Prédica: Lucas 19.28-40
Leituras: Salmo 118.1-2,19-29 e Hebreus 9.11-15
Autoria: Luiz Carlos Ramos
Data Litúrgica: Domingo de Ramos
Data da Pregação: 14 de abril de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Uma manifestação popular bem organizada
1. Introdução
O chamado Domingo de Ramos está entre as mais antigas celebrações litúrgicas cristãs, observada regularmente desde o primeiro século. Tanto é assim que essa alusão ficou notoriamente registrada nos quatro evangelhos (Mt 21.1-11; Mc 11.1-11; Lc 19.28-40 e Jo 12.12-19).
O presente auxílio homilético está sendo preparado, coincidentemente, num contexto de muitas manifestações, paralisações, greves, passeatas e ações desse tipo em todo o país. Por essa razão, a chamada “entrada triunfal de Jesus em Jerusalém” se reveste de especial sentido, especialmente se a considerarmos como uma legítima manifestação popular, cuidadosamente planejada e articulada, ao que tudo indica, com profundas implicações políticas.
Os demais textos indicados pelo lecionário para serem lidos no Domingo de Ramos estão conectados pela ideia de rejeição ou acolhida daquele que vem em nome do Senhor, sim, a pedra angular, mas rejeitada pelos construtores (cf. Sl 118).
O texto de Hebreus apresenta Jesus como o mediador da nova aliança, cujo sangue derramado confere remissão das transgressões cometidas sob a primeira aliança.
2. Exegese
(Utiliza-se a versão bíblica Nova Almeida Atualizada, da Sociedade Bíblica do Brasil).
É por ocasião da festa da Páscoa que se dá o episódio que agora estudamos, que narra a entrada de Jesus em Jerusalém, acompanhado de seus seguidores e seguidoras, bem como de numerosa multidão de peregrinos.
V. 28 – E, depois de dizer isto – refere-se à parábola das dez minas, registrada nos versículos precedentes. Jesus prosseguia a sua viagem para Jerusalém – Jerusalém era o centro do poder político, religioso e econômico da Palestina nos tempos de Jesus. Sendo mais específico, Jerusalém se tornara o lugar referencial da opressão política, da exploração econômica e da legitimação religiosa subserviente ao imperialismo romano. Estima-se que a população residente em Jerusalém, no século I, não passasse de 40 mil habitantes. Contudo, em ocasiões festivas, tal como a Páscoa, a cidade atraía mais de 200 mil peregrinos.
V. 29 – E aconteceu que, ao aproximar-se de Betfagé e de Betânia, junto ao monte das Oliveiras – Os romeiros que possuíam melhores recursos hospedavam--se na cidade, mas os peregrinos mais pobres acomodavam-se nas imediações de Jerusalém. Povoados, como Betfagé (do grego: “casa do figo”) e Betânia (“casa do pobre”), serviam como alternativa de hospedagem mais barata nas proximidades, e ficavam, respectivamente, a cerca de três e seis km de Jerusalém. Esse é o caso de Jesus e seus acompanhantes. Ele costumava hospedar-se na casa de Lázaro, Marta e Maria, em Betânia. Jesus enviou dois dos seus discípulos – Dessa sutil e discreta menção podemos inferir que o episódio que estava para acontecer seria o resultado de cuidadoso planejamento e de precavida articulação popular.
V. 30 – dizendo-lhes: – Vão até a aldeia que fica ali adiante e, ao entrar, encontrarão preso um jumentinho, o qual ainda ninguém montou; desprendam o jumentinho e tragam aqui. Animais que ainda não haviam sido montados ou encilhados eram preferidos para serem dedicados a Deus (cf. Nm 19.2; Dt 21.3
e 1Sm 6.7).
V. 31 – Se alguém perguntar: “Por que o estão desprendendo?”, respondam assim: “Porque o Senhor precisa dele”. Soldados e oficiais romanos podiam requisitar animais para seu serviço. A menção genérica ao fato de que “o Senhor precisa dele” poderia fazer supor que esse animal estava sendo requisitado por alguém do exército romano que, por ocasião da Páscoa, era escalado em grande número para garantir a segurança e a pax romana. Mas, muito provavelmente, tratava-se de uma linguagem cifrada, previamente acordada entre Jesus e o proprietário do animal.
V. 32-35 – E, indo os que foram mandados, acharam tudo conforme Jesus lhes tinha dito. Quando eles estavam soltando o jumentinho, os donos do animal
disseram: – Por que estão desprendendo o jumentinho? Eles responderam: – Porque o Senhor precisa dele. Então trouxeram o jumentinho até Jesus e, pondo as suas capas sobre o animal, ajudaram Jesus a montar. Trata-se de uma alusão explícita a Zacarias 9.9: Eis que o seu rei vem até você, justo e salvador, humilde, montado em jumento. No versículo 10 é dito que tal rei, montado em um jumento, banirá a guerra da terra: Destruirei os carros de guerra de Efraim e os cavalos de Jerusalém; os arcos de guerra serão destruídos. Ele anunciará paz às nações; o seu domínio se estenderá de mar a mar e desde o Eufrates. Veja-se também Isaías 2.4: Ele julgará entre as nações e corrigirá muitos povos. Estes transformarão as suas espadas em lâminas de arados e as suas lanças, em foices. Nação não levantará a espada contra nação, nem prenderão mais a guerra. Esse contexto semântico certamente povoava o imaginário da multidão que participava da passeata.
