Prédica: Lucas 10.25-37
Leituras: Deuteronômio 30.9-14 e Colossenses 1.1-14
Autoria: Vera Maria Immich
Data Litúrgica: 5º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 14 de julho de 2019
Proclamar Libertação - Volume: XLIII
O amor e o próximo
1. Introdução
Os textos indicados para este domingo são perpassados pelo amor e pelas obras boas e misericordiosas neste mundo. Convidam-nos a deixar de falar, de discursar, e a agir.
O texto de Deuteronômio mostra Moisés recapitulando a relação de aliança entre Deus e seu povo. O mandamento que ele ordena não é nem muito difícil nem está muito longe. Ele é o mandamento do amor, que deve estar enraizado no coração e na alma, e é dado pelo próprio Deus. A força desse mandamento deriva de sua fonte, ou seja, o Deus todo-poderoso.
O texto de Colossenses fala da graça que produz reconciliação e faz frutificar o amor. Sem Cristo, todos estão mortos no pecado e são salvos mediante sua graça. E ele age através de nós.
O texto de Lucas, base para a pregação, coroa a importância do amor nas relações diárias com pessoas amadas, desconhecidas, amigas ou inimigas. Enfim, os textos conclamam a amar e cuidar de quem necessita. É Cristo agindo através de nós.
2. Observações exegéticas
Um intérprete da lei interpela Jesus com a clara intenção de pô-lo à prova, talvez no bom sentido, por demonstrar interesse e por acompanhar a espiritualidade de seu povo e o cumprimento da lei de Moisés. Os doutores da lei, muitas vezes, falhavam em interpretar o real sentido da palavra sagrada, mas eram especialistas nela e tinham o grande mérito de estar próximo das pessoas. Prova disso é o fato de que conversam com Jesus e estão abertos ao diálogo. Eles não estudam a lei longe de seu povo, mas em meio a ele. Temos a tendência de julgar os doutores da lei sempre em contraposição a Jesus. Eles estavam pondo Cristo à prova de acordo com seus critérios e seus estudos. Eles dedicavam a própria vida aos estudos das Sagradas Escrituras. Eles conheciam os textos da Escritura e também os pensamentos dos grandes rabinos. Portanto os debates entre eles e Jesus eram prova de seu zelo pela lei.
Jericó ficava a 24 km de Jerusalém e parecia um oásis em meio ao deserto. Mas a estrada ascendente e sinuosa que conduzia a Jerusalém era perigosa. Peregrinos que faziam o percurso frequentemente eram surpreendidos por assaltantes escondidos em suas margens. Os sacerdotes e levitas gozavam de prestígio e respeito e, por isso, em geral não eram assaltados.
Um intérprete da lei, estando na presença de Jesus – em um dos clássicos textos de debate –, pergunta: O que é necessário para herdar a vida eterna? Jesus responde com outra pergunta: O que está escrito na lei e como a interpretas? O doutor da lei, inteligente, diz que é preciso amar a Deus e ao próximo. Então Jesus lhe responde que ele deve fazer aquilo e viverá. Mas o doutor ainda insiste: Quem é o meu próximo?
Jesus conta então a parábola do bom samaritano, sem dizer que se trata de uma parábola. Poderia ser também uma referência a um fato verídico, utilizado para responder à pergunta do mestre da lei sobre quem deve ser considerado como o nosso próximo. Não sabemos quem era o homem assaltado, talvez um mercador judeu que transportava dinheiro ou mercadorias. Talvez tenha sido observado e acompanhado pelos salteadores, que sabiam que ele tinha algo que desejavam. Enquanto percorria aquele caminho, os salteadores esperaram o momento certo para armar uma emboscada, arrancando-lhe a roupa, agredindo-o com violência e deixando-o jogado ao lado do caminho, ferido e sob risco de morte, acreditando que ninguém passaria ali para salvá-lo.
Jesus conta essa história com riqueza de detalhes e aproveita para questionar a moral de um sacerdote hipócrita e de um levita daquela época, que também passam pelo caminho. Eles veem o homem agonizando e passam de largo, sem se importar com ele e sem oferecer-lhe ajuda.
Os sacerdotes e levitas eram funcionários do templo de Jerusalém. O alto clero vivia em Jerusalém. Mas o baixo clero exercia uma profissão comum em qualquer outra cidade. Periodicamente deviam apresentar-se ao templo para cumprir os serviços religiosos. Registros dizem que muitas vezes se tornavam pessoas pedantes e pouco sensíveis, pois gozavam de privilégios. No entanto, entre os direitos e deveres especiais estava o de usar de misericórdia para com pessoas e, inclusive, para com animais. Jesus faz uma crítica sutil ao mandamento levítico que declarava impuro quem tocasse algo sem vida. Isso podia levar ao desencorajamento da solidariedade.
