Prédica: Lucas 2.1-7
Leituras: Isaías 11.1-9 e Romanos 1.1-7
Autoria: Vítor Hugo Schell
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/2020
Proclamar Libertação - Volume: XLV
Esperança para além das circunstâncias
1. Introdução
O texto de Isaías 11.1-9 sucede aos relatos do juízo do Senhor sobre Israel por causa de sua insistência na impiedade. O Senhor levanta povos inimigos e os conduz como instrumentos desse juízo. Insistente e solenemente a palavra do próprio Senhor é repetida: [...] Apesar disso tudo, a ira divina não se desviou; sua mão continua erguida (cf. Is 9.12; 9.21; 10.4). O texto deixa claro que o Senhor não está alheio ao sofrimento do seu povo e que seus opressores não passarão impunes. O texto de Isaías 11.1-9 encontra-se logo após a palavra de juízo de Deus contra a Assíria, que nem mesmo percebe estar sendo um instrumento do juízo de Deus. Para o Senhor, os assírios são a vara do seu furor, em cujas mãos está a vara de sua ira (cf. 10.5). Ao terminar sua obra contra o monte Sião e contra Jerusalém, o Senhor também castigaria o rei da Assíria (cf. 10.12). A imagem da floresta incendiada e arruinada perpassa esses capítulos (veja Is 9.14,18; Is 10.17-19), trazendo a imagem da devastação que resulta do juízo de Deus. A salvação prometida por Deus, vinda do meio de um remanescente de Israel (veja Is 10.20ss) é ilustrada adiante por meio da imagem de uma floresta arrasada (veja Is 10.33-34), no meio da qual esse novo ramo, esse broto surge do tronco de Jessé (cf. 11.1). A promessa é de esperança, de algo novo, pois sobre esse “broto” repousará o Espírito do Senhor, dando-lhe sabedoria e entendimento, conselho e poder, conhecimento e temor do Senhor (cf. v. 2). As características do seu reinado são a justiça, a retidão e a fidelidade, em contraste a tudo o que é dito sobre as lideranças tanto dos povos em geral, quanto do próprio Israel (compare, p. ex., Is 9.14-16). O texto de Isaías lança o olhar para além de qualquer possibilidade imaginável sobre a terra, que se encherá do conhecimento do SENHOR como as águas cobrem o mar (v. 9). Na nova realidade de justiça trazida pelo Senhor reinará a paz. Diante do leitor se coloca agora a imagem do paraíso, do santo monte de Deus, onde crianças brincam com animais hoje selvagens e perigosos e onde ninguém fará nenhum mal, nem destruirá coisa alguma [...] (v. 9).
O apóstolo Paulo, em Romanos 1.1-7, fala claramente da concretização da promessa, sobre esse renovo do Senhor, o qual foi prometido por ele de antemão por meio dos seus profetas nas Escrituras Sagradas [...], que, como homem, era descendente de Davi [...] declarado Filho de Deus com poder, pela sua ressurreição dentre os mortos: Jesus Cristo, nosso Senhor (Rm 1.2-4). A comunidade de Roma, a quem Paulo remete sua carta, é incluída no propósito salvífico do Senhor de chamar dentre todas as nações um povo pela obediência que vem pela fé. Também os romanos são chamados para pertencerem a Jesus Cristo (v. 6), em quem a graça e a paz da parte de Deus (v. 7) se encontram definitivamente. Em Lucas 2.1-7, no texto da prédica, o evangelista relata a maneira como se concretizou o plano de salvação de Deus, de antemão anunciado pelo profeta Isaías e posteriormente também pelo apóstolo Paulo.
