Prédica: Lucas 16.1-13
Leituras: Amós 8.4-7 e 1 Timóteo 2.1-7
Autoria: Leonídio Gaede
Data Litúrgica: 15º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22 de setembro de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
Melhor que só, é ir bem e em boa companhia
1. Introdução
Quanto aos textos previstos para o 15º Domingo após Pentecostes, posso dizer que evocaram lembranças do tempo em que comecei nesse ofício de pregar regularmente. O texto de Amós 8.4-7 me fez me lembrar de um hino do tempo em que queríamos que a nossa pregação ajudasse a terminar com a ditadura militar no Brasil, entre as décadas de 1970 e 1990: “na terra dos homens pensada em pirâmide, os poucos de cima esmagam a base”. Por outro lado, 1 Timóteo 2.1-7 parece pedir intercessão tanto pelos de cima como pelos da base da tal pirâmide. E, por fim, o texto da pregação propriamente dito, Lucas 16.1-13, à primeira vista parece elogiar a corrupção de um administrador fraudulento.
Dito isso, é preciso ressaltar que temos à nossa frente o desafio de responder satisfatoriamente a esta pergunta de domínio público: como assim, Jesus propõe o elogio de um erro? Precisamos descobrir qual é mesmo o sentido correto das palavras de Lucas 16.9, das riquezas de origem iníqua fazei amigos (Almeida), usem as riquezas deste mundo para fazer amigos (Nova Tradução na Linguagem de Hoje – NTLH), fazei amigos com o dinheiro da iniquidade (Bíblia de Jerusalém – BJ), usen las falsas riquezas de este mundo para ganarse amigos (Dios Habra Hoy – DHH). Já podemos adiantar que os três textos, de Amós, 1 Timóteo e Lucas, concordam com a afirmação de que alguém só pode ir bem se quem está ao seu redor for bem também.
2. Exegese
V. 1 – Em um grupo de estudo, perguntei: “o que o administrador fez errado?” A resposta mais rápida foi que roubou do patrão. A tradução de Almeida nos informa que o administrador “estava a defraudar” os bens do proprietário. O termo grego é skorpízō. O mesmo termo é usado por Lucas quando relata que Jesus disse quem comigo não ajunta espalha (Lc 11.23). Por isso penso que podemos dizer que o administrador estava esbanjando (no sentido de espalhar) os bens do proprietário. Lutero refere-se a esse administrador chamando-o de glutão (Obras Selecionadas 11, p. 476).
V. 2 – No mesmo grupo de estudo, usei a técnica da leitura e recontagem da história lida com palavras próprias. Notei que a turma demorou um pouco a relacionar a prestação de contas com a demissão. Pareceu que a primeira parte da frase, presta contas da tua administração, foi tão impactante que se sobrepôs à segunda, porque já não podes mais continuar nela. Não vejo nesse versículo maiores problemas com a tradução de Almeida. Apenas reforço que a informação da demissão poderia ser mais destacada.
V. 3 e 4 – Nestes versículos temos o monólogo do administrador impactado pela notícia da demissão. Nele não transparece nenhuma ansiedade em relação à prestação de contas. Pelo contrário, em seu “pensar consigo mesmo”, ele chega à conclusão de que na forma de prestar contas está a solução para o seu dilema. O desafio da prestação de contas não traz ansiedade, mas nova perspectiva. A ansiedade do administrador está mais ligada com sua próxima condição de vida enquanto demitido. A frase de Almeida, trabalhar na terra não posso, parece-me menos fiel do que a versão da NTLH – não tenho forças para cavar a terra. O termo grego é skaptein, que é “cavar”. O estudo em grupo me alertou para o fato de que, sendo baixa a autoestima do agricultor familiar, existe uma tendência de interpretar que o administrador, meio tipo “gola-fina”, considerava degradante precisar trabalhar como agricultor. Não se trata, porém, disso. Mais parece tratar--se de uma questão de incapacidade física da falta de forças para cavar.
V. 5 – O termo grego kyriou significa “autoridade dele”, no caso, aquele que exerce autoridade sobre o administrador. Ele chama os devedores da autoridade que estava sobre ele e pergunta: quanto você deve ao meu senhor? NTLH traduz como patrão, mas poderia ser também proprietário, aquele é o dono.
V. 6 – Aqui apenas ressalto que a medida de cem barris de azeite corresponde à produção de 140 oliveiras, segundo a informação de Martin N. Dreher no PL IV. Almeida fala em 100 cados. Cado era um recipiente para armazenar líquidos, mas parece não ser uma referência para medida. O texto grego fala em batous. A origem dessa medida é hebraica (bat). Cada bato equivale a 37 litros. O arrendatário devia, portanto, 370 litros de azeite e pagou 185.