Mais um viajante passa pelo caminho. Desta vez, é um samaritano, que se compadeceu, usou de misericórdia e socorreu aquela pessoa que necessitava urgentemente de cuidados. Ele não mediu esforços e correspondeu completamente à prática do amor ao próximo de que Jesus falava. O amor proclamado na lei foi posto em prática por um estrangeiro herege e menosprezado.
3. Meditação
Na pregação, podemos destacar alguns aspectos mais relevantes trazidos por Jesus em sua narração ilustrativa. Ele traz um exemplo de sensibilidade e de amor. Ele nos ajuda de maneira concreta a definir o que é amor e quem é o próximo que deve ser alvo desse amor. Ele traz para o centro uma pessoa marginalizada, agredida e abandonada à própria sorte. É a sua resposta a um teólogo que parte para a abstração ao querer saber quem seria o próximo de que fala o mandamento do amor. Ele não nega o amor a Deus e ao próximo, mas pretende estabelecer limites de quem seria esse próximo. Como se diria hoje, quem seria o pobre bonzinho a quem podemos ajudar? Jamais o pobre corrompido pelo sistema ou pela falta de oportunidades, jamais o pobre desassistido pelo Estado, jamais o pobre que é fruto de um sistema que produz sobras, que podem ser chamadas, se necessário.
Na pregação, podemos apontar para as armadilhas que montamos para nós mesmos quando discutimos sobre quem merece ajuda e solidariedade. Será que não perguntaríamos pela imprudência do homem assaltado, que anda com valores por um caminho perigoso, colocando-se dessa forma em risco? Não. Ele mesmo responsável por sua segurança? Jesus sequer considera que haja qualquer tipo de responsabilidade da vítima pela situação em que se encontra. Algo terrível aconteceu, e temos assim a oportunidade de expressar nosso amor incondicional ao próximo e reconhecer suas necessidades, acionar uma rede que ajude a viabilizar o cuidado e o acompanhamento.
O escriba quer andar pelo mundo das ideias e da filosofia, falar sobre a pobreza lá longe e dos alarmantes níveis de violência. Jesus puxa-o para realidade simples e prática. Há alguém precisando de ajuda e outro alguém oferece essa ajuda. É possível que hoje também pessoas possam falar e escrever sobre a pobreza e a violência no mundo sem nunca ter alimentado uma boca faminta ou sequer ter se comprometido em pensar jeitos e formas de combater o desemprego.
Jesus, então, qualifica o próximo claramente. É aquele que está no meu caminho. No texto, o samaritano se aproxima do necessitado com foco no que ele precisa, rompendo barreiras de religião, raça, nação ou classe social. Ele carecia de amor e de misericórdia. Ele era próximo de todos, mas somente um se sensibilizou e usou de misericórdia. Seu caráter é excepcional e é a essência do que deve ser o caráter do cristão ainda hoje.
Talvez, poder-se-ia perguntar aos ouvintes: quem seriam o sacerdote e o levita hoje – padres, pastores, pastoras, presbíteros? Quem seria o bom samaritano hoje: um negro ajudando um branco, um índio, uma pessoa homoafetiva, um latino na Europa, um pobre mostrando desprendimento?
É importante destacar que o samaritano não ajuda uma pessoa “boazinha”, mas um inimigo em potencial: um judeu. Ele leva o homem ferido até uma hospedaria e gasta o valor aproximado de dois dias de trabalho. Um valor considerável! Ele também envolve o dono da hospedaria nesse processo de ajuda. Ele vai atrás dos seus afazeres, não sem antes prometer voltar e acertar se algo ainda for necessário. Desta forma, somos lembrados do amor incondicional até com os inimigos.
O escriba deu a resposta certa a Jesus, mas não aplicou a resposta certanem se reconheceu como pessoa falha e pecadora que carece da graça de Deus. Antes, pelo contrário, resolveu sair pela tangente. Mais uma vez se evidenciaque a lei não salva, mas mostra que precisamos ser salvos. Ela evidencia nossa fragilidade e humanidade. O sacerdote e o levita perderam a oportunidade de agir no mundo mau, espalhando gestos e exemplos bons. O escriba, preocupado com a vida eterna, esqueceu-se que a fé é expressa na vida real, que acontece enquanto se está a caminho e não no final. Quando o especialista da lei constata que o próximo do homem ferido era o samaritano, Jesus apenas encerra a contenda dizendo: Vai e procede de igual modo.
4. Imagens para a prédica
Pode-se utilizar como imagem o trecho de uma música muito ouvida por adolescentes hoje: “Era uma vez”, de Kell Smith:
Dá pra viver
Mesmo depois de descobrir que o mundo ficou mau
É só não permitir que a maldade do mundo
Te pareça normal
Pra não perder a magia de acreditar
Na felicidade real
E entender que ela mora no caminho
E não no final.
