Prédica: Marcos 14.17-26
Autor: Norberto Berger, Rodolfo Gaede e Vitório Krause
Data Litúrgica: Quinta-Feira Santa
Data da Pregação: 15/04/1981
Proclamar Libertação - Volume VI
Tema: Quinta- Feira Santa
I - Problemas de tradição
O conjunto maior em que o nosso texto está inserido compreende a história da paixão: caps. 11-15. A formação literária deste conjunto passou, ainda no período da tradição oral, por um processo de crescimento gradativo. Neste sentido J. Jeremias fala da existência de dois estágios: a) Num primeiro estágio existia um relato breve, que iniciava com a condenação de Jesus, b) Num segundo estágio este foi ampliado - relato extenso - compreendendo os seguintes passos: entrada de Jesus em Jerusalém (11.1-11), purificação do templo (11.15-19), autoridade de Jesus (11.27-33), anúncio da traição e última ceia (14.17-26), etc. (Jeremias, pp.88 e 90)
O nosso texto retrata em seu conteúdo todo esse processo de formação literária constatado acima. O trecho mais antigo é o relato da última ceia (vv.22-24). O anúncio da traição (vv.17-21) é parte do relato extenso; portanto, mais recente. Numa terceira parte temos tradição exclusiva (v.25), incomum tanto ao relato breve quanto ao extenso. Além disso, os vv.22-24 são uma tradição da comunidade primitiva, que Marcos utilizou. Marcos não deve ser o autor deste texto, pois não encontramos aqui características literárias deste evangelista, como: estilo de linguagem e construção de frases simples; uso do presente histórico em vez do aoristo.
II - Análise de detalhes
V.18: Um dentre vós. O traidor é um dos discípulos. Isto expressa que os discípulos não são perfeitos, mas vivem sob o constante perigo da tentação.
V.20: A expressão o que mete comigo a mão no prato suscita a ideia de que Jesus estaria indicando Judas como seu traidor. A intenção do texto não é a de determinar nominalmente aquele que o trairá, mas sim, sublinhar que um dos que estão na mais estreita comunhão com ele o trairá. Com o anúncio da traição Jesus está preparando os discípulos para a sua paixão, pois estes sempre acham que Jesus deve sair vitorioso. O que, porém, vencerá é a maldade. O evangelho não se caracteriza por um Happy end.
V.21: Ai daquele. Este ai se refere à dor de Jesus por alguém a quem quis salvar e em quem depositou confiança. O poder do mal ganhou um dos doze. Não foram os inimigos que venceram, mas a maldade. Jesus pensa na angústia do traidor. A traição de Judas é vontade de Deus? Se for, Judas deveria ser inocentado. Quem, porém, assim pensa, desvaloriza a dignidade do homem, transforma-o num boneco. O que acontece é a vontade de Deus. O homem é livre para escolher, também Judas.
V.22: “Tomei. Esta palavra entrou no texto de Marcos como uma fórmula litúrgica conhecida na comunidade primitiva; não a encontramos em Lucas e Paulo. Isto o meu corpo. Com esta expressão Jesus diz: sou eu mesmo. Pão é consumido para a vida. Jesus, com a sua morte, dá aos seus salvação, vida e comunhão autêntica.
Vv.22 e 24: Isto é. Jesus e a comunidade primitiva não se preocuparam com a pergunta pelo ser das coisas. Para eles era importante a pergunta pela utilidade. O aramaico inclusive não usava a palavra é. Literalmente temos aí: isto meu corpo e isto meu sangue.
Vv.23 e 24: Os discípulos não sabem o que bebem. Só depois de todos terem bebido do vinho, Jesus diz o que beberam: Isto é o meu sangue. Mateus corrige este aspecto, dizendo: Bebei dele todos, isto é o meu sangue. (Mt 26.27,28) Assim em Mateus os discípulos sabem o significado daquilo que estão fazendo.
V.24: Sangue. As palavras referentes à aliança dizem respeito à promessa de Jeremias (31.31-34). Se verificarmos o texto da antiga aliança (Ex 24.6-11) constatamos que é usado sangue. Moisés asperge o povo com sangue e assim se realiza a aliança com Deus. O sangue é elemento portador de vida e comunhão de aliança. Ao Jesus dizer que o seu sangue é o sangue da aliança, quer expressar: derramo o meu sangue para que vocês possam entrar na comunhão com Deus, como o seu povo. Jesus assume a imagem do salvador que une a humanidade com Deus. Esta é uma interpretação dogmático-cristológica.
V.24b: Derramado em favor de muitos. Esta expressão origina-se de Isaías (53.11,12). Muitos é o termo semita para a totalidade. Isto quer significar o valor insofismável que a morte de Jesus tem para a humanidade. Este fato só foi compreendido após a Páscoa. Aqui defrontamo-nos com o segredo messiânico de Marcos. Já na celebração da ceia de despedida Jesus quer revelar o significado de sua morte, mediador que é entre Deus e a humanidade. No judaísmo não encontramos uma interpretação uniforme para a passagem de Isaías. Na época depois de Cristo o judaísmo a interpreta, ligando-a quase que exclusivamente ao povo de Israel. Na comunidade cristã primitiva, a expressão acima engloba toda a humanidade. (Schnackenburg, pp. 25.1s e Schabert, pp.280s) Constatamos, porém, que Paulo e Lucas usam por vós (I Co 11.24 e Lc 22.19). Com esta expressão Paulo e Lucas apropriam mas não restringem o alcance da ceia.
