Prédica: Lucas 2.15-21
Leituras: Número 6.22-27 e Filipenses 2.5-11
Autoria: Paulo Renato Küntzer
Data Litúrgica: Ano Novo (None de Jesus)
Data da Pregação: 01/01/2022
Proclamar Libertação - Volume: XLVI
Deus continua presente neste mundo
1. Introdução
Ano novo, vida nova e bola para frente. Esse sentimento popular, expresso com palavras otimistas, nos envolve neste período do ano, apesar do ano complicado de 2021. O envolvimento de Deus na realidade é o que caracteriza os textos bíblicos indicados. Em Filipenses 2.5-11, nós nos confrontamos com o hino cristológico, uma confissão de fé que acentua a revelação de Deus em Cristo, assumindo a humildade como manifestação de sua humanidade. Embora Cristo fosse igual a Deus, esvaziou-se dessa condição e tornou-se ser humano. O texto de Números 6.22-27 traz a bênção de Arão, tradicionalmente usada em nossas celebrações. É uma tradição que herdamos dos sacerdotes, que já a cantavam no templo judaico, expressando sua confiança e alegria na bênção de Deus.
Relato, poesia e canção nos partilham a fé presente na vida de comunidades, judaica e cristã, manifestando proximidade, vínculos e amorosidade pelo mundo e a humanidade.
2. Exegese
Os evangelhos canônicos expressam a boa notícia com terminologia religiosa. Por isso eles têm uma intenção teológica e não histórica. A linguagem teológica caracteriza-se por seu conteúdo, específico de cada comunidade cristã primitiva. Lucas escreve seu evangelho a partir de uma pesquisa e do estudo do que as comunidades primitivas transmitiam. Não temos nada diretamente de Jesus. O que temos como evangelho é sempre a interpretação feita por pessoas ou por grupos comunitários. Trata-se de uma releitura, não somente da vida, mas especialmente da pregação de Jesus de Nazaré a partir da experiência pós-pascal. De Jesus só temos o testemunho de outros, que, de maneira diversa, creram que os ditos e as ações de Jesus tiveram uma importância decisiva: revelavam a presença de Deus e instaurava o Reino de Deus em favor dos pobres e marginalizados.
O texto de Lucas 2.15-21 está na obra teológica elaborada por Lucas e integra o evangelho da infância de Jesus (Lc 1.5 – 2.52). Mais do que propriamente fatos históricos, essas narrativas são uma leitura teológica da infância de Jesus, feita a partir das experiências pós-pascais da comunidade e resultado redacional do autor. A história de Jesus é narrada por Lucas de maneira retrospectiva, tendo como ponto de referência a experiência comunitária entre os anos 70 e 90 d.C.
Não é mero detalhe ou curiosidade o fato de Lucas localizar o evento temporal e geograficamente. Ocorre no tempo do imperador Augusto, numa referência de alcance mundial, e no tempo do governador Quirino, referindo-se ao local próprio onde o evento acontece. Da localidade de Belém se estende para o mundo inteiro. Tamanha é a importância do evento que está sendo relatado. Foi naquele tempo e naquele lugar. E o que ali ocorreu tem alcance para todos os tempos, para todos os lugares. É em favor de toda a humanidade.
Nossa perícope está dentro de uma unidade literária de Lucas 2.1-20(21).
v. 1-7 – relato do nascimento;
v. 8-14 – anúncio do nascimento aos pastores;
v. 15-20 – reações ao anúncio do nascimento;
v. 21 – nome de Jesus.
O v. 21 faz parte de um conjunto maior (2.21-24) que trata das práticas de observância às leis religiosas judaicas, que orientam para o período pós-parto, quando se completam os dias para a circuncisão da criança e quando estão terminados os dias de purificação da mãe. Está incluído na nossa perícope por razões teológicas do calendário cristão que celebra o nome de Jesus.
O texto – Lucas 2.15-21
Quando os anjos se afastaram
voltando para os céus;
os pastores combinaram entre si: “Vamos a Belém
ver esse acontecimento que o Senhor
nos revelou”.
Foram, então, às pressas
e encontraram Maria e José,
e o recém-nascido deitado em um cocho.
Tendo-o visto, contaram o que o anjo lhes anunciara sobre o menino.
E todos os que ouviam os pastores ficaram admirados com aquilo que
contavam.
Maria, porém, conservava todos esses fatos,
e meditava sobre eles em seu coração.
Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus
por tudo que haviam visto e ouvido
conforme o anjo lhes tinha anunciado.
Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino,
deram-lhe o nome de Jesus,
como fora chamado pelo anjo,
antes de ser concebido.
