Prédica: Marcos 8.31-38
Leituras: Gênesis 17.1-7,15-16 e Romanos 4.13-25
Autoria: Gerson Acker
Data Litúrgica: 2° Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 28/02/2021
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Cristianismo da vergonha
1. Introdução
Neste início de Quaresma, o texto da pregação convida-nos a refletir sobre o discipulado e seus sofrimentos – nada mais quaresmal! Na perícope, Jesus convida seus seguidores e seguidoras à autonegação, usando a fórmula esquecer seus próprios interesses (NTLH), tomar a cruz (ARA) ou morrer como eu vou morrer (NTLH) e segui-lo para salvar a vida/alma (ARA) ou ganhar a vida verdadeira (NTLH). Porém o texto encerra apresentando uma cláusula condicional: se porventura alguém se envergonhar de Cristo e de suas palavras, o Filho do Homem também se envergonhará dele quando vier na glória de Deus. O que inevitavelmente nos faz pensar: temos vergonha de testemunhar nossa fé?
A vergonha por não ter terras e descendência era algo que afligia os patriarcas e matriarcas. No extrato de Gênesis 17, Deus faz uma aliança com Abrão e Sarai, mudando seus nomes para Abraão e Sara, prometendo-lhes terras e descendência. Temos aqui também uma cláusula condicional: Anda na minha presença e sê perfeito (ARA), viva uma vida de comunhão comigo e seja obediente a mim em tudo (NTLH) (Gn 17.1c).
No texto de Romanos 4.13-25, o apóstolo Paulo relê Gênesis e aponta para a fé e a esperança de Abraão e Sara, que, mesmo avançados em idade, creram na promessa de Deus. Portanto a promessa se realiza não pelo cumprimento da Lei por parte de Abraão e Sara, mas sim por pura graça de Deus. Esta é a cláusula condicional para nós: somos aceitos pela nossa fé em Cristo.
2. Exegese
O texto de Marcos 8.31-38 tem seus paralelos sinóticos em Mateus 16.21-28 e Lucas 9.22-27. A intencionalidade da narrativa do evangelista Marcos é focar no processo salvífico do Cristo rumo à cruz. Por isso não se delonga em detalhes sobre a infância de Jesus ou contando sobre curas, ditos e milagres em comparação com os outros evangelhos sinóticos.
No bloco de Marcos 8.27 – 10.52, a trajetória de vida de Jesus chega num momento decisivo: as lideranças judaicas de Jerusalém começam a arquitetar um “castigo” exemplar para o rabi da Galileia. Jesus já está de sobreaviso dado o fim violento de João Batista (Mc 6.14-29), e nesse momento tem a firme intenção de qualificar o grupo discipular no seu projeto de Reino. Ao longo desses capítulos, Jesus fará três anúncios da sua morte e ressurreição: 8.31-33; 9.31-32; 10.32-34. Curiosamente, esses anúncios são formulados como uma confissão de fé segundo a linguagem usada pelas primeiras comunidades cristãs.
É possível estruturar a perícope de Marcos 8.31-38 em três partes para facilitar a compreensão do conteúdo:
8.31 – Jesus anuncia sua morte e ressurreição
A tônica desse versículo é catequética: Jesus está ensinando sobre o destino do “Filho do Homem”. Essa expressão é familiar ao livro de Daniel. Na tradição apocalíptica, o Filho do Homem é concebido como agente da libertação e do julgamento salvífico definitivo de Deus na história. Por exemplo, na visão de Daniel 7.13-14, o Filho do Homem obtém de Deus o poder e o reino definitivo em oposição às potências políticas representadas pelas quatro bestas.
O destino do Filho do Homem, em alguns textos como o de Isaías 53, assume características do “servo sofredor”, que após muitas tribulações e humilhações é exaltado por Deus. A expressão apodokimasthēnai (fosse rejeitado) lembra o Salmo 118.22, que aponta para a pedra rejeitada pelos construtores e tornada angular pela ação divina. À luz dessas tradições bíblicas, é possível perceber que Jesus compreende que seu fim violento faz parte do projeto salvífico de Deus. É um fim necessário, “não por força de uma fatalidade histórica ou de uma cega vontade divina, mas para o cumprimento da libertação definitiva ou escatológica anunciada pelas Escrituras” (BARBAGLIO, 1990, p. 514).