V.25: Já aqui Jesus é apresentado como aquele que bebeu vinho comum com os seus. Ciente de sua caminhada em direção à morte, despede-se de seus discípulos como um homem.
Com a ceia de despedida Jesus tenta explicar o sentido de sua morte. Se tivesse transmitido doutrina os discípulos não o teriam entendido. Um ato simbólico poderia explicar melhor o significado de tudo o que deveria acontecer com Jesus. Mais tarde os discípulos reconheceram Jesus nesta celebração e através dela se sentiram unidos a ele.
Judas participa da ceia. Ele não é excluído. Jesus não quer um grupo de pessoas perfeitas; arrisca-se a viver com pessoas que podem traí-lo. Também este que está para traí-lo precisa do que Jesus oferece.
III — Meditação
Uma prédica sobre o nosso texto deve enfatizar que o acontecimento da traição não é algo que ocorre longe da comunidade cristã, mas está sempre presente na comunhão daqueles que se sabem unidos a Jesus. O perigo de alguém se afastar do caminho que procura des-cobrir os sinais deixados por Jesus neste mundo, é uma constante na vida do dia a dia. A maneira como Deus revelou aos homens seu plano, através da opção livre e consciente de Jesus, facilmente nos faz contornar o caminho da paixão, pois entra em cho¬que com a nossa concepção de Deus.
Marcos, que em seu evangelho procura constantemente apresentar Jesus de Nazaré como sendo o Filho de Deus — verdade que em última análise só pode ser compreendida a partir da cruz e ressurreição, e que sempre foge à compreensão dos discípulos apesar dos renovados anúncios através de palavras e sinais — aqui mais uma vez coloca Jesus como aquele que prepara os doze para os fatos que diante deles estão: sua paixão e morte. A realidade da morte está diante de Jesus. É decisivamente necessário preparar seus seguidores para este fato tão arrasador e frustrante na caminhada do Filho de Deus. A melhor maneira de preparar os discípulos é deixar sinais que possam ajudar depois, na hora da frustração, aqueles que tanta dificuldade têm de compreender fatos de tão alta significação.
Um outro aspecto que cai em vista é que Jesus não arrasa seus discípulos, mesmo sabendo que o traidor está entre eles e que em pouco tempo todos o abandonarão. Tudo isto não exclui automaticamente o traidor do circulo dos discípulos. Alguém agora poderia dizer: se a traição de Jesus por parte de Judas for vontade de Deus, então devemos inocentá-lo. Não po¬demos esquecer aqui que Judas continua sendo uma pessoa que tem direito e liberdade para optar. Não é um boneco nas mãos de Deus. A opção de Judas é culpa dele. Por isso é ele que vai arcar com as consequências. Jesus não quer sua condenação. Ele participa da ceia como todos os outros. Judas não é excluído. Deduzimos desta constatação que Marcos não quer contar a história de Judas, mas caracterizar uma tendência que está presente em cada um de nós.
O traidor é indicado entre os que em mais estreita comunhão estão com Jesus. O Filho de Deus convive até o fim de sua vida com pessoas que estão na iminência de traí-lo. É interessante que de tudo isto Jesus não tirou consequências marcantes. A traição não trouxe nenhuma alteração na sua caminhada. Sua crucificação e morte foram sua opção irreversível e não, consequência da culpa do traidor.
Três anos de seguimento ao Mestre não serviram para formar um grupo perfeito de discípulos. Jesus arrisca conviver com pessoas que a qualquer momento podem traí-lo. É importante considerar este aspecto, uma vez que a comunidade de hoje, como também os pastores, têm a tendência de procurar pessoas perfeitas, com excelente projeção social, para formar um grupo de trabalho.
Jesus não quer uma comunidade fechada, que se afaste do mundo para não se contaminar. Ele não quer uma comunidade que se considere perfeita, salva, em contraposição àqueles que se perdem. Segundo este texto, o seguidor de Jesus sempre é acompanhado pelo perigo da tentação. Para o autor é vital sublinhar que seguir a Jesus não é uma decisão única e definitiva, mas algo que requer sempre uma nova decisão, englobando sempre novos compromissos. O seguidor comprometido com o Jesus de Nazaré na vida do dia a dia nunca está fora do perigo de se afastar do caminho da paixão. A todos aqueles que estão cientes deste fato, Jesus oferece a dádiva da Santa Ceia.