2. Exegese
O evangelista Lucas, como nenhum outro, sincroniza os eventos realizados por Deus com os acontecimentos da história mundial, assim como experimentados pelos contemporâneos de Jesus. Lucas enfatiza o governo de Deus sobre o mundo todo e o cumprimento de seus desígnios. Os eventos mundiais relacionados apontam tanto para a realidade da encarnação de Deus em Jesus Cristo, seu agir em tempo e local específicos, como também parecem servir a Lucas como pano de fundo, como cenário, para o novo que acontece em Jesus e é decisivo para a história mundial. O cenário, nesse sentido, não é irrelevante. A “história que realmente importa” acontece justamente nesse cenário, nesse contexto trágico para o povo. A revelação do salvador acontece em tempo e espaço específicos. O provinciano povo siro-palestinense, que na época voltava a valorizar suas origens e dessa forma também buscava o fortalecimento de sua identidade como descendente das doze tribos de Israel, penava sob os mandos e desmandos dos romanos, que se faziam representar em suas províncias por aliados políticos. César Augusto, que comandou o Império Romano de 27 a.C. a 14 d.C., havia decretado um recenseamento em todo o seu território de domínio. Lucas faz questão de informar seus leitores de que se tratava do primeiro recenseamento feito quando Quirino era governador da Síria (cf. v. 2). Não caberia aqui a discussão a respeito das contradições entre as informações sobre o recenseamento no tempo de Quirino, assim como trazidas por Lucas e por documentos extrabíblicos. Mais frutífera se mostra, nesse sentido, a abordagem da referida problemática à luz da ampla discussão a respeito da historiografia na Antiguidade, no contexto judaico-helenista e, a partir disso, também à luz das intenções teológicas de Lucas. Claro que o recenseamento tinha como intenção principal o controle da população pagante de impostos, recolhidos per capita, além do que já era recolhido normalmente nas coletorias espalhadas pela região de tráfego e que se tornavam em meios de corrupção e exploração. Lucas retrata de forma muito plástica esse contexto de corrupção e exploração na história do publicano Zaqueu, por exemplo, no capítulo 19. Israelitas corruptos associavam-se ao império na exploração dos mais necessitados. O culto no templo, associado à politicagem das trocas de favores por poder e riqueza, formava uma engrenagem de injustiça que também levava, logicamente, para longe da paz. O cenário é de confusão e desolação. A esperança era depositada nos mais diversos movimentos de libertação, dos mais sectários, alienados, piedosos e fanáticos aos mais politizados, revolucionários.
A ordem imperial é clara e todos devem retornar às suas cidades de origem para realizar o alistamento. José, tendo possivelmente emigrado do sul, da Judeia, a Nazaré da Galileia, ao norte, em busca de novas oportunidades no exercício de seu ofício de carpinteiro, retornou a Belém, cidade de Davi, porque pertencia à casa e à linhagem de Davi (cf. v. 4. Compare 1Sm 16.1 e Mq 5.2). Maria, que estava prometida a José em casamento e estava grávida, também se submete à viagem (cf. v. 5; veja também Lc 1.27). Papiros atestam a realização de um censo no mesmo período também no Egito, os quais apontam para a necessidade de cada um registrar-se na sua terra natal juntamente com suas esposas (cf. GRUNDMANN, 1969, p. 77). Outro fator a ser levado em conta em relação ao drama vivido pelo casal era a proximidade da hora do nascimento, assim como os falatórios maldosos em Nazaré a respeito da situação de Maria. Como aponta Morris, “[d]evemos refletir, talvez, que foi a combinação de um decreto pelo imperador na Roma distante e das línguas mexeriqueiras de Nazaré que trouxeram Maria a Belém exatamente no tempo certo para cumprir a profecia acerca do local de nascimento de Cristo (Mq 5:2)” (MORRIS, 1983, p. 81). O casal vive na expectativa do primeiro filho, que é aguardado pelo casal como resultado do agir salvador de Deus em meio ao seu povo. Veja que o drama de José frente à gravidez de Maria nos é relatado somente em Mateus 1.18ss. Lucas faz questão de ressaltar o estranhamento, mas sobretudo a alegria de Maria frente à revelação dos planos do Senhor que nela se cumprem (veja Lc 1.29ss e Lc 1.46-55. Ao cântico de Maria segue-se o relato de Lucas a respeito do nascimento de João Batista, o cântico de louvor de seu pai, Zacarias, e a menção à atuação pública do Batista em Israel, que antecede diretamente Lc 2.1-7). O casal certamente vive um drama pessoal marcado pela esperança confiante nas promessas do Senhor, por um lado, e pela realidade caótica que aponta para a direção oposta. Enquanto estavam lá, chega o tempo do bebê nascer (cf. v. 6) e o que lhe resta naquela situação é ser enrolado em panos e ser deitado em uma manjedoura porque não havia lugar para eles na hospedaria (cf. v. 7). O relato de Lucas segue apontando para o anúncio do nascimento de Jesus aos pastores por um anjo do Senhor. Não são os “pastores oficiais de Israel” (compare Ez 34) que recebem a notícia, mas os simples pastores do campo. O que lhes servirá de sinal na busca pelo Salvador, que é Cristo, o Senhor seriam justamente os panos, com os quais o bebê estaria envolto, e a manjedoura, onde estaria deitado (cf. v. 11 e 12). O relato não abre espaço para fantasias ou
para tendências docéticas.