V. 36-37 – À medida que Jesus avançava, as pessoas estendiam as suas capas no caminho. E, quando Jesus se aproximava da descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos começou, com muita alegria, a louvar a Deus em alta voz, por todos os milagres que tinha visto. Jesus aproxima-se de Jerusalém pelo caminho do Leste, e vem em procissão, acompanhado de uma multidão de camponeses. São provavelmente peregrinos pobres que se haviam acomodado nas aldeias vizinhas. Aqui é a ocasião para mencionar que, muito provavelmente, do outro lado da cidade, aproximando-se pelo caminho do Oeste, subindo da Cesareia Marítima, dava-se outro cortejo. Uma multidão de bajuladores acompanhava Pôncio Pilatos, o governador romano da Idumeia, Judeia e Samaria, que também subia a Jerusalém para participar, supervisionar e garantir a ordem durante as festividades pascais. Como pedia a etiqueta dos conquistadores, esses deveriam entrar na cidade montando fogosos cavalos. Desse lado, um desfile militar, ostentando o poder da dominação imperial, com ruidosa cavalaria e infantaria, soldados vestindo armaduras e elmos imponentes, precedidos por estandartes, tambores e trombetas. Enquanto isso, do outro lado da cidade, contempla-se uma passeata pacífica, performada por humildes e maltrapilhos camponeses, estendendo suas roupas rotas pelo caminho, agitando folhas de palmeiras (cf. a narrativa de João) e cantando salmos tão melodiosos quanto revolucionários.
V. 38 – Diziam: “Bendito é o Rei que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas maiores alturas!” Essa é uma citação do Salmo 118.26, desfecho do grande Hallel (Sl 113 – 118). Esses salmos eram tradicionalmente cantados durante o tempo da Páscoa, evocando a expectativa do reino davídico, com evidente conotação messiânica. Sua aplicação a Jesus, nesse contexto, certamente causaria inquietação e apreensão por parte de muitos.
V. 39 – Alguns dos fariseus lhe disseram em meio à multidão: – Mestre, repreenda os seus discípulos! A alusão à presença de fariseus em meio a essa multidão confirma a compreensão de que havia, sim, fariseus simpatizantes com o movimento de Jesus. Contudo, tendo eles a clara noção das implicações políticas daquela manifestação, ficaram apreensivos.
V. 40 – Mas Jesus respondeu: – Eu afirmo a vocês que, se eles se calarem, as próprias pedras clamarão. Jesus não se intimida, porque está convencido de que o tempo está se cumprindo e seu desfecho é incontornável. A situação tornou--se tão crítica, que, independentemente do anseio de quem quer que seja, a vontade de Deus será feita, de uma forma ou de outra.
3. Meditação
Vez por outra alguém tenta colocar os pastores e as pastoras contra a parede, vaticinando que religião e política não se misturam. No caso do episódio bíblico da chamada “entrada triunfal de Jesus em Jerusalém”, essa mistura já tinha sido estabelecida pelo próprio concurso do Império Romano.
A dominação romana não se dava somente no campo político-econômico e estratégico-militar, mas também no campo ideológico teológico. Segundo Borg e Crossan, o imperador Augusto, que governou Roma de 31 até 14 d.C., autodeclarou-se “filho de Deus”, “senhor” e “salvador”, aquele que trazia “paz à Terra”. Depois de sua morte, ascendeu ao céu para ocupar seu lugar definitivo entre os deuses. Desde então seus sucessores passaram a ostentar os mesmos títulos divinos. E não foi diferente com Tibério, imperador entre 14 e 37 d.C. (Borg; Crossan, 2007, p. 20).
Essa identificação dos reis e imperadores com divindades não era exclusividade romana, pois se verifica o mesmo fenômeno entre os egípcios, sumérios, persas etc. Reis e soberanos reivindicam para si diversos privilégios, cercam-se de riquezas, súditos e escravos. Ora, se é assim com reis humanos, muito mais será com reis que se consideram divinos. Além dos mesmos privilégios, riquezas, súditos e escravos, exigem um séquito de devotos adoradores.
Jesus, conquanto saudado como Messias, ovacionado como rei, louvado como Deus, não adota nenhuma das posturas típicas dos reis divinos do seu tempo. Ele permanece humilde, pobre, manso e pacífico. A multidão, diante de Jesus, experimenta um misto de excitação e frustração. Percebem que Jesus inaugura um novo tempo, mas se dão conta de que esse novo mundo de Deus, inaugurado por Jesus, não se parece em nada com o reino que tinham imaginado. O rei/ senhor/messias/Deus Jesus não reivindica espólios, não reclama vingança, não subjuga inimigos, não ostenta força nem poder bélico.