V. 7 – A NTLH fala em mil medidas de trigo. O texto grego fala em 100 korous. Um coro equivale a dez batos. A dívida era, portanto, algo como 37 mil litros de trigo. Houve o perdão de mais de sete mil litros.
V. 8 – A expressão “se houvera atiladamente” quer dizer que, segundo o proprietário, o administrador agiu de maneira sábia. A questão é como relacionar corretamente essa afirmação com aquela que vem a seguir, onde aparece a classificação em dois grupos: “filhos do mundo” e “filhos da luz”. Essa classificação remete a uma distinção entre quem continua servindo ao império e quem optou pelo seguimento de Jesus Cristo. Não se trata, todavia, da proposição de uma teocracia no lugar do império nem de enquadrar o administrador em um dos grupos. Trata-se de classificar um ato como sábio porque foi praticado na lógica correta.
V. 9 – Sobre a expressão “riquezas de origem iníqua” (mamōna tēs adikias), podemos dizer que toda riqueza tem origem iníqua quando o sistema econômico é excludente (Am 8.4-7; Tg 5.1-6), isto é, quando está na lógica das obras dos “filhos do mundo”. A expressão fazei amigos... que vos recebam nos tabernáculos eternos está explicada da seguinte forma no PL IV: “Os ‘amigos’ podem ser os anjos de Deus que recebem os remidos nos tabernáculos eternos, ou homens que no dia do juízo servem de testemunhas de defesa, por haverem recebido as obras de amor dos que estão sendo julgados” (Dreher, 1979, p. 150). Pode ser compreendido como um adendo a afirmar que as regras econômicas desta vida, apontadas na parábola, aplicam-se também quando o assunto é o alcance da vida eterna.
V. 10 a 13 – Aí temos uma conclusão que se torna compreensível, graças ao que foi dito anteriormente. Temos a série de contraposições: ser confiável nas coisas pequenas e nas grandes; ser justo nas pequenas e nas grandes; ser justo no uso da riqueza iníqua e confiável no recebimento do bem verdadeiro; ser justo na aplicação do alheio e receber o que é seu. Não se pode servir a Deus e a Mamona.
Tudo precisa ser passado pelo crivo da nova condição de vida do administrador, no período posterior à sua demissão. Para viver bem, ele decidiu adotar um novo critério de vida. Este é um deslocamento de eixo: deixa de apostar no acúmulo próprio e passa a apostar numa condição de favorecimento dos arrendatários. Em outras palavras: o administrador passou a entender que, se os outros forem bem, ele estará bem entre eles. Da mesma maneira, na salvação eterna, os beneficiários de obras de misericórdia serão testemunhas de defesa de quem as praticou.
3. Meditação
Façamos uma visita imaginária a um grupo comunitário reunido no tempo e local em que atuaram as pessoas que deram origem ao Evangelho de Lucas. Se a nossa visita ocorrer em um tempo comum, provavelmente não vamos encontrar o proprietário de pomares e vinhedos e terras da localidade. A realidade agrária daquele tempo incluía a possibilidade de um proprietário viver longe. Quer dizer que proprietários não necessariamente eram proprietários locais. Eles podiam ser proprietários em uma região e viver em outra. Isso, porém, não os isentava de compromissos com os moradores da localidade.
Proponho, por isso, que, em vez de imaginarmos, de saída, proprietários malvados e exploradores do povo, imaginemos proprietários com um forte apelo de consciência em favor dos arrendatários, no sentido de mantê-los exatamente como tais. Esse apelo poderia vir de leis antigas, que versavam sobre a propriedade e o uso da terra. Eram leis que, por exemplo, ordenavam o descanso da terra no sétimo ano ou que davam aos pobres da terra, órfãos, viúvas e peregrinos estrangeiros, o direito de recolher o que estava na beira do caminho, o que caía no chão ou o que ficava para trás durante uma colheita. É o que podemos notar, por exemplo, na história de Rute (Rt 2) ou, de forma mais geral, na lei de Moisés, como, por exemplo, em Deuteronômio 24.19-22.
De qualquer forma, dificilmente em nossa visita encontraremos proprietários de terras. Vamos encontrar um público formado por pessoas que têm arrendado um pedaço de chão para trabalhar; vamos encontrar ecônomos que representam os proprietários ausentes e vamos encontrar pessoas pobres que, por um motivo ou outro, não têm conseguido arrendar um pedaço de chão para plantar e colher. A existência desses últimos, por mais que possa parecer significar exército de reserva de mão de obra, poderíamos dizer, não move moinho na situação do proprietário e do ecônomo. Interessa-lhes, em primeira linha, a existência dos arrendatários. Com o perdão da comparação: bois de canga saudáveis e fortes são mais interessantes do que doentes e fracos.