3. Meditação
A complexa realidade enfrentada por José, Maria e pelo recém-nascido Jesus é pintada por Lucas de forma muito viva. Frente ao cenário dos decretos oficiais, de manifestações de poder, de ações de controle e exploração governamentais, de rebeliões populares e falsas promessas de paz, estão Maria e José em seu dilema pessoal. Maria, José e Jesus são invisíveis aos poderosos e precisam fazer o que fora ordenado pelo imperador. Nesse sentido, Jesus nasce sob a lei dos judeus e sob a lei dos romanos (compare Gl 4.4). Na sua bagagem não se encontram nem os punhais dos rebeldes zelosos que se afiam contra o império dominador nem o ouro que move o poder em Jerusalém, seu rei e seus sacerdotes. Jesus nasce em uma época muito difícil, de extrema polarização, de soluções ofertadas pelos mais diferentes grupos, de confusão política e religiosa. Política e religião misturavam-se e confundiam no Templo, no culto oficial, mas também na cabeça dos guerrilheiros zelosos, que aguardavam a vinda do rei, do profeta, do Messias que libertaria o povo de Israel do seu jugo de escravidão (compare, p. ex., Is 10.27). As expectativas em relação ao libertador, ao Messias, eram muitas e se expressavam das mais diferentes formas. Mas justamente enquanto o mundo se agitava sob o comando de César Augusto, que para uns era considerado um deus e para outros a figura do próprio diabo, os desígnios de Deus vão acontecendo, assim como deveria ser. De Nazaré, José e Maria se dirigem para a assim conhecida cidade de Davi, Belém, pois ali deveria nascer o Messias (veja Mt 2.5-6). Maria e José são ignorados pelos poderosos de Israel e do império, são mal falados, provavelmente, pela vizinhança de Nazaré, mas estão no centro da atenção do Senhor dos Exércitos, do Deus de toda a terra. Naquela criança está se cumprindo a promessa de justiça e paz, outrora anunciada pelos profetas. O Senhor Deus está atento. Juízo e salvação estão acontecendo! O texto de Isaías 11.1-9 registra a promessa feita de que em meio ao remanescente de Israel, do renovo, do broto novo em meio à terra arrasada, o próprio Senhor Deus agiria, se faria presente, trazendo juízo, justiça e paz. Em meio ao caos, à opressão e confusão, o próprio Deus se faz presente. Em Jesus de Nazaré, nascido não por acaso em Belém, utilizando-se da ideia trazida pelo evangelista João, o projeto de Deus, a palavra de Deus, a vontade de Deus está presente em carne e osso (cf. Jo 1.14). O próprio Deus se faz presente, tendo enviado seu próprio Filho. O Senhor não envia mais uma ideia, nem mais um profeta apenas. Por outro lado, o enviado não é mais um entre os guerrilheiros que juntam ao redor de si militantes que agem por imposição de força ou poder. Isso, inclusive, eles deveriam ter aprendido já a partir das palavras proféticas, como aquelas uma vez dirigidas a Zorobabel: [...] Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o SENHOR dos Exércitos (Zc 4.6). Mas entre os discípulos de Jesus percebe-se no desenrolar da história a insistência nesse tipo de metodologia reprovável de acabar com os opositores. Em certo momento da caminhada, “os espirituais” Tiago e João querem, por exemplo, fazer cair fogo do céu para acabar com os opositores samaritanos (veja Lc 9.51ss) e ainda no fim da trajetória de Jesus se mostra o pensamento da conquista pelo uso da espada (veja Lc 22.49ss). Jesus pensa de outra forma e age de outra forma. Isso precisa ficar claro! Tudo acontece por meio do seu Espírito, que não é de dominação e imposição, mas de amor, de serviço. Era para esse serviço em amor que seus discípulos estavam sendo chamados e é para esse pensamento e atitude que seus discípulos e discípulas ainda hoje são chamados (leia Fp 2.5-11). É a partir disso que sinais do reino de Deus poderão acontecer, se tornarão reais já agora, enquanto a caminhada continua em direção à justiça e a partir dela à paz completa, perfeita, eterna. Assim como o próprio Deus está presente em Jesus em carne e osso, suas discípulas e seus discípulos são chamados a passos concretos, a atitudes concretas para a justiça e paz enquanto caminham atrás do próprio Jesus, o