Assim como Lucas e as comunidades para as quais esse evangelho é endereçado, nós queremos ser envolvidos nesse acontecimento histórico, cuja interpretação teológica deixa todos atônitos, surpresos e admirados. Há aqui a contribuição exclusiva de Lucas para contar sua interpretação teológica do acontecimento. É algo que supera o evento histórico e disso participam céus e terra, toda a humanidade e o universo todo.
O acontecimento se dá em Belém. Isso coloca o acontecimento na tradição do profetismo periférico e popular (Mq 5.1-3). A boa notícia para toda a humanidade vem de Belém, da periferia, de uma aldeia da Judeia. O acontecimento de repercussão universal não se dá em Roma, o centro político; nem em Jerusalém, o centro religioso. Mas está carregado de sentido político, pois Belém é a cidade natal do rei Davi. Está carregado de sentido religioso, pois Belém é “a casa do pão”. É lá que aconteceu o que precisa ser visto.
Os primeiros destinatários da boa notícia foram os pastores de ovelhas, criadores de pequenos animais. São pobres e explorados economicamente, marginalizados e excluídos pelo legalismo religioso da lei judaica. Não sei se a gente se dá conta da profundidade que a cena seguinte vai revelar. Trata-se do primeiro encontro que marcará a presença da criança neste mundo e que irá identificar para todo o sempre o seu rosto e a sua imagem para a humanidade. Os que nada são se encontram diante do acontecimento que colocou o rosto e a imagem de Deus dentro de um estábulo e os pobres o veem deitado dentro de um cocho que serve para alimentar os animais. A criança ali dentro de um cocho é o rosto humano do amor de Deus e o rosto divino desse ser humano.
Quando os pastores de ovelhas relatam o que tinham ouvido a respeito dele, provocam reações de surpresa e admiração. Acho que o termo apropriado seria que os ouvintes ficaram atônitos. Até o testemunho dos pastores, o acontecimento não havia sido percebido em toda a sua importância. Eles foram para ver. E ao interpretar o acontecimento, fizeram seus ouvintes ver e perceber o que significava a boa notícia. Não há nada de bonito e de romântico no fato escandaloso do Salvador, o Messias, o Senhor nascer num estábulo fedorento e estar deitado num cocho. Há aqui a revelação do mistério da encarnação do próprio Deus. Deus se fez humilde, tornando-se próximo dos mais miseráveis da sociedade.
Isso explica porque Maria guardava todas essas coisas no coração e pensava a respeito delas. Maria juntou e segurou para si essas notícias. Pensava, meditava, juntava com o que já havia ocorrido anteriormente com ela (1.31-33). Eram tantas notícias espantosas que ela precisou de tempo para assimilar, por isso meditou e pensou.
Para os pastores de ovelhas, depois de testemunharem o acontecimento, restou voltar aos campos, às suas atividades. Mas não retornaram de qualquer jeito. Voltaram glorificando e louvando a Deus. A vida continua, mas não de qualquer jeito e nada como antes. Para quem ouviu e viu como eles ouviram e viram, a vida muda. A vida não é mais a mesma.
No momento seguinte somos conduzidos ao fato quando, oito dias após o nascimento, em cumprimento à lei judaica, a criança recebe a circuncisão e o menino então recebe o nome de Jesus (v. 21). Lucas escreve a respeito dele como sendo o filho primogênito de Maria (2.7), o Salvador, que é Cristo e Senhor (2.11), a criança (2.12,16) e menino (2.21). Só se declarou o nome de Jesus quando de sua circuncisão. O nome revela o extraordinário do que havia acontecido (2.11), no nome Jesus (Yeshua) e de seu significado: “Javé é a salvação”. O nome é escolha de Deus (1.31), é revelação divina que diz a que veio.
É sobre Jesus que estará o Espírito do Senhor para anunciar a boa notícia aos pobres, proclamar a libertação aos presos, restaurar a visão aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor (Lc 4.18-19) e concluído o seu ministério público com a ressurreição e a ascensão ao céu, eles o adoraram, e depois voltaram para Jerusalém, com grande alegria [...] bendizendo a Deus (Lc 24.52). Do início ao fim, o nome de Jesus provoca adoração, louvor, alegria e bênção aos pobres e excluídos que acolhem o seu anúncio.
3. Meditação
De repente, a morte suspendeu suas atividades no país. A nação tinha sido escolhida para a imortalidade, depois de milênios de sofrimento e sujeição à morte. Ano novo, vida eterna, porque desde 1º de janeiro ninguém mais morria em um canto do mundo inventado pelo escritor José Saramago em seu livro “As intermitências da morte”. Magoada porque os seres humanos tanto a detestam, a morte resolve mostrar como, no fundo, eles são uns ingratos.