Na Ceia os elementos pão e vinho são usados como sendo seu corpo e seu sangue. O pio, elemento básico da vida, é Jesus, que com sua morte dá vida, comunhão e salvação (veja: Eu sou o pão da vida . . . , Jo 6.35). O vinho é apresentado como o sangue de Jesus, o sangue da nova aliança. Uma nova aliança entre Deus e a humanidade foi anunciada por Jeremias (31.31-34). A antiga aliança, selada com sangue de animais, foi tornada inválida pela desobediência do povo eleito. Agora, o novo pacto, aliança definitiva, é celebrado em antecipação à morte do Filho de Deus e selado com seu próprio sangue. Sangue é elemento portador de vida. Ê a comunhão de vida que o pacto traz em si.
.Na ceia de despedida, portanto, Jesus se dá como o autor da reconciliação definitiva, incondicional entre Deus e os homens. É a reconciliação que não conhece limites e restrições: derramado por muitos = para todos. É a reconciliação da universalidade, do cosmos com o criador. Derramado por vós são as palavras de Paulo e Lucas, que, não restringindo o alcance da reconciliação, destacam a sua apropriação: ela foi conseguida concreta-mente para mim. Assim a universalidade da reconciliação não se toma apenas uma verdade geral, nem uma verdade de caráter individualista. É válida para todos e válida de fato para cada um.
Um dos elementos que ajudou os discípulos a reconhecer Jesus após a Páscoa foi a ceia (Lc 24.30,31; Jo 21.12,13). É a partir do reconhecimento de Jesus por parte dos discípulos que inicia a propagação do evangelho. Assim a celebração da ceia de despedida se torna a Ceia da comunidade pascal. Os discípulos enxergaram o sentido da morte de Jesus na celebração daquela ceia e a aceitaram como algo acontecido para eles mesmos. Através da participação na Ceia a comunidade confessa sua fé em Cristo crucificado e ressurreto e expressa que assume o compromisso de viver no espírito de Jesus. Em termos da realidade em que vivem as comunidades da IECLB, significa engajamento e compromisso numa sociedade estruturada a partir do poder do dinheiro, violando a justiça e contradizendo o espírito de Jesus. Este compromisso não conduzirá a um fim glorioso, mas traz a esperança de um novo futuro. É um suporte para aguentar a agressividade do mundo, trazendo consolo e fortalecimento para os seguidores que devem continuar no caminho de Jesus. A celebração da Ceia é confiança na força de Deus dentro do mundo onde Deus parece ser impotente. É distanciamento do velho e busca do novo futuro que é visível através dos sinais do Reino de Deus neste mundo e ao mesmo tempo uma antecipação da realização total no fim dos tempos.
IV – Escopo
Jesus, na ceia de despedida, se dá, sob o pão e o vinho, a todos, também ao traidor; a nova aliança, a reconciliação entre Deus e a humanidade é a base, a motivação, a força para a luta dos seguidores de Jesus na tarefa de propagar a boa-nova do Reino de Deus, reino cuja comunhão é antecipada na Santa Ceia.
V - Sugestões para prédica
1. Sugerimos iniciar a prédica argumentando por que traição e Santa Ceia estão ligadas neste texto. Tentação sempre está presente na vida da comunidade. Pessoas engajadas de repente mudam de atitude e através de seu procedimento negam seu compromisso de fé. Normalmente se pensa que o traidor deve ser um pagão, alguém fora da comunidade. O texto aqui questiona radicalmente este pensamento, pois o traidor é um dos mais chegados a Jesus.
2. O objetivo de Jesus não é organizar um grupo de pessoas perfeitas. Ele arrisca trabalhar com pessoas que inclusive podem traí-lo. Jesus não quer uma comunidade constituída de papa-missas que usam antolhos para não se contaminar com o mundo. Também não há como justificar grupos ou comunidades que consideram a si salvos e os outros perdidos.
3. Ceia é preparação para assumir a paixão e suas consequências. O que fazer para que as celebrações da Ceia em nossas comunidade expressem mais o caráter de risco e compromisso?
4. A Ceia pós-pascal deve ser entendida, por um lado, como fortalecimento para vencer as tentações, as traições, e, por outro, como confissão de fé e compromisso diante da realidade que nos cerca. Refletir sobre o compromisso do cristão diante da realidade de opressão, exploração, discriminação na vida familiar, eclesial e social.
5. A Ceia espelha a comunhão definitiva que acontecerá na sua totalidade no fim dos tempos.
VI – Bibliografia
- BOHNE, C.- GERDES, H. Unterrichtswerk zum Neuen Testament. Berlin, 1970.
- HERBST, W. Das Markus-Evangelium. Leipzig, (s.d.).
-JEREMIAS, J. Die Abendmahlsworte Jesu. 4.ed. Göttingen, 1966.
- SCHABERT, A. Das Markus-Evangelium. München, 1964.
- SCHNACKENBURG, R. O Evangelho Segundo Marcos. Parte 2. Petrópolis, 1974.
- SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Markus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 1. Göttingen, 1968.
- ZIMMERMANN, W.-D. Markus über Jesus. Gütersloh, 1970.
Proclamar Libertação 06
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia