora do pagamento, o dono sabe que o denário já é mixaria, então como seria possível dar menos do que aquilo? Por isso foi além da justiça e deu mais do que mereciam. Termina olhando que, ainda que seria justo, não necessariamente está certo ou é bom. Toda pessoa tem direito a trabalho digno e também o direito de viver dignamente.
A generosidade divina aparece porque nem todas as pessoas fizeram o mesmo trabalho, porém todos recebem o mesmo pagamento. Pode-se entender de que todo serviço tem o mesmo valor para Deus. Não é a quantidade de serviço, mas o amor com o qual é realizado. Deus não olha se fizemos muito ou pouco; olha qual a motivação. Pois os primeiros jornaleiros trabalham somente pelo pagamento. Por isso a preocupação é receber o máximo por seu trabalho. Por isso fizeram acordo com o patrão antes de iniciar. Enquanto os que chegaram depois somente queriam ter a oportunidade de trabalhar; a recompensa fica nas mãos do patrão. Também poderíamos pensar em nossa vida que tudo o que temos foi Deus quem deu e o dá por graça. Não podemos merecer alguma coisa de Deus, não podemos transformar Deus em nosso devedor. O que Deus dá surge da bondade divina e não como recompensa. Não existe a lógica “fiz mais e por isso mereço mais”.
Observando todo o anterior, se juntarmos os atributos de Deus (consolo, compaixão e generosidade) e os relacionarmos com a realidade humana, pode-se concluir que cada pessoa deveria ter o mínimo para subsistir. Não é possível apoiar um mundo onde muitas pessoas não conseguem sequer o mínimo. Todas as pessoas, justamente por ser pessoas, não podem ser rebaixadas a ponto de nem sequer ter o indispensável para viver. É algo que Deus dá, não algo a ser exigido. Isso não por ter merecido, mas porque é dádiva divina à condição humana.
4. Imagens para a prédica
* Existem diversos acordos em que grupos de pessoas, países ou instituições definem o mínimo que todos os seres humanos devem ter, seja de forma geral ou específica. Temos, por exemplo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos das Crianças, a Constituição Brasileira. Também se pode pensar em políticas de gênero, como a Política da Federação Luterana Mundial para a Justiça de Gênero, ou alguma outra afirmação de direitos mínimos indispensáveis para grupos específicos.
* Um homem muito rico pode dar-nos milhões de reais num gesto de generosidade, e verdadeiramente nós podemos sentir-nos agradecidos. Se uma criança nos dá um presente de aniversário que custou só algumas moedas, mas que foram poupadas com amor e esforço, com certeza esse pequeno presente não tem valor em si mesmo, mas nos comove muito mais.
* Dá para perguntar: Por que faço o que eu faço? Qual a motivação por trás de minhas ações? Aqui não existe resposta errada, ainda que seja a mais egoísta possível. É necessário ser sincero e reconhecer o que motiva a ter minhas atitudes. Daí, num segundo momento, seria necessário verificar se essa motivação está alinhada com a vontade divina. Cada aspecto da vida deve ser considerado. Desde “por que tomo banho todo dia?” até “por que participo de minha comunidade de fé?”. Muitas vezes, enganamos a nós mesmos ou, pelo menos, fazemos de conta.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos do Povo de Deus
184 (Vamos nós trabalhar), 209 (Deus sempre me ama), 325 (Aqui você tem lugar), 326 (O Povo de Deus), 434 (Momento Novo), 455 (Cada dia o dia inteiro).
O Povo Canta
74 (Axê), 109 (Arrumando o mundo).
Oração do dia
Deus, tu que és generoso e amoroso: lembramos que teu Filho nos tem ensinado que no reino dos céus todas as pessoas têm suas necessidades cobertas. Obrigado porque tu nos fazes saber que cada ser humano tem valor e que todas as pessoas devem ter condições de viver dignamente. Ajuda-nos a fazer disso uma realidade ali onde estamos. Pedimos isso em nome de Cristo. Amém.
Oração de ofertório
Pai onipotente e misericordioso: tu és muito mais generoso para conosco do que merecemos. Ajuda-nos para que nós também sejamos pessoas generosas com aquilo que tu nos deste e que possamos em gratidão ofertar. Usa o que recolhemos para fortalecer a dignidade das pessoas mais necessitadas. Amém.
Envio
Lembrem-se: aos olhos de Deus, vocês e todas as pessoas são dignas. Vão em paz e partilhem esse presente divino.
Bibliografia
BARCLAY, William. Mateo II (capítulos XI al XXVIII). Buenos Aires: Editorial La Aurora, 1973.
STEGEMANN, Wolfgang. Jesus e seu tempo. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2012.
Voltar para índice do Proclamar Libertação 41