Por essas e outras, vamos constatar em nossa visita que, em nome do proprietário ausente, o ecônomo pode e até deve emprestar produtos aos arrendatários. Através desses empréstimos o proprietário guarda bens sem construir armazéns. Além disso, com os empréstimos evita a deterioração que normalmente sofrem os produtos recolhidos em celeiros por um período mais longo. E ainda mais: mantendo através do ecônomo o sistema de empréstimos aos arrendatários, o que lhe favorece, também mantém o próprio ecônomo. Dos juros que tem o direito de cobrar dos arrendatários, pode tirar seu próprio sustento, e talvez bem mais que isso, evitando que o proprietário tenha de “desembolsar”.
Devemos tomar o cuidado de não imaginar aquele sistema de então a partir do conhecido sistema de hoje, em que o empregador adquire tão somente as horas de trabalho do empregado. Aquele sistema não isentava o proprietário de responsabilidades para com os arrendatários. O proprietário estava comprometido com eles enquanto sujeitos capazes de arrendar e produzir. Em anos de colheitas ruins, por exemplo, existia o apelo moral da misericórdia. Diferentemente do sistema de hoje, em que o empregador perde de vista o empregado depois que este bateu o cartão. Naqueles tempos existia não uma relação de trabalho, mas uma relação de vida entre desiguais.
Compreende-se, pois, por que a parábola afirma que o ecônomo, em vista de seu futuro sombrio, fez bem em se arrepender. Ele merece elogios porque reconheceu sua ruína dentro do sistema “salve-se a si mesmo” (Lc 23.35). Finalmente, reconheceu que a salvação antes está no sistema “negue-se a si mesmo” (Lc 9.23), isto é, deixe de ganhar individualmente e usufrua do estado melhorado da coletividade.
Tentemos explicar melhor: o arrendatário age na lógica da pregação de Jesus, quando reconhece que sua salvação agora não está mais em tirar proveito dos arrendatários, mas em favorecê-los e participar desse favorecimento posteriormente. A busca do bem-estar próprio rege-se por duas grandes compreensões: procuro tornar-me um vencedor sobre os outros, ficando eu com o bem-estar e os outros com o mal-estar, por serem incompetentes, ou procuro construir um ambiente coletivo de bem-estar no qual estou inserido.
4. Imagens para a prédica
Salve-se a si mesmo (Lc 23.35) é uma das grandes ofensas dirigidas a Jesus no momento de sua crucificação. Por quê? Porque salvar as outras pessoas tinha sido o tempo todo o núcleo do seu ministério aqui na terra. Basta lembrar ditos como: quem quiser salvar a sua vida, vai perdê-la; deixa tudo e me segue; quem botar a mão no arado e olhar para trás; e outros. Por isso podemos dizer que Jesus, diante daquelas ofensas, devia estar convicto de que um eventual gesto de apear triunfalmente da cruz nenhuma salvação continha. Pelo contrário, nisso estaria exatamente a perdição do mundo, de cada qual querer salvar a si em detrimento do outro. Por exemplo, cercar a propriedade com toda sorte de aparato tecnológico (cercas eletrificadas, guaritas com guarda armada, cães e câmeras) não contém nenhum ingrediente de salvação da situação que produz furtos, roubos e assaltos.
Proponho duas imagens para a prédica:
a) uma cerca bem visível como imagem da convicção de vida do administrador antes de ser denunciado como esbanjador de bens;
b) uma imagem de uma horta comunitária, simbolizando a compreensão que o administrador passou a ter, depois de ver desmontado o seu princípio de vida anterior.
Enquanto o administrador esbanjava os bens do proprietário, tinha como projeto uma vida separada dos arrendatários porque sua ganância exigia cobrar a mais pelos arrendamentos. Ele tinha uma cerca imaginária na cabeça, que o separava do resto do mundo. Quando recebeu a notícia da demissão, caiu a ficha e resolveu mudar seu projeto de vida: administrou em favor dos arrendatários, objetivando alcançar sua paz de vida junto com os arrendatários. Por isso o proprietário o elogiou, e Jesus arremata a parábola com o conteúdo dos versículos 10 a 13 da nossa perícope.
5. Subsídios litúrgicos
Oração
Ó Senhor, faze de mim um instrumento de tua paz: que eu pratique o amor onde as pessoas se odeiam; que eu perdoe onde elas se ofendem; que eu apazígue onde há inimizade; que eu diga a verdade onde domina o engano; que eu leve a fé para onde a dúvida pressiona; que eu suscite esperança onde o desespero faz sofrer; que eu acenda uma luz onde a escuridão domina (Da Normandia, cf. Senhas Diárias de 27/06/2018).
Bibliografia
DREHER, Martin. Auxílio Homilético sobre Lucas 16.1-9. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1979. v. IV, p. 147-157.
ZWETSCH, Roberto. O elogio da esperteza e da precaução. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2012. v. 37, p. 277-285.
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