Testemunho pessoal – Quando eu era estudante de Teologia, em São Leopoldo/RS, morava próxima à Biblioteca Municipal, que à noite se transformava em um ponto de prostituição. Alguém havia sugerido que eu mudasse o trajeto. Mas devido à maior iluminação e por me sentir mais segura passando por ali do que por ruas desertas, permaneci percorrendo o mesmo trajeto. Numa noite fria de inverno, quando todos estavam recolhidos em seus lares e as ruas estavam mais desertas, eu voltava de uma atividade noturna na faculdade. Um homem, em um carro, me seguiu por alguns quarteirões, falando obscenidades e me constrangendo a entrar em seu carro. Apressei o passo e quando avistei a biblioteca corri e chamei por socorro. Não apenas uma prostituta, mas duas puseram o cara para correr e me acompanharam até a esquina da minha casa, aguardando que eu entrasse. Fui inundada por um profundo sentimento de gratidão e me senti muito segura em ser “escoltada” até em casa. Naquele dia, entendi que próxima é a pessoa em necessidade; e eu era a próxima daquelas prostitutas. Elas me deram aquilo que eu precisava naquele momento: segurança para chegar em minha casa sem ser molestada por ninguém. A relação é horizontal, porque está fundamentada no amor e no respeito.
5. Subsídios litúrgicos
O bom samaritano – versos
Um dia, um doutor da lei
De Jesus se aproximou
E, querendo provocá-lo,
Arrogante assim falou:
– Que devo fazer, bom Mestre,
Para a vida eterna alcançar?
E Jesus lhe respondeu,
– Tu és mestre em Israel,
Tu és doutor, eu bem sei
Portanto deves saber
O que é que diz a lei...
– A Lei manda que amemos
Ao nosso Deus e Senhor
De coração e de alma,
Com todo o nosso amor,
Com toda a nossa força,
Entendimento e razão
E que amemos igualmente
Ao próximo, nosso irmão.
– Sem dúvida, meu amigo,
Respondeste sabiamente:
Cumprindo o que diz a lei
Viverás eternamente!
Porém, falou o doutor
A fim de se desculpar:
– Então quem é o meu próximo?
A quem devo assim amar?
Então Jesus lhe contou,
Com sua paciência infinda
Uma história comovente,
A parábola mais linda.
– Certa vez, um pobre homem
Que andava muito só,
Saiu de Jerusalém
Com destino a Jericó.
Porém, durante a viagem,
Algo triste aconteceu
Com aquele pobre homem
Que, por certo, era judeu.
Bandidos o atacaram,
Ferindo-o sem piedade.
Deixaram-no semimorto
Muito longe da cidade.
E ali, à beira da estrada,
O homem ficou caído.
Ninguém podia escutar
Seus lamentos e gemidos...
Até que ao cair da tarde,
Um sacerdote passou por aquela
mesma estrada
E o ferido avistou,
Mas aquele sacerdote
Que era judeu, certamente,
Nem desceu da montaria.
Insensível, foi em frente.
Depois dele um levita
Por ali também passou;
Vendo o homem quase morto,
Nem ao menos se importou.
Como fez o sacerdote,
A viagem continuou.
O seu coração de pedra
Nem sequer se emocionou.
Sem se fazer esperar:
Porém, ao cair da noite,
Montado em seu jumentinho,
Lá vinha o samaritano
Naquele mesmo caminho.
Ao ver o pobre infeliz,
Caído à beira da estrada,
Encheu-se de compaixão
E não pensou em mais nada.
Apeou do seu jumento
E ao pobre socorreu,
Ele era samaritano
E o outro era judeu...
Porém, naquele momento,
Nada disso importava.
Aquele pobre infeliz
De ajuda precisava.
Derramou azeite e vinho
Em todos os ferimentos
Com cuidado colocou-o
Na sela do seu jumento
Levou-o à estalagem
Com cuidado colocou-o
E, com todo o seu carinho,
Do pobre homem cuidou.
No outro dia, ao partir,
Deu ordens ao hospedeiro
Que ajudasse o pobre homem
Por aquele dia inteiro.
À noite, quando voltasse
Lhe daria mais dinheiro.
Lá foi o samaritano
Alegre, para a cidade.
Acabara de fazer
Um ato de caridade!
Agora, doutor, me diga
Qual dos três estava certo:
Aquele que o socorreu
Ou os outros dois “espertos”?
Qual deles mostrou-se próximo
Daquele pobre judeu?
– Sem dúvida, ó bom Mestre,
Aquele que o socorreu!
Pois, então, meu bom doutor,
Pratique a caridade
E viverás para sempre
Na feliz eternidade!
Sebastião Gomes de Oliveira
(Paraibuna/SP)
Bibliografia
BÍBLIA DE ESTUDO DA REFORMA. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2017.
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