O episódio da entrada performática de Jesus em Jerusalém, retratado pelos evangelhos, é tremendamente político, extremamente revolucionário, não porque convoca o povo à rebelião, à insurreição, à revolta armada, mas porque quebra o ciclo mimético que impõe às gerações reproduzirem os mesmos pensamentos e atos.
Jesus liberta o futuro do passado. Não precisamos mais repetir a história. Jesus nos ensina que é possível transformar o destino. Trocar a guerra pela paz, o ódio pelo amor, a ostentação pela humildade, o autoritarismo pelo companheirismo, a intolerância pelo respeito, o rancor pela mansidão, a exploração pela solidariedade, o cheiro da morte pelo aroma da vida.
Há dois cortejos que estão em lados opostos. São dois projetos distintos: o dos seres humanos que se fazem deuses; e o do Deus que se faz ser humano. O primeiro reivindica poder político, econômico e religioso; o segundo delibera consolação, mansidão, justiça, misericórdia, pureza, paz e alegria (comparar com as “bem-aventuranças”, em Mt 5.3-16). Em qual desses grupos queremos estar? Em qual dessas manifestações nos engajaremos? Com qual desses movimentos nos comprometeremos? Com a marcha militar ou a passeata da paz? Com o cortejo da morte ou a caminhada pela vida?
4. Imagens para a prédica
Os próprios textos bíblicos oferecem imagens fortes que podem ser exploradas como elementos simbólicos e comunicacionais, para uso tanto na prédica como na liturgia:
Tapetes, tecidos ou roupas estendidos – Como passadeira e espaço de estar sobre os “tapetes”, utilizados em rituais e cerimônias, adquirem importantes significados simbólicos: acolhimento, expressão artística e estética, aconchego e conforto, ornamento, luxo, demonstração de status, delimitação de espaço, construção de um caminho ritual. O tapete vermelho, por exemplo, tão frequentemente aludido, apareceu pela primeira vez na peça Agamemnon, de Ésquilo, de 458 a.C., na Grécia antiga. Nela, o rei Agamemnon é recebido com um tapete de bordados vermelhos em sua volta da guerra de Troia. O rei diz que caminhar sobre tal luxo é um direito apenas dos deuses (Ésquilo, 1957).
Palmas, folhas e ramos – Conquanto não mencionadas explicitamente por Lucas, as folhas de palmeiras fazem parte da tradição do Domingo de Ramos (cf. Jo 12.12-13, ver também Lv 23.30). Naquele tempo não se homenageava com medalhas ou placas de bronze ou prata, mas com folhas de palmeiras. De vez em quando, eram entregues em bandejas (salvas). E, como certa vez ouvi do Mário Sérgio Cortella, na falta das folhas de palmeira homenageava-se com o que se tinha à mão, ou melhor, com a própria mão, cujo formato, quando espalmada, lembra sutilmente a folha da palmeira. O aceno da mão, ou mesmo o aplauso, fazia as vezes das folhas, daí a expressão “salva de palmas”.
Hosana e cânticos – A aclamação “hosana” significava originalmente “Oh! Salva-nos, SENHOR, nós te pedimos” (Sl 118.25). Esse pedido de socorro adquiriu, com o tempo, uma conotação de louvor. Tornou-se um grito de gratidão e esperança.
Passeatas pacíficas – O relato evangélico nos dá a conhecer uma das primeiras, se não a primeira manifestação popular cristã organizada. Caminhadas e passeatas pacíficas são uma maneira legítima e impactante de dar a conhecer os valores do novo mundo de Deus (reino de Deus), em contraste com os valores materialistas e beligerantes da velha ordem mundial. Assim, se o culto desse dia não se limitar às quatro paredes dos templos, mas se abrir para a vizinhança, a igreja retomará, ao menos em parte, a força e a vitalidade do evento original que deu origem à tradição do Domingo de Ramos no cristianismo.
5. Subsídios litúrgicos
Oração inicial
Vem, visita-nos, em triunfo e humildade. Abre nossos corações, para que possamos dar-te as boas-vindas. E nós abriremos para ti as portas da justiça, para que entre o Rei da glória. Nós te saudamos, ó Rei humilde: Hosana! Bendito o que vem em nome do Senhor! Paz no céu e glória nas maiores alturas!
Oração de intercessão e súplicas
Oh! Salva-nos, Senhor, nós te pedimos; Oh! Senhor, concede-nos prosperidade! [Apresentação dos motivos de intercessão pela igreja e pelo mundo.]
Oração de dedicação e consagração
Rei bendito, estendemos diante de ti os mantos da nossa gratidão, acenamos diante de ti com as palmas do nosso louvor, abrimos diante de ti as portas da justiça, para que tu pudesses entrar e reinar em nós e entre nós. Agora, por tua graça e misericórdia, nos comprometemos a te seguir pelos mesmos caminhos de humildade e paz. Amém.
Bibliografia
BORG, Marcus J.; CROSSAN, John Dominic. A última semana: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
ESQUILO. Agamemnon / Aeschylus. New York: [s.n.], 1957.
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