Cristo, nascido e crucificado em favor de todas as pessoas, em tempo e local específicos, conforme o plano de Deus, sem se deixar levar por outras ideias ou falsificações messiânicas. Queremos sinais que apontem para essa salvação maravilhosa, queremos “ver a coisa acontecer” e buscamos esses sinais que para nós apontem para algo realmente divino, espetacular, que traga a certeza e nos inspire confiança. É interessante que os sinais apontados pelos anjos aos pastores são os “panos e a manjedoura”. A notícia é espetacular e aquela noite foi, de fato, maravilhosa. Mas quando o anjo do Senhor aparece aos pastores, eles ficam aterrorizados de medo (Lc 2.9). A notícia, porém, é de esperança e de grande alegria (cf. Lc 2.10). A esperança e a alegria não estão no Templo nem na casa do rei Herodes, não vem de outro lugar senão de onde se encontra o próprio Jesus Cristo. Que aquele menino Jesus, envolto em panos e numa manjedoura, era de fato o Cristo, somente poderia ser visto, entendido, crido a partir dos olhos da fé, somente poderia ser presenteado pelo próprio Deus. Jesus de Nazaré, nascido em Belém e morto na cruz, em Jerusalém, é o Cristo! Essa era a confissão básica dos primeiros cristãos e a confissão de fé a ser feita ainda hoje em palavras e atitudes. Que aquele menino, carne e osso, enrolado em panos e na manjedoura era o Cristo permanece ainda hoje “escândalo e loucura” (compare 1Co 1.21-25). Caso soubessem quem de fato estava para nascer, teriam encontrado um lugar melhor para o menino e seus pais. Lá estavam o emigrante José e sua esposa Maria que se colocaram a caminho por causa do recenseamento ordenado e nisso não havia, a princípio, nada de especial. O fato é que não havia lugar para eles. A concretude dessa “falta de lugar para eles” é gerada pela escuridão dos olhos da fé que não podem enxergar naquele menino o Salvador. A fé, ou a falta de fé no menino, de que ali estava, de fato, o salvador envolto em panos numa manjedoura, molda a atitude frente à realidade daquele momento. O lugar concreto que damos a ele nas coisas ordinárias do dia a dia também hoje é reflexo da nossa convicção de fé ou de nossa incredulidade. Que o próprio Senhor, por meio do seu Espírito nos conduza à confiança no Salvador que nasceu em Belém e, a partir dele mesmo, a passos concretos de fé em direção ao seu reino de justiça e paz. Amém.
4. Imagens para a prédica
A prédica elucida a história bíblica narrada em Lucas 2.1-7, de forma que as conexões com a realidade de desesperança, exploração, sofrimento e expectativa vivenciada em nosso país e no mundo se tornam evidentes. Imagens que expressem a confusão política e religiosa de nossos tempos poderão ser utilizadas. O foco, porém, deveria permanecer na importância do momento único vivido em Belém, da Judeia, no emigrante José e sua esposa Maria e no nascimento de Jesus Cristo, o Salvador para além de todos os tipos de expectativas messiânicas atestadas em seu tempo e também daquelas tão presentes em nosso tempo. A mensagem é de alegria, esperança, salvação! O foco também deve estar na confissão de fé em Jesus de Nazaré como Cristo de Deus e na vivência concreta na perspectiva de seu reino de justiça e paz.
5. Subsídios litúrgicos
As velas são subsídios que simplesmente fazem parte desta data especial do calendário da igreja e podem ser utilizadas das mais variadas formas para sublinhar os elementos trazidos na pregação da palavra. Os hinos tradicionais de Natal, que recontam a história vivida em Belém e demonstram a singularidade da pessoa de Jesus Cristo, sua obra salvadora e a escuridão das estruturas do mundo sem Deus, podem ser utilizados antes e depois do momento da prédica, para a moldagem da liturgia.
Bibliografia
GRUNDMANN, Walter. Das Evangelium nach Lukas. Nachdruck der zweiten, neubearbeiteten Auflage. In: FASCHER, Prof. D. Erich (Hrg.). Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament. Berlin: Evangelische Verlagsanstalt, 1969.
MORRIS, Leon L. Lucas. Introdução e Comentário. Trad. Gordon Chown. São Paulo: Mundo Cristão; Vida Nova, 1983. (Série Cultura Bíblica).
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