O julgamento e a morte de Jesus serão decididas pelo Sinédrio, composto pelas três correntes do poder judaico, a saber, a aristocracia leiga (anciãos), a aristocracia sacerdotal (principais sacerdotes) e os peritos teólogos-juristas (escribas). O partido político-religioso que tinha maior influência no Sinédrio era o dos escribas/fariseus. Por serem altamente legalistas e severos no cumprimento da Lei e de preceitos de pureza/impureza, frequentemente estavam em atrito com Jesus.
À luz da tradição bíblica, Jesus também anuncia a ressurreição – a vitória sobre o sofrimento e a morte graças à fidelidade a Deus. A fórmula “após três dias” é provavelmente uma expressão que indica tempo decisivo na intervenção salvífica de Deus, como respaldam passagens bíblicas como Gênesis 40.18-19, Êxodo 19.16, Josué 2.16 e Oseias 6.2.
8.32-33 – Escândalo e incompreensão por parte de Pedro
A reação de Pedro às palavras de Jesus contrasta com sua precedente confissão de fé (Mc 8.27-30). Jesus apresenta aos discípulos a sua concepção de “messianidade”. Ele anuncia um paradoxo, pois um Messias que morre não é o Messias confessado por Pedro, representando o grupo dos discípulos. Comparado com os conceitos de Pedro, dos discípulos e do povo, refletidos na confissão, Jesus é o inverso do Messias. Não é um rei poderoso, mas um frágil e humilde servo de seu Pai.
A meu ver, a reação negativa de Pedro e do grupo de discípulos não deriva tanto da incapacidade de compreender o destino sofredor do messias, quanto do medo de envolver-se no projeto de reino proposto por Jesus. Pedro e os discípulos queriam um líder que os libertasse do sofrimento, não que sofresse e morresse!
O evangelista Marcos quer deixar claro que todo projeto de messianismo alternativo, ou seja, que não passe pelo binômio morte-ressurreição, só pode ser sugerido pelo poder adversário – Satanás. Portanto não há redenção sem a cruz. Não há na fé cristã espaço para uma “teologia da glória”, que insiste em negar o sofrimento, visto até como castigo ou obra de Satanás. O sofrimento é inerente à existência humana. A fé cristã afirma categoricamente que Deus está conosco no sofrimento.
8.34-38 – Consequências da morte-ressurreição para a vida dos discípulos
O ensinamento de Jesus é dirigido ao grupo de discípulos, mas no pano de fundo percebe-se a multidão, portanto, tal conteúdo tem caráter público e universal. Jesus interpela seus ouvintes com um grande desafio: segui-lo significa tomar a sua cruz (ARA) ou morrer como eu vou morrer (NTLH). Três ações indicam as condições básicas de discipulado: negar-se, tomar a cruz e seguir.
A maioria das traduções escreve “a si mesmo se negue”, apontando para uma atitude de total “descentramento”, autonegação e renúncia de interesses próprios. A expressão grega aparnēsasthō eauton poderia traduzir o vocábulo aramaico nekar, com o sentido de “renegar, desmentir, considerar estranho”. Logo, o sentido mais adequado da frase seria: “quem quer me seguir aceite ser considerado como renegado, estrangeiro ou estranho”. Jesus reconhecia sua missão como de outro mundo, a tal ponto de afirmar a seus seguidores e seguidoras que esses seriam vistos como “estranhos”.
A expressão “tomar a cruz” não é necessariamente uma fórmula criada em conexão com a via-crucis, visto que a morte por crucificação era amplamente usada pelo Império Romano na Palestina. É preciso lembrar que, para os contemporâneos de Jesus, a palavra “cruz” soava tão repulsiva como para nós hoje é o termo “forca”. Sendo assim, podemos compreender essa expressão de três formas principais. Primeiramente, ela pode representar o linchamento social de quem decide seguir Jesus, apontando para a própria condenação à morte via martírio. Outra possibilidade é entender o “tomar a cruz” pelo viés teológico, “como o sinal no qual o homem [ser humano] reconhece o fracasso da tentativa de viver a partir de si mesmo, sinal pelo qual [...] abre espaço a Deus como Deus” (GOPPELT, 1983, p. 364). Por fim, pode-se entender essa expressão na ótica do discipulado como um rompimento total com a vida que se tinha até então (família, profissão etc.). Tal rompimento estaria sendo representado figurativamente como morte.
