Prédica: Mateus 20.1-16
Leituras: Jonas 3.10 -4.11 e Filipenses 1.21-30
Autoria: Beatriz Regina Haacke
Data Litúrgica: 17° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 24/09/2023
Proclamar Libertação - Volume: XLVII
Graça ou recompensa: o que nos move?
1. Introdução
O texto da pregação é conhecido como a parábola dos trabalhadores na plantação de uvas. Ele instiga ouvintes e leitores à reflexão, gera perguntas e diferentes sentimentos. Lembremos que Jesus usava parábolas não somente para transmitir um conceito, mas para anunciar a realidade do Reino de Deus às pessoas. Com essa parábola, Jesus interpela seus discípulos que se perguntavam o que iriam receber por terem deixado tudo para servi-lo. Ele os confronta com a graça daquele que os chamou e os amou em primeiro lugar. Essa graça não é exclusividade de alguns, mas Deus a concede a quem lhe apraz. O texto de Mateus 20.1-16 já foi abordado em vários volumes anteriores de Proclamar Libertação. Destacamos os volumes 35 e 38, com textos escritos por Vera Cristina Weissheimer e Anelise Lengler Abentroth.
No trecho do livro do profeta Jonas, 3.10 – 4.11, lemos sobre a sua reação após Deus se mostrar misericordioso para com a cidade de Nínive. Jonas não compreende por que Deus é compassivo. Ele próprio havia experimentado a misericórdia de Deus em sua jornada de desobediência, fuga e arrependimento. Todavia, ao invés de alegrar-se com a salvação, Jonas fica irado quando uma cidade pecadora é perdoada. Sua reação é parecida com a dos trabalhadores queixosos da parábola.
Em Filipenses 1.21-30, o apóstolo Paulo considera a morte o seu lucro, pois a vida com Cristo é graça. Todo o seu trabalho não é feito com base em conquistar méritos. Pelo contrário, servir a Cristo é um privilégio, tanto quando sofrer por Cristo.
2. Exegese
A parábola dos trabalhadores na plantação de uvas está ligada ao final do capítulo anterior (Mt 19). Após o diálogo com o jovem rico, Jesus inicia uma conversa com os discípulos a respeito da salvação. Então, ele responde a uma pergunta de Pedro: Nós deixamos tudo e seguimos o Senhor. O que é que nós vamos ganhar? (Mt 19.27). Será que haverá uma recompensa para Pedro e os demais discípulos? A resposta de Jesus vem na forma de duas promessas: uma para seus discípulos e outra para todas as pessoas que sofrerem por causa de Cristo. A vida eterna é a promessa. Porém, Jesus aponta que muitos que agora são os primeiros, serão os últimos e muitos que agora são últimos, serão os primeiros. Essa afirmação reaparece na conclusão da parábola (Mt 20.16).
As perícopes seguintes (Mt 20.17-28) novamente fazem alusão ao tema. Jesus anuncia aos discípulos o que lhe acontecerá, a saber, sua paixão e morte na cruz e sua ressurreição. E, depois, diante do pedido de uma mãe, ele adverte: Quem quiser ser importante, que sirva aos outros e Até o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida. Jesus opõe-se à jactância. Orgulho e vaidade não estão de acordo com o Reino.
Vamos observar alguns destaques no texto, que julgamos relevantes para este estudo homilético.
V. 1 – O Reino do Céu é como... Essa forma de iniciar as parábolas aponta para a intenção de Jesus. Ele busca, através do uso de parábolas, construir uma ponte de ligação entre a realidade do ser humano e a realidade do Reino de Deus. Jesus não apenas fala sobre Deus em suas parábolas. Ele aproxima Deus dos seres humanos, a ponto de que estes são transformados pelo seu encontro com Deus. Qual transformação Jesus almeja com essa parábola?
O dono de uma plantação de uvas saiu bem cedo para contratar trabalhadores. A jornada de trabalho ia do nascer do sol até que as estrelas começassem a brilhar, isto é, cerca de 12 horas depois. O tempo de deslocamento até o local de trabalho era incluído no tempo de trabalho. Por isso o dono da plantação precisa sair bem cedo, na madrugada, para encontrar trabalhadores.
V. 2 – Uma moeda de prata ou um denário era o pagamento por um dia de trabalho. O dono da plantação faz um acordo justo com os trabalhadores contratados logo cedo. Sua oferta não foi mesquinha, mas dentro dos padrões da época. No entanto, Schottroff aponta que o salário dos diaristas revela uma situação de desemprego e miséria. O ganho permite a sobrevivência, mas não a sustentabilidade. Seria preciso complementar a renda com o trabalho das demais pessoas da família, mulheres e crianças, que receberiam pelo seu próprio trabalho um pagamento muito inferior (Schottroff, 2007, p. 265). Além disso, em Levítico 19.13 e Deuteronômio 24.14, encontramos a instrução para realizar o pagamento do salário ao final do dia. Não se pode reter o pagamento do diarista, porque sua família vive (sobrevive) daquilo que ele possui no momento. Ou seja, a situação dos trabalhadores diaristas era de pobreza.
A partir daí, podemos imaginar a situação difícil em que se encontravam as pessoas que não conseguiram trabalho logo no início do dia. Essas ficavam sem nenhum ganho ou se submetiam, ao longo do dia, a trabalhos ainda mais pesados e com pagamento bem inferior. Empregadores poderiam se aproveitar dessa condição vulnerável e beneficiar-se, baixando o custo da produção com mão de obra barata. Ficar na praça não era um sinal de preguiça, mas um sinal da injustiça nas relações de trabalho ou ainda da falta de trabalho.
V. 3-5 – O relato segue com o dono da plantação saindo novamente em outros horários (às 9 horas, ao meio-dia e às 15 horas), chamando mais gente para o trabalho.
V. 7 – Por último, no v. 7, Jesus narra o encontro com mais outros homens que estavam sem fazer nada. Também esses são contratados, mesmo já sendo 17 horas, ou seja, próximo do final da jornada de trabalho. Ao fim do dia, todos recebem a mesma quantia.
V. 8 – Por que o proprietário da plantação deseja que os primeiros trabalhadores vejam que os últimos recebem o mesmo salário que lhes foi prometido? As parábolas têm o pé firmado na realidade dos ouvintes. Contudo, uma parábola não tem a intenção de equiparar o Reino de Deus à realidade humana, mas comparar. Não se pode querer explicar todos os detalhes de uma parábola. É preciso compreender que há certo toque dramático na narração, para cativar os ouvintes e entregar-lhes um pouco da realidade do Reino. Assim, o importante não é elucidar cada linha, mas aproximar-se da mensagem que Jesus quis anunciar.
V. 11 – O murmúrio veio da parte dos que foram contratados mais cedo. Esses se sentiram injustiçados por terem recebido o mesmo que os outros que trabalharam bem menos. Trabalhar na colheita da uva é sofrido, faz doer braços, pernas e costas. São dois os motivos de sua revolta: a) os primeiros contratados, que aguentaram o sol e o cansaço de um dia todo, não receberam uma bonificação por terem trabalhado mais do que os outros; e b) vários foram contratados de última hora para o trabalho, não fazendo valer o seu esforço de estar lá desde cedo. O proprietário responde ao murmúrio com dois argumentos legais. Ele pagou o que havia sido combinado. E é seu direito fazer o que quiser com o que lhe pertence.
V. 13-16 – Na resposta do dono da plantação (v. 13-15) e na conclusão (v. 16), os discípulos, que tinham acabado de ouvir o diálogo com o jovem rico e as promessas de Jesus em Mateus 19.28-30, são confrontados com a graça que derruba os seus padrões. As comparações entre eles não serão legitimadas por Jesus.
3. Meditação
“O que eu fiz para merecer isso?” “O que aquela pessoa fez para merecer tanto?” Assim, pensamos que merecemos algo diferente daquilo que estamos vivendo. O murmúrio que os trabalhadores lançaram sobre o dono da plantação também pode ser o nosso: vivemos uma vida piedosa, dentro da igreja, e procuramos cumprir todos os mandamentos (assim com o jovem rico) e tu os igualaste a nós! A queixa não é contra os demais trabalhadores. A queixa é contra o próprio Deus!
Esses questionamentos são provenientes do ser humano. Assim como os ouvintes de Jesus, também nós podemos indagar ao final da parábola: por que o dono da plantação não contratou todos os trabalhadores logo cedo? E por que pagou o mesmo a todos, sem considerar os que fizeram mais? Foi justa a sua atitude? Sinto-me revoltada com esse desfecho? Questionamentos diante da graça e da bondade de Deus surgem porque a justiça de Deus é incompreendida pelo ser humano.
Mas a justiça de Deus não precisa ser justificada. Se Deus quer acolher em sua vinha outras pessoas diferentes de mim, que não foram criadas dentro da igreja, que pensam diferente, que têm outras opiniões políticas, outra identidade de gênero, outra raça, outra forma de crer, por que eu deveria questioná-lo ou ainda esperar uma recompensa? Seria por me considerar melhor do que elas? Estaria eu agindo como Jonas, desejando a ruína dos pecadores? Incapaz de me alegrar com a salvação de quem estava perdido?
O ser humano tende a quantificar suas relações, enquanto Deus age para qualificar a vida. Jesus conhece o coração de Deus e o coração do ser humano. Ele conhece a graça e o amor incondicional. Conhece também a revolta contra Deus e a desobediência. Por isso ele pode nos dizer: “Amigo, não estou sendo injusto contigo”. As palavras finais da parábola interpelam a pessoa piedosa que se considera merecedora de mais graça e de mais bênçãos divinas. Essa pessoa não admitirá gratuidade.
A graça dá a quem não merece. Sob esse ponto de vista, no que tange à salvação, todos somos últimos, aguardamos na praça, porque nada podemos fazer para conquistar a graça divina. Não a merecemos. Não podemos comprá-la. O que Cristo realizou na cruz é inteiramente graça. Por outro lado, no Reino de Deus, todos são primeiros por causa da sua graça. Essa graça não é barata. É dádiva a ser vivida e valorizada, compartilhada e anunciada. Trabalhamos e servimos ao dono da vinha porque já recebemos a recompensa.
Era corrente entre os mestres da Lei a ideia de que “conforme o esforço, virá a recompensa”. O povo de Israel assim se compreendia também: povo eleito por Deus para servi-lo e ser luz entre as nações. No entanto, essa eleição foi transformada em um privilégio, mais do que em um chamado. O povo que Deus escolhera para ser o primeiro no seu campo de trabalho passou a estabelecer com Deus uma relação de serviço e recompensa. A piedade e as boas obras aconteciam, em grande parte, não por amor e gratidão, mas para acumular méritos. Assim, ao se incomodarem com a bondade e a graça de Deus para com outros povos, os primeiros tornaram-se os últimos.
Cristo também fala de recompensa (Mt 5.12, 46; 6.1-18, 10.41-42). Porém, com essa parábola, ele rejeita a ideia de direito à recompensa. Para Jesus, recompensa está vinculada à bondade de Deus. Ou seja, é graça. Não se trata de uma prerrogativa dos primeiros sobre os últimos. Pois quem realiza seu trabalho por causa da recompensa, além de não a receber, se tornará o último. Jesus fala de recompensa e, nisso, se aproxima da expectativa judaica por recompensa. Mas, ao mesmo tempo, ele derruba essa mentalidade. A motivação para o trabalho não pode ser a recompensa.
No Reino de Deus, a graça é concedida por causa de quem a concede e não por causa de quem a recebe. O que prevalece, ao final dessa parábola, é a graça e a bondade de Deus, em cujo Reino não se entra com base em méritos pessoais ou quantidade de horas trabalhadas.
4. Imagens para a prédica
Alguma vez você já recebeu menos do que era justo por seu trabalho? Como se sentiu? Em qual grupo de trabalhadores dessa parábola você se encaixaria? No grupo dos que foram contratados logo cedo, no grupo dos que foram chamados ao longo do dia ou bem ao final? Independente da sua resposta, saiba que Deus sempre é justo e bom. Quando somos chamados e chamadas para trabalhar na plantação de Deus, recebemos muito antes de começar a trabalhar. Contudo, equivocadamente, nos julgamos como sendo aqueles e aquelas que trabalharam desde o início.
Que alegria quando desde cedo estamos em sua vinha e sabemos que temos um Senhor que nos amou primeiro. Que alegria quando, ao longo da vida, também podemos ser encontrados por este Senhor e ser incluídos em sua igreja.
Na pregação, podemos lembrar a Rosa de Lutero. Deus faz uma aliança (anel dourado) com as pessoas que ele chamou, batizou e incluiu em sua comunidade. Essa aliança tem Cristo como seu centro (cruz). É ele quem nos salva pela cruz e isso é graça de Deus. Seu amor preenche nosso ser (coração) e nos faz florescer e produzir frutos (trabalhar), não para recebermos algo em troca, mas porque já recebemos o perdão e a salvação. Essa dádiva graciosa nos traz paz (rosa) e nos faz viver para Cristo. O fundo azul nos lembra da eternidade. O Reino de Deus já é vivido aqui e agora. Já podemos experimentar a vida que Deus quer aqui. Mas ainda sofremos e causamos sofrimento com nossos conflitos, nosso egoísmo e nosso orgulho. Porém, cremos e esperamos (e trabalhamos com esperança) pela plenitude do Reino, pela festa na vinha do Senhor.
Para mais detalhes sobre a Rosa de Lutero, acesse: <https://luteranos.com.br/conteudo/rosa-de-lutero-1>.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia: Deus de amor e bondade! Tu nos chamaste em nosso batismo e nos acolheste em tua família. Hoje, novamente nos convidaste para um encontro contigo e com nossos irmãos e irmãs. Envia-nos teu Espírito Santo e, através da tua Palavra, nos ensina a receber a tua graça de coração aberto. Ensina-nos também a acolher e ir ao encontro do próximo, assim como Jesus veio e nos chamou para trabalhar em tua seara. Que, ao fazer isso, sejamos movidos unicamente por fé e gratidão. Por Jesus Cristo é que oramos, na unidade do Espírito Santo. Amém.
Hinos: Deus sempre me ama (LCI 581); A graça eterna de Jesus (LCI 48); Senhor, se tu me chamas (LCI 320).
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. As parábolas de Jesus: imagens do reino de Deus. São Leopoldo: Sinodal, 2016.
SCHOTTROFF, Luise. As parábolas de Jesus: uma nova hermenêutica. São Leopoldo: Sinodal, 2007.
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