Não parece ser o caso do Brasil. No momento que estou envolvido em concluir este texto, o Brasil chega ao criminoso número de 500 mil mortos decorrentes da pandemia que nos assola desde o início do ano de 2020. Já temos às nossas costas 17 meses de enfretamento e de negacionismo da pandemia. Com certeza até o momento de celebrarmos o Ano-Novo, vamos aumentar esse número assustador de vítimas, consequência da falta de uma política pública e sanitária, da lentidão na campanha de vacinação, da veiculação de mentiras sobre o tratamento precoce e de mentiras alegando a ineficácia do isolamento e distanciamento social. Até aqui prevaleceu o sacrifício humano. A mensagem política de ano novo, vida nova e da volta à normalidade sempre foi o do sacrifício das pessoas em favor da sobrevivência da economia.
Com uma proposta bem diversa, o Evangelho de Lucas encontra os pastores de ovelhas retornando para casa surpresos e admirados pelo que tinham ouvido e visto. A intenção do tempo litúrgico do Natal é exatamente esta: provocar em nós os mesmos sentimentos, compromisso e atitudes. A vida continua depois do Natal, mas de um novo jeito, com novos olhares e novas conversas a respeito da revelação do mistério da encarnação de Deus. O acontecimento que motiva essa boa nova é uma criança, um menino, que recebe o nome de Jesus.
“Em nome de Jesus.” Quantas vezes se ouviu essa expressão. Ela foi dita, repetida exaustivamente. Parece um mantra que, por sua repetição, se crê terá efeitos mágicos e milagrosos. Em nome de Jesus, quem tinha fé, não pegava Covid-19. Em nome de Jesus, há autoridades ungidas e eleitas que são intocáveis. Em nome de Jesus, prometeram-se cura, prosperidade e bênçãos materiais no atual mercado religioso. Em nome de Jesus, praticou-se a violência seletiva do Estado contra negros, mulheres, crianças empobrecidas e povos indígenas. Em nome de Jesus, sepultamos pessoas vítimas da Covid-19, mulheres vítimas de feminicídios, crianças vítimas de balas perdidas, negros vítimas da violência de agentes de segurança, pessoas que praticaram o suicídio como saída de seus problemas, indígenas e quilombolas vítimas de conflitos de terras.
A visão que nos proporciona a criança frágil, pobre e humilde, nascida em condições de extrema exclusão, assim como a visão antecipada da cruz e da coroa de espinhos, contrasta com a violência, os excessos e poderes de nossa sociedade e da mesquinhez do ser humano quando perde a sua condição de imagem e semelhança com Deus. Só Deus mesmo para fazer uma coisa dessas. Deus vem morar entre nós, sempre o mesmo, verdadeiro, coerente. Sem alarde no palácio, sem mídia global. Assim Jesus vem mais uma vez, vem para estar com as pessoas que ele quer bem. Acabar com a solidão, o medo do futuro, a miséria interna e externa, a injustiça e o ódio entre os diferentes. Onde ele é convidado a entrar, ele arruma a casa. Não nos promete mudos e fundos, mas nos dá a capacidade de viver uma vida renovada. Pelo menos entre as pessoas que ele quer bem.
4. Imagem para a prédica
Onde há um Deus como o nosso? Pois, visto que nada existe acima dele, ele não olha para além de si; não olha para os lados, porque ninguém é igual a ele. Por isso dirige o seu olhar para baixo; quanto mais baixo alguém está, tanto melhor Deus o enxerga. Os olhos das pessoas fazem o contrário: olham para cima e querem erguer-se a todo custo. Esta é a nossa experiência diária: todos estão em busca de coisas acima deles, de honra, poder, riqueza... tudo que é grande e elevado. E onde existem pessoas assim, todas se agregam a elas, a elas se acorre, a elas serve-se com prazer, todos querem estar ali. Por outro lado, ninguém quer olhar para baixo, onde existe pobreza, miséria, desgraça e angústia. Disso todo o mundo afasta o olhar. Onde existem pessoas em tal situação, todos se afastam, a gente as evita, ninguém se lembra de ajudar, de as socorrer e trabalhar para que também sejam algo. Essa maneira de ver as coisas, de olhar para a profundeza, para a miséria e desgraça, é exclusiva de Deus. (LUTERO, 2016, v. 6, p. 24).
Desse entendimento de Deus resulta algo bem prático à sua presença neste mundo, pois Deus continua a se fazer presente em situações de profundo sofrimento e busca por vida e esperança.
Bibliografia
LUTERO, Martinho. Magnificat: o louvor de Maria. In: Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2016. v. 6.
WIESE, Werner. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST 2009. v. 34, p. 69-74.
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