Segundo Goppelt, nenhum rabi reuniu seus discípulos à maneira de Jesus com a ordem de siga-me (ARA) me acompanhe (NTLH). Esse processo somente pode ser comparado com a vocação dos profetas veterotestamentários, por exemplo, a vocação de Eliseu (1Rs 19.19-21).
A vida plena e a realização do autêntico projeto de reino de Cristo é o valor supremo diante do qual nada valem todos os bens que podem ser representados pelo termo “mundo” (Fp 3.7-8).
O termo grego psychē, que ocorre diversas vezes nesse bloco, traduzido às vezes por “vida”, às vezes por “alma”, deve ser entendido conforme a antropologia bíblica. Psychē e pneuma não indicam uma separação de corpo e alma, como na antropologia platônica, mas sim o eu interior, profundo e identitário. Esse conceito está antes vinculado ao conceito bíblico de “coração” que ao conceito grego de “alma”.
Por fim, temos uma sentença que evoca o horizonte escatológico da existência do discipulado. Os discípulos devem enfrentar as perseguições ou processos por causa de sua fidelidade a Jesus e ao evangelho (“perder a vida”, “perder a alma”). Paralelamente, a vinda certa do reino de Deus e de Cristo como juiz escatológico deve ser motivo de esperança e encorajamento.
A conclusão de Marcos no v. 38 é ligeiramente distinta da de Mateus e Lucas. Ao falar da vergonha, Mateus e Lucas aplicam-na ao discipulado, ou seja, alguém deixa de ser discípulo por não querer seguir um Senhor crucificado, o que é muito coerente com o pensamento judaico e pagão. Marcos fala sobre pessoas se envergonharem de Cristo e do conteúdo da sua mensagem. Esses são caracterizados pela expressão geração adúltera e pecadora (Is 1.4,21; Jr 3.3; Os 2.2), frequentemente usada pelos profetas para caracterizar o povo infiel ao compromisso da aliança com Javé.
3. Meditação
O que me inquieta mais neste momento é a conclusão da perícope: a vergonha de Cristo e do conteúdo da sua mensagem. É um processo complexo, porém bastante perceptível. Há pessoas ditas “cristãs” que conjugam os ensinamentos de Cristo a partir de suas “pós-verdades”. A palavra post-truth foi eleita a “Palavra do ano de 2016” pelo dicionário Oxford. Trata-se de uma “ideia de que um fato concreto tem menos significância ou influência do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. Resumindo: uma “suposta verdade” se torna hegemônica para situações em que os fatos objetivos são ignorados na argumentação.
Para exemplificar, é sabido de longa data que o ministério de Jesus foi altamente pacifista, que ele acolhia mulheres desprezadas, sentava-se à mesa com publicanos e pecadores. Logo, como pessoas cristãs podem defender a pena de morte ou o uso de armas de fogo? Como pessoas cristãs podem acomodar-se diante do machismo e do patriarcado que culmina tantas e tantas vezes na violência doméstica? Como pessoas cristãs podem ser tão preconceituosas e não empáticas? Não sei! Definitivamente não sei! É um “cristianismo” que me envergonha.
Note-se que tenho usado muitas aspas ao longo do texto. Quando digo “cristianismo” e o coloco entre aspas é com a intenção de exprimir ironia, visto ser uma palavra empregada fora de seu contexto habitual. Os anos recentes em nosso país não se caracterizam por perseguições a pessoas cristãs por parte do Estado, como foi no período do Império Romano. Sinto que agora vivemos um retorno à era constantiniana: o Estado se alia à “igreja” (evangélica) para perseguir quaisquer pessoas que não respaldem seus interesses políticos. Jesus frequentemente questionou as lideranças político-religiosas de seu tempo, denunciando ilegalidades, tomando atitudes bem concretas de repúdio, como derrubar as mesas de câmbio dentro do Templo (Mt 21.12). Então, como pessoas cristãs podem ser coniventes com lideranças políticas que promovem sinais de morte? Como pessoas cristãs apoiam “igrejas” que perseguem pessoas? Como pessoas cristãs defendem ídolos-políticos como se fossem um time de futebol? Como pessoas cristãs defendem interesses políticos, sociais e econômicos que vão na contramão do projeto do reino de Deus? E no auge da pandemia da Covid-19, como pessoas cristãs burlaram o isolamento social e colocaram sua vida e a vida do próximo em risco? Não sei! Definitivamente não sei! É um “cristianismo” que me envergonha.
A teóloga Márcia Blasi, ao desvelar o tema da “vergonha”, nos diz que é “impossível ‘curar’ a vergonha ou deixar de experimentá-la [...] o que podemos fazer é aprender a reconhecê-la e desenvolver nossa capacidade de resiliência. Resiliência é a capacidade de passar por momentos difíceis e desestabilizadores, superá-los e aprender com eles” (BLASI, 2017, p. 40). O processo do discipulado, o genuíno “tomar a cruz” passa pelo reconhecimento desse “cristianismo da vergonha” e da capacidade de superá-lo rumo ao cristianismo que verdadeiramente aponta para Jesus Cristo, sua vida-morte-ressurreição e seus ensinamentos.
4. Imagens para a prédica
A perícope têm muitas linhas de desenvolvimento. Pode-se enveredar em uma reflexão a partir do discipulado e seus desafios, ou, também em consonância com o tempo da Quaresma, desvelar a expressão “tomar a cruz”, fazendo paralelos entre Jesus e o comportamento atual das pessoas cristãs de não querer carregar a cruz. Outra forma de abordar a temática seria apontando para a responsabilidade de carregar o conteúdo – a práxis – do próprio Cristo no nosso discipulado.
Outra possibilidade de abordar o texto bíblico seria por meio da temática da vergonha. Poder-se-ia introduzir a prédica de uma maneira bem humorada, falando sobre o conceito de “vergonha alheia”. A vergonha alheia é um sentimento de constrangimento quando se presencia alguma situação embaraçosa feita por outro indivíduo que, normalmente, não percebe o quão ridículo, estúpido, ignorante ou vergonhoso foi o seu ato. Por exemplo: “sempre sinto vergonha alheia quando alguém conta uma piada machista” ou “sinto vergonha alheia quando alguém idolatra um político”. Depois, seguir a prédica apontando para o discipulado que denuncia esse tipo de vergonha alheia.
5. Subsídios litúrgicos
Acolhida
Saudamos a comunidade reunida neste culto com as palavras do apóstolo Paulo: Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê (Rm 1.16a). Irmãos e irmãs, seguir Jesus Cristo nos coloca diante de muitos dilemas: será que não nos envergonhamos do evangelho? Que o Santo Espírito guie nossa pensar e refletir nesta celebração. Amém.
Confissão de pecados
Querido Deus, temos vergonha de admitir nossas falhas como pessoas batizadas. Perdão por envergonhar-te, quando não defendemos os direitos das pessoas excluídas e oprimidas. Perdão por envergonhar-te, quando a igreja é conivente com o poder opressor. Perdão por envergonhar-te, quando não assumimos o compromisso do discipulado por medo e vergonha. Abrigamo-nos na tua misericórdia e pedimos o teu perdão resiliente. Por Cristo Jesus. Amém.
Absolvição
O dramaturgo russo Anton Tchekhov escreveu: “Uma pessoa boa sente vergonha até diante de um cão”. A vergonha muitas vezes brota da consciência do erro cometido. Se você, meu irmão e minha irmã, reconhece seus pecados, se envergonha deles e deseja restaurar a comunhão com Deus e a pessoa próxima, receba da imensa graça de Deus o perdão de seus pecados. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Oração do dia
Deus de amor, por vezes somos como Pedro que nega Cristo em três momentos: temos vergonha de testemunhar que somos teus seguidores e seguidoras. Mas o galo canta e nos desperta, como despertou Pedro. Permite que tua Palavra lida e pregada nos desperte e nos encoraje a tomar a cruz. Por Cristo, que vive e reina contigo e o Santo Espírito hoje e sempre. Amém.
Bibliografia
BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno (Orgs.). Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1990. v. 1.
BLASI, Márcia. Por uma vida sem vergonha: Vulnerabilidade e graça no cotidiano das mulheres a partir da teologia feminista. 2017. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Teologia, Faculdades EST, São Leopoldo, 2017.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1983. v. 2.
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. Curitiba: CEPAD, 1992.
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